Investigações caracterizam os neonazistas como pessoas jovens, narcisistas, de vida social regular e que se autointitulam como “homens rudes”
“Alguns conhecem a doutrina, conhecem a filosofia. Outros não conhecem muito. No dia do aniversário do Hitler, eles fazem festa, comemoram. Participam de movimentos”. Com essas palavras, Paulo César Jardim, delegado referência nas investigações sobre o neonazismo no Brasil, descreve os jovens neonazistas residentes no Estado. Há aproximadamente 15 anos, Jardim lidera o setor de inteligência da polícia civil que analisa o comportamento dos seguidores do movimento.
O delegado Jardim comenta que a repercussão de atos dessas pessoas se torna muito grande. “O que surpreende é como esse movimento de ódio, essa discriminação de raça pode, nos dias de hoje, ainda estar viva. Alguém odiar o outro pura e simplesmente por ele ser negro”, pontua Jardim. No início de agosto, em Charlotesville (EUA), por exemplo, manifestantes de extrema-direita se reuniram em marchas carregando tochas e fazendo saudações nazistas. O movimento neonazista nos Estados Unidos, que foi motivado pela remoção da estátua do general Robert E. Lee (comandante durante a guerra civil americana e opositor do direito a voto dos antigos escravos), reacende o questionamento levantado pelo delegado: “como pode ser prazeroso odiar?”.
O psiquiatra e psicanalista Carlos Augusto Ferrari, que possui estudos voltados à análise da maldade e do fanatismo, explica que as ideias supremacistas surgem de uma disfunção. “Não há o reconhecimento do outro como alguém que tem direitos, como alguém que é um ser humano, então, isso é uma distorção”, afirma.
Ferrari alega que para essas pessoas as referências são fundamentais. De acordo com ele, além da relevância do nazismo para narração da história global, eventos como os de Charlottesville também ganham uma visibilidade “idealizada”. Segundo o especialista, essas repercussões são capazes de gerar processos identificatórios nos indivíduos que já estão “sensíveis à doença”. A partir da ampla divulgação desses acontecimentos, o neonazista se espelha em tal conduta e acaba por assumi-la.
Para a psiquiatria, essa confusão entre o certo e errado é sintoma de um adoecimento. “É uma visão distorcida da realidade, mas que dentro desses indivíduos faz sentido”, afirma o psicanalista. Através da violência apresentada pela ideologia neonazista, uma “valorização do ódio” é desenvolvida. Ferrari esclarece que, quando os seguidores desconsideram o caráter malvado dessas atitudes, elas se tornam algo a ser imitado.
Sendo tratado pela psicanálise como uma doença, o distúrbio ganha proporções diferentes quando ocorre uma união desses indivíduos. A partir da formação desses coletivos, a propensão para atitudes mais violentas aumenta, assim como a força para atrair mais pessoas. É a este fortalecimento de ideias de ódio em agrupamentos que o psicanalista vincula a entrada no campo da cultura. Assim, “se isto acontece em nível do indivíduo, vai ser um indivíduo com uma doença, mas se isso vai para a cultura, ocorre um adoecimento da cultura”, pontua.
Quando o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães conseguiu, em 1934, levar Adolf Hitler à vitória do plebiscito para presidente e chanceler da Alemanha, o mundo foi marcado pela formação de uma ordem nazista. Concebido sobre ideais anti-semitas e nacionalistas, o grupo cresceu através da propaganda de ódio, se tornando notável a partir das dimensões que tomou, em parte, devido ao seu número de apoiadores. Para o psiquiatra, “não foi o primeiro e nem vai ser o último partido a agir desta forma doente, infelizmente”.
O indivíduo inserido no movimento neonazista
Foi através de atitudes violentas que o movimento mobilizou equipes de inteligência da polícia civil no Rio Grande do Sul. As pessoas que realizam e simpatizam com essas ações podem ser caracterizadas por um perfil em comum. Tanto o psiquiatra Ferrari, quanto o delegado Jardim descrevem os neonazistas como sujeitos que possuem aspectos psicológicos e comportamentais semelhantes entre si.
A postura desses membros, segundo o delegado, segue uma pose de “queixo empinado”. Em interrogatórios, eles mesmos se denominam como “homens rudes”. Paulo César Jardim conta que são personalidades extremamente narcisistas. As fotos exibidas dos detidos revelam as tatuagens como aspecto comum desses que aparecem com seus rostos desfocados. De acordo com o delegado, entre as figuras expostas nos corpos, muitas possuem significados específicos relacionados com a ideologia, “eles odeiam a tal ponto que chegam a escrever na própria pele”.
As investigações apontam que a maioria dos neonazistas monitorados possuem uma vida social dentro do cotidiano regular. “Alguns são estudantes, têm até empregos bons. Tem de tudo”, afirma Jardim. O psiquiatra e psicanalista Carlos Augusto Ferrari explica que ocorre uma ambivalência na personalidade desses indivíduos, isso faz com que, na maior parte do tempo, eles se relacionem de forma tranquila com familiares e amigos sem que esta “parte perversa” se destaque. Ainda que haja um distúrbio de ódio, o psicanalista considera importante esclarecer que haveria assim uma variação de grau em comparação a outras disfunções psicológicas. “Diferente de sociopatas, que são indivíduos que têm uma desconsideração absoluta pelo ser humano, nos neonazistas há uma desconsideração relativa”, esclarece Ferrari.
A faixa etária dos envolvidos, de acordo com o delegado, varia entre 17 a 30 anos. Ferrari complementa que a idade de atuação é natural por se tratar de um período em que as responsabilidades adultas têm de ser enfrentadas, o que, segundo ele, pode desestruturar pessoas que já possuem um distúrbio. Apesar da idade cronológica dos envolvidos, a intolerância dos neonazistas é tratada pelo psiquiatra como uma característica que se aproxima de um comportamento de “crianças desobedientes que não conseguiram desenvolver a noção do limite”.
Fanatismo
O fanatismo neonazista resultou em 6 milhões de mortes de judeus nas décadas de 1930 e 1940 e teve como justificativa inicial a crise que se estabelecia no país. Os adeptos dos ideais etnocêntricos apoiaram o genocídio semita, pondo como culpados, principalmente, os imigrantes e judeus. A ideia de responsabilizar os grupos que na verdade sofrem a violência persiste no neonazismo. O delegado Jardim conta que, em interrogatórios, presenciou detidos qualificando suas vítimas como baratas e subespécies, como merecedores das agressões.
Ferrari afirma que os argumentos subjacentes se baseiam na ideia de que os outros são vistos como adversários que iniciam esta disputa. “Quando essas pessoas que têm esse pensamento fanático encontram um inimigo e colocam neste inimigo esta raiva projetada, passam a sentir como se esse grupo que estivesse atacando-as”, afirma o psiquiatra.
O ódio que produziu a ideologia supremacista se mostra resistente às décadas e com origem mais profundas do que os fundamentos da Segunda Guerra Mundial. De acordo com o psicanalista, apesar do histórico do movimento, não há elementos que possam afirmar a relação direta entre essa índole e determinado grupo étnico. “O fanatismo é uma doença do ser humano”, estabelece Ferrari.
Para reiterar que as justificativas não se sustentam, o psiquiatra destaca que existem raízes mais profundas: “a questão da raça é só uma racionalização, porque o que efetivamente está por dentro é um desprezo pelo outro”.
Neonazismo em Porto Alegre
Os casos de neonazismo em Porto Alegre aconteceram por ocasião de brigas de rua entre nazis e punks, relembra o delegado. No começo da década de 2000, época em que Jardim trabalhava no Departamento de Polícia Metropolitano (DPM), ele recebeu denúncias do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH) apontando a existência de movimentos neonazistas em Porto Alegre. Ele não acreditava. “Nazismo no Rio Grande do Sul? Nazismo no Brasil? O Brasil é o país do futebol, samba. Não é bem por aí”, conta. Entretanto, em 2005, quando se comemorava os 60 anos do fim do holocausto, Porto Alegre sofreu um ataque neonazista na esquina das ruas República e Lima e Silva, no bairro Cidade Baixa. Para o delegado Jardim, os neonazistas estavam passando uma mensagem, “vocês estão comemorando o fim do holocausto, mas nós não morremos. Nós estamos aí.”
Após esse ataque, Jardim criou um grupo de combate ao neonazismo. Começou a estudar como os neonazistas pensam desde a raiz e se especializou. Com a prática, também adquiriu conhecimento pelas conversas com os detidos. Segundo ele, os supremacistas só aceitam dialogar, quando sentem que o interlocutor está habilitado.
O julgamento do ataque neonazista na rua Lima e Silva está tramitando há 12 anos. Na madrugada do dia 8 de maio de 2005, Rodrigo Fontella Matheus, Edson Nieves Santanna Júnior e Alan Floyd Gipsztejn foram atacados por 14 neonazistas. Todos ainda esperam pelo julgamento. Dentre estes, quatro irão a júri popular por tentativa de homicídio, formação de quadrilha e preconceito. O processo judicial já ouviu 16 testemunhas de acusação e 26 de defesa.
Os indiciados inicialmente foram presos em regime preventivo. O delegado conta que nas passagens pela prisão, os líderes neonazistas não apresentaram nenhum problema, pois compraram sua segurança através de ajuda com advogado, comida e dinheiro. Desde que conseguiram o direito de responder ao processo em liberdade, alguns continuam efetuando ataques. O processo, marcado para junho de 2013, foi suspenso porque não encontraram dois dos quatro réus.
O delegado comemora o julgamento do caso no Rio Grande do Sul pela 2ª vara do Júri. “Pela primeira vez, um grupo de neonazistas vai sentar no banco dos réus. Porque nenhum foi preso por ser neonazista, mas por crimes tipificados no código penal”, explica. Segundo a assessoria de imprensa do TJRS, o processo está aguardando decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) para os réus irem a julgamento.
O número de vítimas de ataques em geral não é divulgado pela polícia. A justificativa é de que o dado serviria como argumento para fortalecer o movimento neonazista – que tem grande engajamento nas mídias sociais através de publicidade desse tipo. “Tem muita gente que é a favor. Pode-se escolher a classe social. Quantas pessoas acham que os nazistas estavam certos e tinham que matar os judeus?”, questiona o delegado. Já o número de indiciados, conforme Jardim, está em torno de 40 a 50, desde a década de 70 (início do movimento no RS) até hoje.
Além da tentativa de homicídio dos judeus na Lima e Silva, em 2005, o delegado Jardim ainda teve participação em outros casos ligado aos neonazistas de Porto Alegre. Em 2009, um segurança negro da Trensurb foi agredido na Estação Mercado, no centro de Porto Alegre, por uma dupla de neonazis gaúchos. O delegado Jardim caracterizou esse tipo de agressão como eventual: “não é planejado. Eles estão na rua e vão massacrar”. Entretanto, o movimento neonazista não se caracteriza apenas por ataques eventuais e não planejados: também em 2009, a polícia da capital conseguiu antecipar um ataque que tinha como alvo a Parada Livre (manifestação pelos direitos dos LGBT). A manifestação, que acontece na Redenção, é um dos alvos mais visados – juntos com as sinagogas – pelos neonazistas porto-alegrense, contando com maior observação pela polícia.
Já entre 2014 e 2015, um grupo do neonazismo atual – o batalhão ucraniano anti-soviético chamado de Batalhão Azov – recebeu força de vários lugares do mundo. Como aponta este especial da Zero Hora, o batalhão Azov tinha como objetivo apoiar a Ucrânia na Guerra da Criméia, travada entre russos e ucranianos por um território estratégico. O confronto resultou na anexação da Crimeia ao lado russo, com lei sancionada pelo presidente Vladimir Putin. Dentre todos os reforços recebidos pela tropa do Azov, alguns foram interceptados pelo delegado Jardim, “esse é o sonho de qualquer polícia do mundo: prevenir. Nós estávamos monitorando o trajeto e sabíamos que tinha vindo um italiano para conversar com eles”, comenta o delegado. Após a autorização dos cinco mandados de busca, em Caxias, Cruz Alta, Erechim, Porto Alegre e Canoas, nesta última a polícia conseguiu desarticular a célula: “isso é o ideal”, reflete Jardim.
“Estão sendo monitorados permanentemente. Sabemos onde andam, sabemos quando mudou de trabalho e fazemos questão de mostrar para eles que sabemos”. A afirmação de Jardim aponta o monitoramento extensivo que a polícia realiza contra os neonazistas como o principal fator que ajudou a antecipar os atentados planejados aqui. Em um desses monitoramentos preventivos, a polícia conseguiu antecipar um atentado contra o senador Paulo Paim (PT-RS). O delegado conta que na execução de um mandado de busca, a polícia encontrou um “QG” dos neonazistas. No local, foi encontrado um caderno com nomes de alvos do grupo, entre eles, o nome do senador petista. “No começo, o senador não confiou no aviso e em função do caso, fui a Brasília e apresentei o material para ele.”, relembra o delegado.
O senador Paulo Paim confirma “o delegado Paulo César Jardim veio me alertar que eles tinham achado meu nome em um caderno de alvos em um QG neonazista. Entretanto, para quem está na caminhada, não é que seja mais valente que os outros, mas se formos recuar toda vez que alguém me ameaçar, eu não teria chegado aonde cheguei”. Após agradecer o aviso do delegado, Paim começou a receber ameaças na internet e no seu gabinete. Além do senador, outros parlamentares começaram a receber as mesmas ameaças. Isso fez com que, em 2010, a convite de Paim, então presidente da Comissão de Direitos Humanos (CDHM), Jardim fosse a Brasília palestrar sobre o assunto.
O Estatuto da Igualdade Racial
Além do histórico de luta no movimento negro, Paim também foi visado por ter sido o senador mais votado do RS em 2010. Também em 2010, foi sancionada, pelo então presidente Luís Inácio Lula da Silva, a lei nº 12.288, que pretende garantir a igualdade de oportunidades à população negra no Brasil. Criada pelo senador, a proposta percorreu 10 anos até conquistar a aprovação e a consequente promulgação feita por Lula. O projeto do senador petista surgiu quando ele fez parte da Campanha Internacional pela Libertação de Nelson Mandela que estava no cárcere. “Fui constituinte em 1987 e 1988 e lá, no encerramento dos trabalhos da constituinte, conseguimos aprovar uma carta dos constituintes brasileiros, exigindo a libertação de Nelson Mandela”, reconstitui Paim.
Na chegada na África do Sul, Paim e mais quatro parlamentares foram recebidos por Winnie Mandela, ativista, política africana e casada com Nelson, na época. “Quando eu entreguei a carta da delegação brasileira, ela me deu, em troca, o chamado “Grito da Liberdade”, documento do povo sul-africano pela liberdade. Achei os artigos muito interessantes e que cabiam no Brasil, devido ao preconceito que existe aqui contra negros, índios, judeus, sem-terra, LGBT…”. Baseado nisso, além de já ter histórico no movimento negro, Paim tornou-se relator da Lei Caó (7437/85), que caracterizou o crime de racismo como inafiançável. “Sei que o estatuto não é completo. Não existe lei que não possa ser aperfeiçoada”.
Como prevenir?
Os anos de investigações sobre o movimento neonazista no Estado mostram que o trabalho de prevenção deve ser valorizado. A polícia do mundo todo é elogiada quando prende o autor de um crime, mas o ideal é que esses fatos sejam evitados. “A maior glória para nós aqui no Rio Grande do Sul e aqui em Porto Alegre é que a gente tem evitado que as tragédias aconteçam”, comemora.
Apesar do delegado relatar que neonazistas tendem a sair do movimento após os 30 anos de idade, Ferrari alega que não há, dentro do ponto de vista da psicanálise, a possibilidade de regeneração de um indivíduo que já tenha se corrompido pela ideologia de ódio. “Em termos de tratamento nós teríamos que pensar em prevenção”, considera. Dentro dos meios capazes de realizar esta antecipação, o psiquiatra afirma que o mais importante é que as famílias criem seus filhos dentro de ambientes de zelo. O psicanalista defende que esta fase é importante, pois quando uma criança cresce em um ambiente desprovido de amor, ela conhecerá o ódio.
No contexto voltado à educação de base, Paim concorda com Ferrari e acrescenta que o combate a todos os tipos de preconceito é a melhor forma de resolver o problema dos neonazistas no país. “Primeiro, como o delegado me disse, é importante conhecer os fatos, saber que existem e como podemos trabalhar. Segundo, tudo passa pela educação.” O senador ainda criticou o projeto Escola sem Partido, pois segundo ele a juventude fica amordaçada e calada: “como formaremos os estudiosos assim? É importante termos, do jardim à faculdade, esse combate ao preconceito”.
*Editorial J/Laboratorio de Jornalismo Convergente da Famecos/PUCRS