Corte decidiu que polícia não pode abordar com base na cor da pele, mas maioria dos ministros negou absolvição de homem negro condenado por tráfico ao portar 1,53 grama de cocaína
A maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) mantiveram, na última quinta-feira (11/4), a condenação por tráfico de drogas contra um homem negro, que foi abordado pela Polícia Militar portando 1,53 grama de cocaína, ao entenderem que não houve discriminação na abordagem com base na cor da pele.
Na ocasião, o debate do perfilamento racial fez com que os ministros fixassem uma tese de julgamento de que a polícia não pode abordar com base em características subjetivas como a cor de pele. Isso significa que os tribunais podem decidir sobre casos semelhantes aplicando essa orientação do STF, mas não é algo obrigatório. Especialistas entrevistados pela Ponte avaliam que a decisão dos ministros não traz mudanças sobre o assunto e ainda é contraditória.
A tese de julgamento que foi fixada pelo STF é: A busca pessoal, independente de mandado judicial, deve estar fundada em elementos indiciários objetivos de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, não sendo lícita a realização da medida com base na raça, sexo, orientação sexual, cor da pele ou aparência física.
“O Supremo perde a oportunidade de, de fato, trazer uma decisão que produziria efeitos efetivos de proteção à população preta, pobre e periférica, e ele deixa de fazê-lo quando não reconhece como racista uma abordagem em que os policiais declararam a cor da pele como um elemento para a suspeição”, critica Priscila Pamela dos Santos, que é vice-presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), uma das entidades que estava como amicus curiae (“amigo da corte”) nesse processo a fim de oferecer subsídios técnicos para que os ministros pudessem avaliar antes de votarem.
Para ela, os ministros não inovaram no que já é determinado no artigo 244 do Código Processo Penal (CPP), que determina que a busca pessoal independerá de mandado “quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito”.
O defensor público Pedro Henrique Pedretti, que levou o caso ao STF em 2021, também se viu decepcionado com o resultado do julgamento pela mesma razão. “A sensação que fica é que os ministros em tese até reconhecem que o Brasil padece de um racismo estrutural, de que existe perfilamento racial na atuação da polícia, mas os que negaram a nulidade das provas parecem exigir praticamente que o policial indique no inquérito que só abordou a pessoa porque ela era negra e é muita ingenuidade alguém achar que isso vai acontecer, nenhum policial nunca vai declarar isso”, afirma.
Ele diz que levou o caso à Corte por ser um exemplo explícito pouco comum de perfilamento racial. “Não tinha nenhuma necessidade de os policiais falarem da cor de pele do sujeito. Eles poderiam falar ‘vi um homem em situação de venda de droga’. Mas não, eles falam ‘vi um homem negro que estava lá em um ponto de droga'”, explica. “Então, essa mera menção à cor da pele, quando a gente coloca isso dentro do contexto brasileiro, estuda o que é o racismo estrutural e se debruça sobre os dados estatísticos que a gente tem, a gente inevitavelmente chega à conclusão de que aquilo ali foi uma atuação pautada em perfilamento facial, como a polícia costuma, infelizmente, fazer muitas das vezes.”
O caso aconteceu em 2020, na cidade de Bauru, no interior do estado de São Paulo. Dois policiais militares declararam no depoimento na delegacia que, durante patrulhamento, viram “um indivíduo de cor negra que estava em cena típica de tráfico de drogas, uma vez que estava parado em pé junto ao meio fio da via pública e um veículo estava parado junto a ele como se estivesse vendendo/comprando algo”. O homem, que vamos chamar de João, ao ter visto a viatura, “mudou o semblante” e saiu jogando algo no chão e o carro saiu em marcha, segundo os agentes.
Os PMs disseram que ficaram observando João porque “aquele local é conhecido ponto de tráfico de drogas” e que outras pessoas foram presas ali no mesmo dia. Por isso, resolveram revistá-lo, encontrando com ele cinco pinos de cocaína, que somavam 1,53 grama, e R$ 80. João disse, porém, que era usuário de drogas.
Em primeira instância, ele foi condenado a sete anos e 11 meses de prisão em regime fechado. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) negou o recurso da Defensoria e o caso foi para o Superior Tribunal de Justiça (STJ). O STJ, por sua vez, reduziu a pena para dois anos e 11 meses em regime aberto, mas não anulou a sentença por não acatar a tese de que houve “perfilamento racial.” Com isso, Pedretti recorreu ao STF.
Dos 10 ministros que votaram, apenas Luís Roberto Barroso, Luíz Fux e Edson Fachin, que era o relator, consideraram que as provas no caso não poderiam ser consideradas porque a abordagem foi discriminatória. Já os demais seguiram o voto do ministro André Mendonça, que entendeu que o caso de João não se aplicava a tese porque ele teria mudado de comportamento ao ver os policiais e estaria em conhecido ponto de venda de drogas, o que indicaria outros elementos para a atuação da polícia. A ministra Carmem Lúcia foi a única ausente no julgamento da semana passada.
Priscila Pamela, do IDDD, aponta que os critérios descritos por Mendonça, por não considerarem a divergência de tratamento da polícia em determinados locais e com os alvos preferenciais dos enquadros, continuam sendo subjetivos e não objetivos. “Se é uma pessoa branca parada num lugar não se considerará um ponto específico de tráfico, mas uma rua em que há diversas pessoas transitando, paradas, conversando, ao contrário se se tratar de uma pessoa preta, em que o cenário será entendido como ponto de tráfico?”, diz. Ela completa: “E dizer que a pessoa mudou de comportamento ao visualizar a polícia, além de continuar sendo um critério subjetivo, revela a incompreensão do que acontece com a população preta, pobre e periférica, que é cotidiana e sistematicamente marginalizada e que teme sim a polícia”, afirma em referência a uma pesquisa feita pelo próprio IDDD que identificou que negros tinham quase cinco vezes mais chances de serem enquadrados do que brancos e, quando o são, o baculejo acontece de forma mais violenta.
Autora de A Política do Enquadro, a advogada e pesquisadora Jéssica da Mata concorda e destaca que o depoimento de policiais, a chamada “fé pública”, também costuma ser utilizado pelo Judiciário como forma única de prova. “A gente sabe que hoje pessoas de classe média, média alta, solicitam a entrega das drogas que elas compram. Elas nem sempre precisam se deslocar até um ponto de venda de drogas. Isso já é uma coisa, já coloca uma divisão de classe aí”, sinaliza. “Usuários que fazem a compra deles em locais de venda de droga, geralmente são lugares periféricos, até porque eles são ditos locais de venda de droga a partir de uma visão policial.”
E tudo isso parte de uma cadeia que valoriza a prisão como meta de produtividade e de ocupação de território, que favorece a corrupção policial, ao invés de uma atuação baseada em inteligência, segundo ela. “O direcionamento da atuação policial é ficar rondando os arredores desses locais onde eles reputam serem pontos de venda de droga para realizar abordagens. Qual é a lógica que está envolvida nisso? É uma lógica que beneficia o flagrante individual em vez de ações de inteligência capazes de afetar atores mais importantes na cadeia dos mercados ilícitos e é também uma atuação que se perverte nessa lógica e muitas vezes está mais interessada em realmente não só realizar prisões, mas em extorsão”, explica.
Pedretti entende que a decisão do STF vai na contramão de outro debate também em pauta na Corte sobre regulamentar o porte de drogas a partir de uma quantidade para diferenciar o usuário do traficante, já que, mesmo se houver uma delimitação em gramas, por exemplo, não vai atingir o problema do racismo nas polícias. “O processo de tráfico de réu pobre no Brasil é uma linha de montagem. Basicamente, palavra dos policiais, dois policiais lá no inquérito, é copiada e colada. Na audiência, eles leem o inquérito e repetem na audiência o que aconteceu. Ignora-se a palavra do réu e condena-se o réu pelo tráfico. Raramente tem outras provas além da palavra dos policiais”, critica. “A palavra do policial continua sendo muito subjetiva e o Poder Judiciário continua sendo muito tolerante com essa subjetividade na atuação policial.”
Os ministros também não consideraram o princípio de insignificância para a quantidade de droga apreendida. “Por causa de 1,53 grama de cocaína, colocou-se uma pessoa presa quase oito anos. Lembrando que nada disso é de graça: o Estado paga essa prisão, o preso custa para o Estado. É uma quantidade ínfima de droga, que se fosse apreendida como um branco de classe média ou rico, muito provavelmente, até com certeza, podia ser considerada para uso pessoal”, afirma Pedretti.