Para Superior Tribunal de Justiça, descoberta de drogas não autoriza polícia a entrar na sua residência sem consentimento e é preciso registrar autorização em áudio e vídeo; reportagem da Ponte foi usada em argumentação do ministro Rogerio Schietti
Na última terça-feira (2/3), o Superior Tribunal de Justiça decidiu que a descoberta de drogas não autoriza polícia a entrar em uma casa sem consentimento e que as polícias têm que gravar a autorização dos moradores para entrada em suas residências. Ambas as decisões foram tomadas pela Sexta Turma da corte.
Na primeira decisão, assinada pelo ministro Nefi Cordeiro, relator do habeas corpus, lembrou que é preciso “fundamentos razoáveis da existência de um crime permanente” que autorize que a polícia entre em uma residência.
O réu do pedido analisado havia sido condenado a 5 anos de prisão por tráfico de drogas. Mas, para o STJ, os policiais militares entraram ilegalmente na residência para realização de buscas. O relator destaca que não houve autorização prévia do morador para que a entrada fosse realizada.
A decisão também apontou para o fato de que os PMs alegaram no processo que receberam uma denúncia anônima de tráfico de drogas no local. Como não houve investigação prévia, afirmou o STJ, não há como afirmar que havia “elementos concretos que confirmassem ocorrência do crime de tráfico de drogas dentro da residência”, e o acusado foi absolvido.
Na segunda decisão, assinada pelo ministro Rogerio Schietti Cruz, relator do caso, o STJ decidiu que os agentes policiais, quando precisarem entrar em uma residência para investigar a ocorrência de crime e não tenham mandado judicial, devem registrar a autorização do morador em vídeo e áudio, como forma de não deixar dúvidas sobre o seu consentimento.
O ministro Schietti destacou o 5º artigo da Constituição Federal, que aponta o direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, além de apontar que o ingresso em uma residência depende de justa causa. Para Schietti, a autorização judicial para a busca domiciliar, mediante mandado, é o caminho mais acertado.
Schietti argumentou, ainda, que “são frequentes e notórias as notícias de abusos cometidos em operações e diligências policiais, quer em abordagens individuais, quer em intervenções realizadas em comunidades dos grandes centros urbanos”.
Para ele, é “ingenuidade, academicismo e desconexão com a realidade” dar valor absoluto ao depoimento dos policiais, que são os apontados responsáveis pelos atos abusivos. “E, em um país conhecido por suas práticas autoritárias – não apenas históricas, mas atuais –, a aceitação desse comportamento compromete a necessária aquisição de uma cultura democrática de respeito aos direitos fundamentais de todos, independentemente de posição social, condição financeira, profissão, local da moradia, cor da pele ou raça”, completou.
O ministrou usou três exemplos de reportagens jornalísticas para argumentar o seu voto. Um deles foi uma reportagem feita pela Ponte em novembro de 2019, que apontou que policiais militares da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), a tropa mais letal da PM paulista, entraram em apartamentos sem mandado e fazendo revistas aleatórias de pessoas nos corredores de um prédio no Glicério, centro da cidade de São Paulo.
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Diante dessas situações, decidiu o ministro, os policiais só podem entrar nas residências, sem mandado, com o consentimento expresso e registrado do morador. “Em todo caso, a operação deve ser registrada em áudio-vídeo e preservada tal prova enquanto durar o processo”, apontou Schietti.
Para Hugo Leonardo, presidente do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), as decisões “firmes” do STJ devem coibir situações de abordagens ilegais. “Com essas denúncias anônimas, que não são anônimas, forja-se denúncias, aborda-se pessoas e localiza-se armas ou drogas e aí essas pessoas são levadas em suas residências e há um documento consagrando essas entradas franqueadas, que também não são franqueadas”.
A expectativa, continua Hugo Leonardo, é que isso impacte diretamente na ação das polícias. “A polícia só faz na rua aquilo que sabe que não vai ser anulado na Justiça. Se a Justiça começar a fazer o seu papel, começar a exigir o respeito às leis, as polícias tendem a agir de acordo com elas, porque saberão que as prisões serão relaxadas posteriormente”.
Para isso, completa, os advogados criminalistas e as defensorias públicas devem usar essas decisões como “parâmetro e paradigmas de cumprimento da lei”. Mas não deve parar aí.
“Os tribunais inferiores, e em especial o Tribunal de Justiça e os juízes, também devem ficar atentos e seguirem à risca as decisões do STJ, haja vista que é o tribunal por excelência do país e que tem a competência de consolidar divergências. Uma decisão dessa, saindo do STJ, tende a ser acatado porque deve ser acatado pelas instâncias inferiores”.
Por fim, Hugo Leonardo aponta que essas decisões falam diretamente contra a guerra às drogas, que, para ele, “é um fetiche do direito penal repressor”. “O Estado policialesco sempre utilizou essa lógica para aumentar e incrementar o estado punitivo e a repressão, esse estado de controle permanente da população mais pobre”.
“A guerra às drogas é uma mentira, nada mais é do que uma utilização do braço armado do Estado para efetivar de uma forma violenta esse controle social que recai sobre a população mais pobre”, finaliza.
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Esse também é o entendimento da advogada Josianne Pagliuca dos Santos, especialista em direito penal e criminologia. Para ela, o STJ reconhece que há “inúmeros precedentes” de que a entrada em residência deve ocorrer apenas quando existir fundada razão.
“Não basta apenas dizer que o crime é permanente, porque, neste caso, é possível agir de forma mais cautelosa, buscando ‘maior segurança e a melhor instrumentalização da investigação'”, explica.
O registro audiovisual, continua Pagliuca, deve ser feito quando há o livre consentimento. “Uma das críticas que vi nesses dias é que ‘ah, mas a polícia não vai ter câmera em todo flagrante’. Ora, se a polícia bater na porta de minha casa e pedir para entrar e eu concordar, ela pode até pedir para eu mesma gravar o consentimento com meu celular e mandar para ela”.
“Se a pessoa moradora está consentindo com a entrada, genuinamente, ela pode contribuir para esse registro. Isso sem falar que provavelmente os próprios policiais devem ter telefones em seus bolsos capazes de fazer o registro”, completa.
A advogada lembra que é comum que a “denúncia anônima” seja citada de forma abrangente e, ao questionar mais detalhes, os policiais digam que nada foi registrado por se tratar de denúncia anônima, que busca proteger a identidade do denunciante.
“Os policiais deixam de assumir risco de cometer crime de abuso de autoridade. Se não é encontrado ilícito no lugar, a polícia vai assumir ter praticado um crime? Vai deixar por isso mesmo? Vai fazer uso de seus ‘kit flagrantes’ pra justificar a ação?”, questiona.
“Se no passado a polícia agia com muita certeza de que suas eventuais ações ilícitas não seriam investigadas, ou provadas, com a tecnologia de hoje essa certeza não existe mais e o risco da polícia responder por seus atos ilegais é cada vez maior”, aponta Pagliuca.