Impedida de participar de campeonato internacional, Maria Joaquina competiu, mas recebeu tratamento diferente das demais atletas, alega pai; em nota, Confederação defende que cumpriu a decisão original
Maria Joaquina Cavalcanti Reikdal, 11 anos, passou os últimos dias aflita. Mesmo classificada para participar do Campeonato Sul-Americano de Patinação Artística, por ter conquistado o segundo lugar no Campeonato Brasileiro de Patinação, a atleta teve a convocação ignorada pela CBHP (Confederação Brasileira de Hóquei e Patinação). Seus pais, Gustavo Cavalcanti, 37 anos, e Cleber Reikdall, 39, entraram na justiça para pedir a participação da menina na competição.
No começo de abril, como mostrou a Ponte em reportagem, Gustavo recebeu um e-mail da Confederação Brasileira informando que Maria não poderia competir entre as meninas. Da Confederação Sul-americana de Patinação, o pai recebeu um documento alegando que as inscrições são baseadas no sexo de nascimento. Maria é uma criança transgênero e busca seus novos documentos, com o nome que escolheu e o gênero retificado, o feminino. O processo está na Justiça desde 2018, mas ainda não foi finalizado.
Em 11 de abril, a Justiça comum havia expedido uma liminar judicial que garantia a participação de Maria no campeonato, ação promovida pela Defensoria Pública do estado do Paraná em conjunto com a Defensoria de São Paulo. Quatro dias depois, a decisão enviada à Confederação, que podia recorrer. Mas, somente na véspera do feriado, na última sexta-feira (19/4), o pedido foi derrubado pela CBHP.
Em entrevista à Ponte, Gustavo Cavalcanti, pai de Maria, conta como foram os dias anteriores à decisão do STJ. “A gente conseguiu a liminar, eles inscreveram a Maria no campeonato, colocaram ela como Ordem de Saída na competição para ser a última e colocaram o nome dela. Eu comentei com a Maria que tínhamos conseguido. Saímos para jantar, comemoramos. Conseguimos a liminar, mas ela foi interposta na véspera do feriado, então lutamos para conseguir”, explica Gustavo. “Muitas pessoas se mobilizaram para ajudar a Maria, gente que eu nem conheço. Eu não tenho condições financeiras de arcar com toda essa logística, foi uma correria. Eles interpuseram a liminar na véspera de feriado com a ideia certa de que a gente não iria conseguir, porque não tinha tempo hábil”, emenda.
Mesmo com a liminar barrada, os pais de Maria não desistiram de continuar a lutar pela presença da filha no campeonato. “Eles [a Confederação] chegaram a falar, para imprensa, que iam acatar a liminar, a própria defensora achou que eles não iriam interpor sobre a liminar, porque ia pegar mal para eles, mas eles interpuseram na véspera de feriado, toda uma manobra pra gente não ter tempo hábil para conseguir alguma coisa. Graças a Deus um monte de gente se uniu com a Maria e nem sei como te dizer, porque a própria defensora já tinha ficado chateada porque não ia dar tempo, mas um monte de gente ajudou, como o IBDFAM [Instituto Brasileiro de Direito de Família]”, conta Cavalcanti.
Foi quando o STJ (Superior Tribunal de Justiça), por meio do ministro Napoleão Maia Nunes Junior, autorizou a participação de Maria na competição (veja decisão completa aqui), no último domingo (21/4). Como o campeonato começou no dia seguinte, na segunda-feira (22/4), a família, que mora em Curitiba (PR), precisou correr para chegar a tempo da competição, que seria iniciada às 7h30 em Joinville (SC) – distante 130 km da capital paranaense, um percurso de aproximadamente 2 horas de carro.
Gustavo conta que percebeu que o tratamento recebido por sua filha foi diferenciado em relação às demais atletas. “Aí, quando a gente soube da notícia, foi uma correria. Chegamos super tarde em Joinville, porque pegamos trânsito. No dia seguinte, a competição dela se iniciaria às 7h30, a gente chegou no ginásio às 7h. Ela ainda não estava arrumada, pois ela era a última a competir e eles iriam chamar por blocos, de 6 a 7 meninas, então a gente teria pelo menos mais uma hora e meia pra esperar. Então ela tava lá, brincando, conversando. Faltando 10 minutos pra começar a prova, que atrasou um pouco, uma das organizadoras nos disse que a Maria não era mais a última e sim a primeira a competir”, explica o pai.
“Eu questionei e eles me falaram que tá no regulamento, mas questionei que na ordem de saída estava publicada como ela sendo a última. Mas elas falaram que não, que ela era a primeira, da mesma forma que eles sempre falaram que não havia contestação. Pedi pra eles me mostrarem onde tem essa norma, por que tiraram ela de última para primeira, a gente não tava preparado para que ela fosse a primeira – ela nem havia tomado café da manhã, já que ela teria uma hora e meia para tomar café, descansar, relaxar e patinar um pouquinho numa área externa que tem. Mas aí, enfim, corremos para arrumar o cabelo, a maquiagem, colocou os patins e ela entrou em pista”, continua.
Como a decisão do STJ veio um dia antes da competição, Maria perdeu alguns momentos importantes do campeonato, como a foto oficial, tirada na quinta-feira (18/4) pela noite, e o reconhecimento de pista, realizado na sexta-feira (19/4). Este último, defende Gustavo, teve um peso importante no desempenho da atleta na competição. “A gente solicitou pra Confederação que dessem 10 minutos de reconhecimento de pista pra ela, porque infelizmente isso foi negado, já que o reconhecimento foi realizado na sexta e ela estava proibida de participar. Mas eles não autorizaram esse reconhecimento no dia, que foi um dos motivos da gente ter chegado um pouquinho mais cedo”, explica.
Além de não ter o direito de reconhecer a pista, Maria também não pode usar o uniforme da Seleção Brasileira de Patinação, como estavam as outras patinadoras. “O uniforme da seleção é comprado pelos pais, mas é a venda só é autorizada para um atleta convocado, o que não era o caso de Maria. Então, ele não foi confeccionado. Eu cheguei a pedir o tamanho da Maria e o meu [como técnico], mas não entraram mais em contato com a gente, inclusive falaram que iriam emprestar um uniforme para ela, mas não emprestaram, não se prontificaram a nada”, critica Gustavo.
Ele conta como foi doloroso ver essa situação. “A Maria competiu em primeiro para tirar ela do ginásio, pra ela não ficar esse tempo todo lá. Ela não saiu na foto oficial, não reconheceu pista, todos os atletas ganharam uma lembrancinha da Confederação e ela não ganhou. Ela acompanha o Instagram, então ela vê as meninas postando coisas e me pergunta sobre isso. Então é doido você ter uma filha, lutar e mesmo ela tendo uma autorização para competir, não há empatia nenhuma de ninguém”, avalia.
Sentindo a pressão e sem entender porque não estava usando o uniforme como as colegas, Maria entrou na pista de patinação, por volta das 7h40, chorando. “Na pressão, ela não foi bem. A Maria nunca caiu em campeonato, nesse campeonato ela caiu quatro vezes”, salienta o pai.
Depois da competição, segundo o pai, Maria se sentiu derrotada. “Para ela foi uma loucura. Ela se sentiu derrotada, excluída. Ela entrou chorando na competição. Mas a gente trabalhou bem, está conversando com ela, está conversando com a psicóloga. Graças a Deus, muitas pessoas apoiaram e ela tá se sentindo bem, se sentindo aceita”, explica o pai.
Gustavo defende que muita coisa foi tirada de Maria, uma vez que “o campeonato para ela não é só a competição, é a curtição, é poder ficar com os amigos, é ficar na arquibancada torcendo, é a viagem, é faltar a aula – como toda criança -, é ficar brincando na piscina do hotel. Ela não teve nada disso. Não teve foto com as amigas, não teve nada. A gente chegou às 22h do domingo no hotel e ela competiu às 7h40 da segunda”, assegura Gustavo.
Até o momento de início da competição, Gustavo tentou ficar firme para apoiar a filha, mas, quando Maria entrou na pista, o pai desabou. “Quando ela entrou na pista foi uma luta, mas vendo que ela tava tão abalada, doeu demais. A Maria abriu portas para muita gente e abriu portas para muito técnico que vem sofrendo com as represálias da Confederação. Não é a primeira vez que Marias, não digo trans, mas Marias, perdem o sonho por que é política, a patinação é política”, desaprova Gustavo.
O outro lado
A Ponte procurou a CBHP (Confederação Brasileira de Hóquei e Patinação) por e-mail e, em nota assinada pelo presidente Moacyr Neuenschwander Junior, recebeu o seguinte posicionamento: “Sobre a troca na Ordem de Saída, a CBHP explica que não houve troca e que seguiram as regras da competição. A criança não estava na data programada para ser a última, e sim após a decisão do agravo cassando a liminar, ela foi retirada da Ordem de Saída. No caso da inserção tardia na prova, o atleta sai na primeira posição, é o procedimento normal para qualquer atleta”.
Em documento obtido pela reportagem, o nome de Maria, diferente do que foi dito pelo presidente da CBHP, aparece em último lugar na Ordem de Saída (clique aqui para ver o documento completo).
Já em relação a não participação de Maria na foto oficial, no reconhecimento de pista e no uso do uniforme oficial, direito das atletas classificadas, como é o caso da criança que conquistou o direito de participar do evento depois de garantir o segundo lugar no campeonato nacional, a Confederação explica que essa regra, na verdade, é outra. “A criança não estava automaticamente classificada. Não há nenhuma regra que obrigue a convocar qualquer atleta. O Brasil poderia, por desempenho técnico, não ter inscrito ninguém nesta ou qualquer outra prova. O que há são cinco vagas para serem ou não preenchidas. A CBHP cumpriu o que foi solicitado no processo: a participação na prova, e teria cumprido qualquer outra determinação judicial”.
Para finalizar, a CBHP crava o posicionamento oficial em relação ao caso de Maria Joaquina. “A CBHP, mesmo diante do impasse da competência, em respeito a manifestação do juiz natural, cumpriu a decisão original. A CBHP só se manifestará nos autos do processo que está em segredo de Justiça, solicitado pelos próprios pais”, argumenta o presidente, Moacyr Neuenschwander Junior.