Cristiano Burlan: Mataram meu pai, mãe e irmão. Será que vou terminar assim?

    Cineasta fala sobre como o luto dialoga com a construção da memória e um eterno retorno às origens na trilogia que se encerra com ‘Elegia de um Crime’, documentário sobre o feminicídio de sua mãe, lançado este mês

    Cristiano Burlan: “Cinema não é terapia” | Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte Jornalismo

    Cria do Capão Redondo, extremo sul de São Paulo, o cineasta Cristiano Burlan, 43 anos, teve toda uma vida atravessada pela violência e por perdas. “Dezesseis amigos meus foram mortos na periferia. Amigos próximos. Em chacina, em alguma fita ou a polícia mesmo que matou”, pontua. “Mataram todo mundo da minha família. A minha irmã falou pra mim: ‘meu medo é que esse seja nosso fim trágico'”, afirma Burlan, em entrevista à Ponte no centro de São Paulo, alguns dias antes da estreia de Elegia de um crime, filme sobre o feminicídio de Isabel, mãe dele.

    O documentário encerra a chamada “trilogia do luto” do diretor, ao lado de Construção (2006), sobre a morte do pai, e Mataram meu irmão (2013), sobre o assassinato de Rafael pelas mãos da PM paulista. Burlan rejeita a ideia de que o conteúdo autobiográfico dos filmes deva servir ao diretor como sublimação do sofrimento. “Não tem a ver com terapia. Não fui fazer o filme para me curar. Gente curada é muito chata”, brinca.

    Embora os documentários da trilogia tenham sido filmados em épocas diferentes, há um ponto bastante convergente neles: a construção da memória dos que não estão mais aqui e um eterno retorno às origens, que é o ponto de pesquisa que mais interessa ao diretor. “Eu posso ter perdido a ingenuidade, mas não a inocência. Se isso acontecesse, eu me tornaria cínico”, descreve

    Premiado na última edição do festival É tudo verdade, Elegia de um crime chega aos cinemas com o tema da violência contra a mulher, que tem ganhado cada vez mais espaço no debate público. Isabel foi morta dentro de casa, na periferia de Uberlândia, pelo então companheiro, Jurandir Muniz de Alcântara, que segue foragido. Mas Burlan alerta: “o filme não é sobre vingança, porque senão eu me colocaria no mesmo lugar do assassino. Tem a ver mais com justiça”.

    Burlan é cauteloso quando fala em se considerar um sobrevivente da realidade que viveu. Dos irmãos, ele foi o único que conseguiu romper de vez o ciclo de violência imposto pela própria história. Além do irmão assassinado pela polícia, outros dois – que aparecem em seus filmes – passaram entre idas e vindas no sistema prisional. “Onde eu me criei você aprende a lidar com armas. Quando você vê você já está com uma arma na mão fazendo uma fita em algum lugar. Eu não sei como eu sobrevivi a tudo isso. Então, sob essa ótica, sim, eu sou de certa forma um sobrevivente. Mas no fundo acho que eu só protelei minha tragédia e que um dia ela vai chegar”, afirma.

    O cineasta não vive mais na periferia há muitos anos. Atualmente circula entre o centro e a zona oeste de São Paulo, na maior parte do tempo, além de ter, muito em virtude do ofício de diretor, conhecido vários países do mundo. Embora tenha total consciência do imenso abismo existente da ponte de lá e cá, não hesita quando questionado sobre qual o seu lado da história. “É o lado de quem não tem dinheiro, que é fodido na vida, que não tem fala. Porque não tem como. Eu estaria me traindo, traindo minha história. Seria fraco e mentiroso”, dispara.

    Confira entrevista completa com o diretor:

    Ponte – Eu percebo na Trilogia do Luto que há algo de reparação. O que é o luto para você, onde está o luto e onde está uma sensação de revolta, de reparação?

    Cristiano Burlan – O luto age de maneira muito distinta para cada ser humano. Para mim, acho que é até uma defesa do meu corpo para lidar com essa historia trágica. O assassinato brutal apagou a imagem da minha mãe. Eu fui fazer o filme [Elegia de um crime] e um dos motivos era reconstruir essa imagem. Eu olhava uma foto dela e não conseguia ver o rosto dela. No Mataram meu Irmão eu vou atrás dos ossos dele, porque o corpo dele desapareceu. Mas nesse caso específico é uma tentativa de reconstrução. Mas os três filmes, principalmente o último, não tem a ver com terapia para mim. Seria muito falocêntrico se fosse. O cinema é um lugar muito estranho para se estar porque a gente fala muito do eu, do eu, do eu. E pra mim isso não tem importância nenhuma, porque os filmes só se justificam se de alguma maneira dialogam com um lugar que não é o meu lugar, que é o do outro. Não é só um filme do assassinato da minha mãe. É um filme sobre o assassinato de muitas mães e muitas mulheres nas periferias das cidades brasileiras.

    Ponte – Mas qual o objetivo em tratar do tema?

    Cristiano Burlan – Eu não acredito em sublimação freudiana e em resiliência. Eu não fui fazer o filme para me curar e nem quero. Me deixem com minha loucura e minha dor. Até porque gente curada é muito chata. Quero continuar um pouco doente. É claro que você abordar essas questões te faz respirar melhor. Porque você vai de encontro a essas coisas. Mas as questões pessoais são minhas e não têm importância nenhuma no resultado final. O filme não é sobre vingança, porque senão eu me colocaria no mesmo lugar do assassino. Tem mais a ver com justiça. Para você ter uma ideia, eu nunca tinha colocado a foto do cidadão e a foto está no filme. É um cidadão que matou minha mãe de forma extremamente violenta e há indícios que tenha matado outras mulheres. Ele está solto e pode estar matando mais mulheres por aí. Me perguntaram dia desses: ‘ah, mas esses números não aumentaram?’. Eu digo que não, que eles sempre foram altos. Mulheres sempre foram assassinadas pelos companheiros no Brasil. Eu cresci num ciclo de violência e pobreza onde isso era muito comum. Talvez não aparecesse como hoje. E tem uma outra coisa sobre isso que me incomoda muito: quando a mulher, por exemplo, apanha do marido, do companheiro, as notícias exibem o rosto dessa mulher. Não aparece o rosto do assassino do agressor. Eu me pergunto por que? Foi um dos motivos que decidi dar rosto a essa figura, a esse assassino.

    Ponte – Sobre isso, aliás, você questiona no filme a reportagem feita pelo SBT local na época do assassinato da sua mãe. Você vai atrás da repórter. Por que?

    Cristiano Burlan – É um espelhamento. É claro que é mais fácil para mim me colocar no lugar de que eu sou legal e ela [Cássia Bonfim, da TV Vitoriosa, afiliada do SBT] é horrível. Mas eu sou um cineasta que filma meus mortos e expõe meus mortos e meus parentes também. Essa jornalista vem de uma escola do Gil Gomes. Ela trabalhou com ele. Tem uma imagem da minha mãe que eu tento tirar até hoje da internet que é minha mãe filmada morta no local. A edição da reportagem foi feita de uma forma que a imagem da minha mãe aparece várias vezes. Quando eu mostrei pra ela, eu pensei em usar no filme, no sentido de fazer essa crítica. E ela me disse: “essa é uma das imagens mais violentas que eu já vi. Se você usar essa imagem no filme, eu volto aqui e te mato”. Tanto que a imagem está no filme, mas eu não mostro pra quem assiste, eu mostro para a jornalista [Cássia Bonfim]. Mas existe um espelhamento porque ao perguntar a ela por que ela fez isso, na verdade estou também perguntando por que eu faço isso. Por que eu exponho minha irmã, meus parentes, meu sobrinho, a imagem da minha mãe ou uso as fotos da polícia científica quando meu irmão foi assassinado por uma quadrilha comandada por policiais militares. Qual a diferença do que eu faço e do que a jornalista fez? O que mudou na minha relação com a jornalista é que ela foi muito solícita e me ajuda ate hoje a tentar encontrar o cara que fez isso com minha mãe, o assassino. E eu fiz a pergunta de forma muito direta: “por que ela fez aquilo?” e ela me respondeu da forma mais direta também: “porque as pessoas querem ver e porque isso dá ibope”.

    Ponte – É essa a fórmula que perpetua também o sucesso dos programas policialescos, os Datenas e afins…

    Cristiano Burlan – Total. E isso sempre existiu. Me lembro do Jacinto Figueira Junior, o apresentador de “O homem do sapato branco” [programa da década de 1960 que abordava a violência urbana, explorando o filão do chamado ‘mundo cão’, numa expressão criada pelo próprio apresentador]. Começava com ele no centro de SP, com sapato branco e lustroso. Ao mesmo tempo, eu sou viciado nesses livros de literatura noir, de crimes. Um dos primeiros que eu li foi “Meus lugares escuros”, do escritor e roteirista James Ellroy. Aí aconteceu uma coisa muito curiosa. Um amigo meu, o Kiko Goifman, que fez o “33”, que é um filme onde ele mostra a busca pela mãe biológica dele. Quando eu fui fazer “Elegia de um crime”, a gente conversou e descobrimos que tínhamos lido esse mesmo livro, que é aliás do mesmo autor de “Dália Negra”. É um dos crimes mais conhecidos, falados, permeia o inconsciente coletivo americano. Ele vai falar do assassinato da mãe, ele não descobre o assassino e até hoje não se sabe, o caso foi reaberto, sem solução. E além do fato de serem mães nos três casos, há outra coisa em comum: a imagem da minha mãe. Se você olhar a foto desse vídeo [da reportagem da afiliada do SBT exibida na época do feminicídio da mãe de Burlan], que é muito violento, me tira muitas noites de sono, é muito semelhante a da Dália Negra.

    Cena de “Elegia de um crime”: Isabel e os filhos | Foto: reprodução

    Ponte – E por que você faz isso de remontar os assassinatos dos seus, de querer quase que como se autoflagelar nessa dor?

    Cristiano Burlan – É como se eu tivesse uma responsabilidade. Eles já se foram, eu estou aqui ainda e tenho que conviver com isso. Não é um autoflagelo. A gente nasce sabendo que vai morrer, mas não pensamos nisso. E uma hora a gente acaba tendo contato com a morte e isso te desloca. E a gente precisa ressignificar. Senão seria insuportável viver. Nessas mortes violentas, eu tive um contato com a dor maior para o ser humano que é a dor do tempo, do imponderável, uma tomada de consciência da finitude das coisas. Quando tomamos essa consciência, isso muda a perspectiva, sua relação com a vida. Não sei se é melhor ou pior, simplesmente muda. Sempre me falam: “Seus filmes são pessoais”. E eu devolvo com a pergunta: “é possível fazer filme se não for por uma perspectiva pessoal?”. Esse tipo de cinema não me interessa. Nem como realizador, muito menos como espectador. O meu último filme pode ser sobre feminicídio. E é assustador como é atual e é obvio que eu não pensei nisso, até porque eu não queria que esse tema fosse tão atual e pertinente. Todo dia que a gente acorda e quase não dá pra acompanhar o número de mulheres mortas no país. A outra é a questão é a da justiça, o desejo que esse monstro, pelo menos pra mim, fosse preso, pagasse pelos seus atos. E tem mais uma que é a que mais importa que é a do filho que quer reconstruir a imagem da sua mãe. O que fica de tudo isso eu não sei. Talvez eu tenha mesmo que fazer terapia para resolver. Ou não. Acho que vou fazer mais filmes.

    Ponte – Pode não tratar de sublimação, mas há elementos catárticos em todos os filmes da trilogia, em especial no último. Você mencionou agora que gostaria que ele pagasse pelo que ele fez. Você perdoa ele?

    Cristiano Burlan – Sabe, eu já fui uma pessoa violenta, mas não porque sou uma pessoa violenta por natureza. Eu fui criado no Capão Redondo, em uma região que nos anos 90 junto com o Jardim São Luis e o Jardim Angela formavam o “triângulo da morte”. Eu cometi delitos, deslizes, mas antes dos 18. E nunca fui preso e nunca matei ninguém. Eu me tornei uma pessoa violenta para me defender. Onde eu me criei você aprende a lidar com armas. Claro que tem exceções, mas quando você vê você já tá com uma arma na mão fazendo uma fita em algum lugar. A lógica é simples: a injustiça social é muito grande, aí você vê tanta injustiça, sua família passando necessidade, tanta gente precisando de muito e pouca gente com tanto. Uma hora alguém te chama, uma arma cai na sua mão, quando você vê já está no meio da coisa. E você tem que parecer forte, parecer machão, você tem que parecer mais duro do que você é. E eu sou um bundão, fraco. A vida inteira tive contato com arma sem querer ter. Odeio arma. É apavorante. Na cena em que eu apareço atirando, eu tô até nervoso, mas precisava enfrentar isso. Toda vez que alguém mata alguém da minha família, eu tenho vontade de pegar uma arma e ir lá matar a pessoa. No “Mataram meu irmão”, eu monto uma cena inteira que é exatamente como aconteceu. Na época, eu me droguei, tinha um monte de amigo bandido, pegamos as armas e ficamos na frente da casa do cidadão esperando ele sair pra matar ele. Aquele dia, eu vi que não sou assassino, que eu não ia conseguir.

    Ponte – E desistiu por que?

    Cristiano Burlan – Porque 5h da manhã, saiu uma senhora com uma criança, entende? E é tática de guerrilha urbana. Se fosse um matador, não ia se importar. É horrível. Não tenho alegria de ter tido contato com essas coisas. No “Elegia”, eu falo algo importante, sobre eu não ter o temperamento do meu irmão e do meu pai, que morreram. Se eles tivessem vivos, eles iam vingar a morte da minha mãe. Eu não tenho coragem. A minha maneira de vingar é colocando a câmera na cara de alguém e filmando as tragédias dessa pessoa, o que de certa forma é também violento e quase um ato criminoso. Quem filma paga um preço alto por isso e quem é retratado paga muito mais que você. Ninguém filma alguém impunemente. Seja documentário, seja ficção. Existe uma relação com o outro que tem que ser respeitada, que eu achamo da distância justa de uma câmera em relação ao outro. Até onde eu vou e o quanto eu me distancio do outro. E, o principal, se essa câmera é uma via de mão dupla, não pode ter relação hierárquica. Quando você tem uma coisa poderosa que é uma câmera na mão, que é um instrumento de precisão para entender o mundo que a gente vive, você tem um poder muito grande de mostrar as coisas do mundo, mas também de manipular e destruir um ser humano. 

    Ponte – Esse contexto de exposição da dor, como você conseguiu convencer seus parentes a embarcar nisso?

    Cristiano Burlan – No “Elegia” tem uma pessoa muito importante que é minha irmã. Se ela não topasse fazer o filme, eu não faria. Quando a questionei, ela disse: “você está fazendo uma coisa bonita que é trazer a história da nossa mãe”. Porque para ela, que foi quem achou minha mãe morta, é que foi pesadp. E por isso quis saber se ela achava justificável um filme sobre isso. Aí fiquei muito mais confortável, me senti seguro. Ao mesmo tempo é estranho porque eu tenho total consciência de que não sou mais uma cara que mora na periferia, eu sou um burguês.

    Ponte – Você se sente assim?

    Cristiano Burlan – Eu não tenho mais o lugar de fala, não sou mais um cara de quebrada, apesar de dizerem que eu faço filme de quebrada. Em São Paulo a gente vive um apartheid. Não é a Vila Madalena, Pompeia, o centro. Eu gosto disso tudo também. Mas entre o Rio Pinheiros e Tietê existem os bolsões de pobreza e as pessoas que atravessam esse rios todos os dias para trabalhar nas fábricas, nas nossas casas todos os dias. Quando eu atravesso o rio, meu coração bate muito forte. Para mim é muito difícil voltar pro Capão, voltar para a periferia de Uberlândia e voltar pra Porto Alegre. Ao mesmo tempo, me coloca um pouco mais próximo do que é a vida. Porque cinema é lugar de bundão. Só tem cuzão no cinema, otário. E para mim transitar nesse meio é muito difícil. Eu perdi minha ingenuidade, mas não perdi minha inocência, porque quando isso acontece você fica cínico. E aí ser um cineasta realizador cínico, que o que tem um monte por aí, não faz sentido. Não estou generalizando, há bons nomes, mas a maioria é assim. Só convivem com quem é do cinema, só falam de cinema, se deslumbram, mas não conhecem o mundo lá fora, que é muito além disso e que é o que me interessa. Qual a importância  de um filme para um pai de família de cinco filhos e que sobrevive com um salário mínimo? Eu sempre faço esse exercício reflexivo para não perder um lugar de contato com o real, com o mundo. Por isso que esse caminho do cinema para poucos, do deslumbre, é um lugar de boçal. O meu ofício de fazer filmes é tão importante quanto o ofício de quem constrói uma casa, pinta uma parede. Se você se colocar num lugar de um panteão sagrado é muito perigoso.

    Burlan vai atrás dos ossos de Rafael, morto pela polícia, em “Mataram meu irmão” | Foto: divulgação

    Ponte – Quero voltar a sua origem muito permeada pela violência. Por que você acha que conseguiu sair desse ciclo?

    Cristiano Burlan – Você está me perguntando se eu acho que eu me salvei?

    Ponte – Como queira. você acha que você se salvou?

    Cristiano Burlan – Não. O que eu tenho é uma vida mais confortável que eles. Ao mesmo tempo, por que eu vou até lá, ajudo com dinheiro quando eu posso, faço filme e fujo? É para me proteger também. É legal, é correto? Não é. Mas pense no seguinte: é um ciclo de violência, pobreza, num grau insuportável e que se você for pensar é totalmente grego. Mataram todo mundo da minha família. Em “Mataram meu irmão”,  a minha irmã olha para mim e diz: “meu medo é que esse seja nosso fim trágico”.

    Ponte – Ela fala em sina, né?

    Cristiano Burlan – Isso me pega. Sempre que vejo o filme eu penso nisso. Será que eu vou morrer assim também? Eu não fui salvo. A diferença é que eles estão do outro lado do rio e eu estou aqui. Para mim é mais fácil aparentemente. Eu tive muito amigo assassinado na periferia de São Paulo. Muito jovem eu tive contato com gente morta que leva tiro. O sangue faz parte do cotidiano e aí as pessoas falam que mudaram os números. E eu te digo: não mudaram. O que mudou é que hoje existem movimentos sociais e culturais, porque esses movimentos, saraus, que é uma forma de autogestão da quebrada, mudou da minha época para cá. Mas os números da violência continuam altos. A impressão que eu tenho é que há uma manipulação desses números. A quantidade de gente que é morta por uma das polícias mais letais, que é a PM de SP, sempre foi alta e continua sendo. Para os meus parentes que continuam nesse ciclo de violência é muito pior, muito mais difícil. E tem uma certa covardia minha nisso tudo. Mas tenho meus momentos de orgulho. Eu fiz um filme que é sobre o assassinato do meu irmão a mando de um PM que comandava uma quadrilha. E olha a loucura: o estado que mata meu irmão foi o mesmo que me deu um prêmio para fazer um filme sobre isso. Eu ganhei o prêmio do Governador do Estado e o Alckmin era governador. Na cerimônia de premiação eu subi para pegar o prêmio e disse: “eu agradeço o prêmio e espero que você, governador, não se ofenda com o que vou falar, nem sua companheira Dona Lu, mas eu tenho dois pedidos: que o senhor pense em uma polícia desarmada e o outro, mais utópico, numa policia menos desumana”. Acho que ele nunca mais foi nesse prêmio.

    Ponte – você se sente culpado?

    Cristiano Burlan – Eu não sou culpado pelos males do mundo, por todos os males que me afetam e afetam os outros. Quando eu comecei a fazer cinema, eu assumi minhas idiossincrasias e meus defeitos. Nesse momento, eu consegui respirar mais. Eu não vou conseguir resolver todos os problemas do mundo, os meus e dos meus parentes. Eu não tenho culpa de ter nascido numa família assim.

    Cena de “Mataram meu irmão”, em que Burlan esquadrinha o assassinato de Rafael, seu irmão  | Foto: reprodução

    Ponte – Mas acredita que poderia ter mudado o destino da sua mãe? E do seu irmão?

    Cristiano Burlan – No caso dele mais ainda. Eu me lembro do dia em que ele saiu. Eu ia jantar com uma namorada e eu pensei em não ir e chamar ele pra ir ao cinema, que era uma coisa que a gente fazia junto. Eu lembro do exato instante em que ele fechou a porta. E lembro da minha mãe, das coisas que ela falava. A figura desse cidadão [do assassino de Isabel Burlan] nunca me caiu bem. Mas não interferi, porque era uma escolha dela. E eu sou uma pessoa muito primitiva. Toda vez que eu me arrependo de alguma coisa, é porque eu não segui meu instinto. As grandes tragédias da minha vida tem a ver com isso: com momentos em que não segui o meu instinto.

    Ponte – Como espera que um filme sobre feminício chegue nesse mês de março, após o dia da mulher e em um momento em que a discussão sobre a violência contra mulher ganha tanto espaço?

    Cristiano Burlan – O filme não foi pensado por isso, porque seria muito oportunismo. Até quando eu falo sobre feminicídio eu me sinto um pouco inseguro. Não quero transformar a morte da minha mãe e a historia dela numa propaganda pra vender ingresso. Ao mesmo tempo eu acho que tenho uma responsabilidade com a história da minha mãe e de muitas mulheres. Eu acho que se o filme se justificar pelo fato de ter sido feito com recurso público, que seja para haver essa discussão, debate, reflexão, já está valendo.  Não é natural mulher apanhar. Eu tenho uma amiga muito refinada, falava 7 idiomas e morava em NY. Era casada com um cara bem sucedido e durante 7 anos ela apanhou de forma muito violenta. Só que ela nunca teve coragem de falar. Esse tipo de violência, não é só das classes operárias. Ela atinge toda a pirâmide social. E tem uma violência mais silenciosa, que é o machismo. Quando eu percebo que estou fazendo essa violência, fico muito mal, porque foi isso que destruiu parte da minha família.

    Cena de “Mataram meu irmão”, documentário sobre o assassinato de Rafael, irmão de Burlan pela polícia | Foto: divulgação

    Ponte – Existe uma distância temporal entre os filmes. Mas a sua presença física foi aumentando. Construção é contemplativo, no segundo você chega a chorar em um abraço com seu sobrinho e no último aparece muito. Por que essa mudança? Se sente mais confortável em estar dentro da história agora?

    Cristiano Burlan – Eu acho que quando você se coloca diante da câmera e não atras dela você cria outra relação. Em 2013, quando lancei “Mataram meu irmão”, o Eduardo Escorel me fez uns questionamentos que me fizeram pensar. Ele disse que eu tinha sido um pouco covarde, que eu estava mostrando meus parentes mas estava me expondo muito pouco e que essa relação era muito estranha. Quando você se coloca na cena, você tira a hierarquização da relação.

    Ponte – E a história de que você levou um tiro. Como foi isso?

    Cristiano Burlan – É muito louco porque me considero um bundão e levei uma facada e dois tiros. Um deles foi uma tentativa de chacina. Eu estava jogando futebol de salão, numa quadra depois da Cohab Adventista. Uns moleques chegaram e quiseram entrar. Eles tinham vindo de um assalto a banco e a Rota estava seguindo. Foi tudo muito rápido. Chegaram e começaram a atirar em todo mundo. Eu me joguei, caíram em cima de mim. Um tenente que tava envolvido em muita coisa deu um tiro na cabeça de cada um. Eu me lembro de ver o rosto dele. A bala me acertou de raspão. Muita gente morreu aquele dia, mas quem sobreviveu saiu correndo logo que a polícia foi embora. Porque a regra é que não pode ficar muito tempo nesses lugares quando acontece esse tipo de coisa. Teve um outra que eu estava num lance e acabei tomei um tiro de raspão na coxa. E tomei uma facada  quando estava na Legião Estrangeira. Um polinésio que quis brigar comigo 4h da manhã, eu reagi, ele puxou a faca e enfiou em mim. 

    Ponte – Você se considera um sobrevivente?

    Cristiano Burlan – Não. Eu tenho consciência de toda essa tragédia e pago um preço por isso. As pessoas morreram e eu continuo aqui. Dezesseis amigos meus foram mortos na periferia. Amigos próximos. Chacina, quando estavam cometendo crime ou a polícia  que matou. Naquela época você tinha na periferia de SP o que seria o início das milícias do Rio. Era um grupo de comerciantes que pagavam por fora para a polícia, para policiais de folga. Tinha a lenda de que eles andavam em um Opala. Se você encontrasse o Opala, você estava fodido. Se você estava puxando um fumo na esquina, era bandido. Aí os caras matavam e no final do ano saía uma lista com todos os mortos. E tinha a Rota com toda aquela coisa de atira primeiro e pergunta depois. 

    Ponte – Mas você acha que mudou alguma coisa?

    Cristiano Burlan – Não. A Polícia Militar é treinada para guerrilha urbana. Ela vê o cidadão como inimigo. A PM está aqui para proteger quem está em casa, no carro  blindado e quem tem dinheiro, o que nesse país são poucas pessoas. Eu fico pensando: e se o morro descer um dia? Tem uma frase que não é de nenhum filósofo, não, é de uma novela do Benedito Ruy Barbosa, do personagem Tião Galinha: “quem trabalha para comer, nunca come o pão de ninguém. Agora quem tem mais do que come, sempre acaba comendo o pão de alguém”. Quando nego escuta, acha que é Shakeaspeare. Não é. É Tião Galinha. Mas, enfim, eu não sei como eu sobrevivi a tudo isso. Então eu sou, de certa forma, um sobrevivente. Mas no fundo acho que eu só protelei minha tragédia, e que um dia ela vai chegar.

    Ponte – É uma visão pessimista…

    Cristiano Burlan – Eu gosto da vida. Mas veja só, eu tive uma vida fodida, venho de uma família que a maior parte já foi assassinada, vive a pobreza, fome, a porra toda. Eu já viajei boa parte do mundo, eu acordo de manhã e trabalho com as coisas que mais gosto que são teatro e cinema, e ainda me pagam pra fazer isso. Eu fico muito emocionado. Meu parâmetro de lucidez é o aluguel. Se eu paguei o do mês, dou uma relaxada e sigo pra batalha. Tento ter uma vida muito simples para não enlouquecer.

    “Perdi a ingenuidade, mas não a inocência. Se acontecesse isso, viraria cínico” | Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte Jornalismo

    Ponte – Você se arrepende de alguma coisa na sua trajetória?

    Cristiano Burlan – Eu não colocaria nesse lugar de arrependimento. Estou muito tranquilo comigo mesmo. Eu fiz o melhor que eu pude. Mas eu não sou uma pessoa leve. Eu não acordo e falo “bom dia luz do sol, bom dia luz do dia”. Até porque o sol vai falar: “caralho, vai se foder. O cara teve uma vida fodida e vem com essa”. Eu tento amenizar as coisas, mas ao mesmo tempo se eu apagar o que eu tenho de mais forte, que é essa relação primitiva com as coisas, essa energia que me mantém vivo, o que sobra? Se você olhar por determinada perspectiva é violenta, porque me consome. É a energia que os homens da minha família tinham. Meu pai e meu irmão eram muito talentosos e poderiam ter feito várias coisas na vida se estivessem vivos. Essa energia os destruiu. São meus demônios que eu tenho que controlar. Mas não me arrependo de nada, não. Eu estou vivo, né? Pô, só de estar vivo já é bom, eu poderia estar morto e enterrado. E tem mais, é muito burguês isso de culpa, de arrependimento. É como aqueles amigos que eu tenho que se drogam e depois se internam numa clínica. Adoraria ter dinheiro e poder beber, me drogar atá a última e depois me internar arrependido. Mas eu tenho boleto e conta pra pagar. Não dá.

    Ponte – E a morte do seu pai?

    Cristiano Burlan – As circunstâncias da morte do meu pai são ainda delicadas e misteriosas. Ele era pedreiro, trabalhador braçal, e procurei fazer um filme mais das memórias desse lugar. Eu trabalhei com ele em obras. E eu respeito essa coisa de um quase semi analfabeto conseguir levantar uma casa. É muito bonito isso. É um filme de lembranças, de memória. Foi vaiado em 2007. E foi lindo, se quiser saber. E anos mais tarde, em 2013, eu ganhei um prêmio com ele.

    Em “Construção”, Burlan recupera a memória do pai, que era pedreiro, em uma obra | Foto: reprodução

    Ponte – Como avalia o momento político que a gente está vivendo, a eleição de Bolsonaro?

    Cristiano Burlan – Eu falo para os meus parentes: ser pobre não é defeito, mas ser de direita é. O Brasil é um país racista, preconceituoso e esse é o lado ruim e a gente nunca falou sobre isso. Se tem uma coisa boa nessa merda toda é como os fascistas e os reacionários, racistas, saíram da caixinha. Alguns filmes que eu faço, eu tomo algumas posições, e amigos que estão ali se afastam quando percebem que podem perder benesses. Eu sou de família humilde, a possibilidade de eu me tornar cineasta é improvável. Isso tem mudado, ainda bem. Mas ainda é difícil. Eu sei minha classe, de onde eu vim. Não é por morar em apartamento confortável que vou me deslumbrar. Eu sei de que lado eu tô. Depois de “Mataram meu irmão” eu recebi muita ameaça de policial. Eu falava: “tá aqui meu endereço, quero ver quem vai me matar primeiro”. Eu não tenho medo, não. Eu me criei no Capão Redondo. Se eu amarelar por isso é muito assustador. E sabe o que é mais assustador? Não é o cara que é boçal, idiota, que votou no Bolsonaro e que compra uma arma. É o bom samaritano que fica em cima do muro. Isso é horrível. A pessoa que pode fazer a diferença e que não faz.  Politicamente é difícil a gente entender que momento a gente vive, mas nunca falamos tanto de política e vejo isso como um ponto positivo. Nos anos 80, 90 era uma alienação total. E se existe uma função a arte, nos filmes, talvez seja estar conectado ao seu tempo. Isso justifica o meu fazer. E eu sei muito bem que lado eu estou.

    Ponte – Qual lado?

    Cristiano Burlan – O lado de quem não tem dinheiro, que é fodido na vida, que não tem fala. Porque não tem como. Eu estaria me traindo, seria fraco, mentiroso. Vou contar uma coisa sobre o André Sturm [ex-secretário municipal de cultura de São Paulo]. Ele era da SP Cine e saiu na coluna da Monica Bergamo que os cineastas paulistas apoiavam ele e tinham escrito até um manifesto. Começamos a conversar um com o outro e vimos que ninguém tinha assinado o tal manifesto. Aí decidimos fazer uma carta dos cineastas que não apoiavam ele. Um monte de gente que inicialmente tinha dito que assinaria a crítica ao Sturm desistiu. No dia seguinte ele me bloqueou de tudo e meus filmes não entraram mais no SP Cine. É fácil parecer que é uma boa pessoa que pensa nos outros e parecer que está do lado certo da história, desde que você não tenha que perder benesses. Quando vai perder os privilégios, muita gente não coloca o seu na reta. Eu fiquei exposto. Mas ter assinado a carta me coloca no meu lugar, no lugar que eu quero estar. Eu tenho respeito na quebrada. Se eu chegar no Capão, eu tenho o respeito do bandido e do líder comunitário. É eles que quero saber o que pensam. Quando eu vou tomar uma atitude eu sempre me pergunto o que as pessoas do Capão pensariam de mim. Assim eu tomo minha decisão nesse lugar que é meu, que é mais próximo do real. Eu acho que a salvação do Brasil está nas periferias. A mudança não vai vir do intelectual de esquerda, do cara da USP. Vai vir da base. Ao mesmo tempo isso é ingênuo, porque se pensar nos grandes movimentos de transformação política ao redor do mundo na história, eles vêm de intelectuais burgueses. Mas está na hora de mudar.

    Serviço:

    “Elegia de um crime” está em cartaz no Cinesesc, em São Paulo.

    Horários: 17h e 21h (sala 1)

    Endereço: Rua Augusta, 2075, Cerqueira César

    Ingressos: R$ 17/R$ 20 – às quartas-feiras, R$ 12

    A partir de 28/3, estreia em circuito nacional.

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