Decisão do STF contra revista íntima vexatória deixa brecha para continuidade da prática

    Ministros reconheceram que revista íntima vexatória é inadmissível, mas abriram possibilidade para o procedimento “em casos excepcionais”. Especialistas ouvidos pela Ponte dizem que prática é violência de gênero do Estado

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    Ministros do STF definiram tese em sessão realizada na quarta-feira (2/4) | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

    O Supremo Tribunal Federal (STF) perdeu a chance de acabar com as revistas íntimas vexatórias. É o que avaliam especialistas ouvidos pela Ponte. sobre a decisão tomada em sessão nesta na quarta-feira (2/4). Apesar de os ministros terem considerado a prática “inadmissível”, a tese aprovada deixa brechas para que, na prática, visitantes de pessoas presas sigam sendo inspecionados.

    A revista íntima é um método em que quem vai visitar uma pessoa privada de liberdade tem que tirar a roupa ou parte dela. A pessoa tem as cavidades corporais — como ânus e vagina — inspecionadas. Há casos em que são usados espelhos ou que se pede para a pessoa agachar ou dar saltos.

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    Os ministros do STF classificaram a prática como “inadmissível” e entenderam que a prova obtida nesse tipo de procedimento é ilícita. Foi concedido prazo de 24 meses para que as unidades prisionais comprem e instalem equipamentos como scanners corporais, esteiras de raio X e portais detectores. Estes devem substituir o procedimento. 

    Ocorre que a tese aprovada tem lacunas. Os ministros reconhecem que, em casos excepcionais, o visitante pode ser submetido a revista íntima. O texto diz que é vedado que ela seja vexatória, o que é questionado pelos especialistas ouvidos pela reportagem. “Ela é sempre humilhante. Existe algum jeito de não ser humilhante? Desnudamento, exames invasivos, revista íntima por si só já causam humilhação”, diz Marina Dias, diretora executiva do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD).

    As revistas íntimas têm um público prioritário: mulheres. Segundo estudo da Rede Justiça Criminal, elas são 75% das visitas submetidas ao procedimento. O mesmo estudo, divulgado em outubro do ano passado, mostrou que em apenas um a cada 3.330 revistas são encontrados objetos ilícitos. 

    Para Lay Venancio, comunicadora ativista no coletivo Por Nós e na Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (RENFA), a violação é óbvia. “Como é que em 2025 a gente ainda está falando sobre um tipo de revista desta forma, que condiciona corpos específicos a esse tipo de violência e violação pelo simples fato de estar tentando acessar pessoas que estão em privação de liberdade?”, questiona.

    Brechas

    Para os ministros, os casos excepcionais seriam aqueles em que o equipamento eletrônico estiver indisponível. A revista é justificada quando houver “indícios robustos de suspeita” e o visitante deverá concordar em ser submetido ao método. A tese chega a descrever o roteiro que a revista deve seguir. Ela deve ser feita em local exclusivo para isso e, em casos de o visitante ter de ficar nu e ser submetido a exame, a preferência é que isso seja feito por um profissional de saúde.

    Outra brecha está no poder dado aos agentes públicos em barrar visitas. Um “indício robusto” de que a visitante carrega algum material proibido pode justificar essa decisão. Os ministros chegam a descrever o que seriam esses indícios: informações prévias de inteligência, denúncias e comportamentos suspeitos.

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    Excessos ou abusos cometidos por agentes públicos durante esse procedimento poderão tornar ilícita a prova obtida por meio dele. Railda Alves, co-fundadora da Associação de Amigos e Familiares de Presos (Amparar), diz não crer que haja um preparo das pessoas que realizam esse procedimento. A associação recebe inúmeros relatos de visitantes barrados com base na suspeita dos funcionários, mesmo que infundados. “Os familiares de presos são tão invisibilizados que para eles [ministros] não importa quem sofre”, avalia Railda. 

    Marina também enxerga que a decisão deixou de fora uma fiscalização sobre as condutas.  “Quando você vai olhar para as práticas em rincões do Brasil, não é tão simples. Quem vai fazer o controle da legalidade dessas revistas? São os mesmos juízes que estão propagando uma política de encarceramento em massa”, pontua.

    Violência, tortura e humilhação

    Lay e Marina concordam que existe uma importância na decisão do Supremo. Os ministros assumem que esse procedimento é inadmissível. Contudo, as brechas deixadas na tese não permitem o fim do procedimento. “Dizer que não pode, que é ilegal, que é vexatório, mas aí vai colocando esses ‘senões’ e isso vai criando margem para que as coisas continuem acontecendo”, fala Marina.

    Contudo, a decisão contrasta com um posicionamento do próprio STF. Em outubro de 2023, os ministros reconheceram as violações massivas de direitos que acontecem no cárcere brasileiro. O fim da prática violenta entraria na esteira deste entendimento. Marina avalia que os ministros tratam a questão como um caso de medida de segurança, “e não é isso. É uma violência de gênero praticada pelo Estado”. 

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    “E essa é uma faceta muito grave da inconstitucionalidade do sistema prisional. É uma violência de gênero, é um método de tortura, de humilhação e de ilegalidades que acontecem em todos os finais de semana dentro das unidades prisionais”, completa. Lay lembra que as filas das visitas são formadas em sua maioria por senhoras, mães, tias e irmãs. São esses os corpos violados nas revistas. “É algo que não deveria estar sendo legalizado, mas sim proibido em todas as instâncias”, diz. 

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