Movimentos sociais saíram às ruas do centro de SP nesta terça-feira, 1º de abril — nos 61 anos do golpe de 1964. Desfile marcou posição contra o genocídio de indígenas, palestinos e negros e a anistia aos golpistas do 8/1

Movimentos sociais, militantes e artistas saíram às ruas do Centro de São Paulo nesta terça-feira, o dia 1º de abril, para desfilar com o Cordão da Mentira, um já tradicional bloco cívico-carnavalesco fora de época que defende a resistência à violência de Estado. O desfile também propôs a memória contra os horrores da ditadura empresarial-militar instaurada há exatos 61 anos — ainda que os militares tentem desvincular o golpe de 1964 do Dia da Mentira e falseá-lo como uma revolução contra o comunismo deflagrada em 31 de março.
Em sua 12ª edição, o cordão trouxe a alcunha de “Desfile Para Adiar o Fim do Mundo”, em alusão à obra do escritor, imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL) e líder indígena Ailton Krenak, autor de Ideias para adiar o fim do mundo (Companhia das Letras, 2019), entre outros livros.
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O evento entoou canções e promoveu discursos contra o genocídio dos povos originários, além de marcar posição contra as políticas de extermínio em curso contra os palestinos e a população negra e periférica do Brasil. “É preciso adiar o fim do mundo para reconstruir uma sociedade que não aceite a violência de Estado”, disse à Ponte a ativista Débora Silva, fundadora do Movimento Mães de Maio, uma das entidades participantes do bloco.

Vigília por vítimas do Estado
A concentração começou ao cair da tarde, no Pateo do Collegio, espaço que demarca o início da colonização branca de São Paulo e da expulsão dos povos tradicionais de seus territórios — foi também ali que, em 1562, indígenas protagonizaram contra os colonizadores o Cerco do Piratininga, em um prenúncio de resistência.
Às 18h30, quando o samba já embalava o público, ativistas de diferentes movimentos de mães — como o de Sorocaba, de Acari e de Osasco — iniciaram uma vigília em nome das vítimas de violência de Estado. Cristiane Leite, Denys Henrique, Ryan Andrade, entre tantos outros presentes hoje e sempre, tiveram seus nomes gritados em coro por mães que empunhavam uma espada de São Jorge cada uma.
”O Cordão da Mentira é muito simbólico para nós, porque viemos mostrar à sociedade o que ocorre de verdade. Estamos aqui para mostrar cada rosto, cada nome, falar que nossos filhos tinham sonhos e queriam estar vivos, mas foram mortos por quem devia protegê-los, as forças do Estado”, disse Bruna da Silva, moradora da Maré, no Rio de Janeiro. Ela é mãe de Marcus Vinicius, morto aos 14 anos de idade em uma operação policial, quando estava a caminho da escola.

Resistência indígena contra genocídios
A vigília foi encerrada com gritos pelo fim da Polícia Militar (PM). No Pateo do Collegio, apenas duas viaturas acompanhavam o ato. Os policiais militares só tiveram uma breve interação com o público pouco depois das 19h, quando uma artista que performava vestida como a morte, com uma máscara de caveira, se aproximou dos agentes. Os policiais a repreenderam, e um deles chegou a lançar gás de pimenta quando ela já se afastava, em cena filmada pela Ponte.
O ato seguiu com discursos em um trio elétrico parado à beira do Pateo do Collegio. Lideranças indígenas e presos políticos fizeram falas pela demarcação de terras aos povos originários e contra os projetos de anistia aos golpistas do 8 de janeiro. Também discursaram representantes de movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST), o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e o Movimento Negro Unificado (MNU).
”Tivemos indígenas presos na semana passada. Então, a gente continua sendo preso, morto, perseguido. O maior número de vítimas da ditadura foi de indígenas, então seguimos na mesma trajetória”, afirmou, também à Ponte, Casé Angatu, morador da Terra Indígena de Olivença, de Ilhéus, na Bahia. Sobre as prisões recentes, ele fazia referência à repressão das polícias baianas a indígenas Pataxó em meio a conflitos agrários também no sul do estado.

Críticas ao ‘prisômetro’ de Nunes
Encerradas as falas, o bloco passou a caminhar por volta das 20h, percorrendo as ruas Boa Vista e Libero Badaró, até chegar à Prefeitura de São Paulo. O abre-alas do cortejo foi formado por mães das vítimas de violência de Estado, que levavam faixas em memória de seus filhos.
No centro do passeio de foliões, a bateria ditava o ritmo ao entoar a canção Fim dos Tempos: “Quando essa luta se encerrar/ E o outro lado, então, reconhecer/ Que não tem mais jeito de encarar/ Nosso cordão vai descer pra festejar”. Já ao fundo do bloco, militantes empurraram o cordão empunhando um mar de bandeiras de variados movimentos sociais e partidos políticos de esquerda.
Em frente à prefeitura, isolada por gradis e viaturas da Guarda Civil Metropolitana (GCM), o bloco puxou uma vaia a Ricardo Nunes (MDB). “O prefeito impostor do prisômetro, que prende todo mundo, menos ele próprio”, disse uma das porta-vozes do bloco, em referência a um painel do emedebista que faz a contagem de pessoas detidas por meio do Smart Sampa, um sistema de monitoramento com câmeras espalhadas pela cidade.

Ditadura nunca mais
A canção entoada a partir de então foi outra: Não Conta Comigo, em crítica a eleitores bolsonaristas. “É pobre votando em patrão/ Favelado, em capitão/ Eu bem sei onde vai dar”, dizia um trecho da música, enquanto o cortejo seguia pela rua Libero Badaró até se postar na porta da sede da Secretaria da Segurança Pública estadual (SSP-SP), também cercada por gradis. A pasta é chefiada no governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) por Guilherme Derrite (PL), capitão reformado da Rota, a unidade policial que mais mata no estado de São Paulo.
”Capitão Derrite, um homem que se orgulha da própria covardia”, disse outro porta-voz do bloco em frente à sede da pasta, aludindo à fala do secretário sobre ter sido retirado da Rota pelos assassinatos que cometeu. Nesse momento, um militante projetava no prédio a frase “ditadura nunca mais”.
Em frente ao local, o ato foi encerrado após uma série de discursos, ocorridos ao passo em que um maior número de viaturas policiais se aproximava da SSP-SP. O primeiro a tomar o microfone foi o ativista Maurício Monteiro. Ele é sobrevivente do Massacre do Carandiru e destacou que os policiais responsáveis pelo caso não foram presos, apesar de condenados, ao terem a pena extinta ano passado.

Lei que ‘não autoriza matar’
Empunhando uma cópia da Constituição Federal, Monteiro lembrou que a maioria dos 111 mortos no episódio não tinham condenação transitada em julgado: “Essa é a lei maior, e ela não autoriza ninguém a matar ninguém.”
Depois dele, familiares de vítimas de violência policial tomaram a palavra. Débora, das Mães de Maio, foi a primeira a puxar críticas a Tarcísio e Derrite: “Vamos adiar o fim do mundo para ver esses fascistas pagarem por terem tirado a vida dos nossos filhos”. Maria Cristino Quirino foi outra a falar, em discurso pelo fim da Polícia Militar — ela é mãe de Denys Henrique, um dos nove jovens mortos no Massacre de Paraisópolis. “Sinto muito por tudo o que sofremos por conta desses assassinos fardados”, disse ela, acompanhada de outras mães de vítimas.
Também falaram Julio Navarro — pai de Marco Aurélio Cardenas Acosta, o estudante de medicina morto pela PM paulista em novembro do ano passado — e Cecília Lopes, que teve o filho Lucas morto espancado por um policial em Sorocaba em 2019. “Não tenho medo de morrer, porque, quando uma mãe perde um filho, ela já morreu. Mas não vou sossegar até ter justiça”, disse ela.