Especialistas criticam texto que exige aviso prévio de 5 dias e criminaliza uso de máscaras de maneira abrangente, além de equiparar objetos e armas
Um decreto assinado pelo governador de São Paulo, João Doria (PSDB), e publicado no Diário Oficial deste sábado (19/1), regulamenta uma lei de 2014 (nº 15.556), que restringe o uso de máscaras ou “qualquer outro paramento que oculte o rosto da pessoa em protestos”. Em um dos artigos, existe a permissão para levar pessoas que estiverem mascaradas para a delegacia e, em caso de a pessoa estar sem identificação, o decreto dá poderes para a polícia ligar até mesmo para o empregador do manifestante.
A Artigo 19 e a Conectas, ONGs especializadas em direitos humanos, apontaram pelo menos 3 pontos que tornam o decreto inconstitucional: a necessidade de aviso prévio com antecedência de 5 dias e, nesse sentido, submeter o trajeto a aprovação do Estado; a restrição ao uso de máscaras e, ainda, a criminalização do objeto em si; e a criação de uma categoria de armas que não existe, já que o texto equipara armamentos letais e objetos lícitos.
A advogada Camila Marques, coordenadora do Centro de Referência Legal em Liberdade de Expressão e Acesso à Informação da ARTIGO 19, explica que a regulamentação da lei, quando aprovada ainda em 2014, deveria ter sido feita no prazo de 180 dias, mas isso não aconteceu. “É importante observar que esse decreto é reflexo de uma série de movimentações dos legislativos estaduais e das câmaras de vereadores, que ganharam força depois das jornadas de junho de 2013, no sentido de apresentar projetos de lei e aprovar leis que traziam regulamentações restritivas ao direito de protesto. Foram incontáveis leis que foram aprovadas no sentido de regulamentar o aviso prévio e de tratar da proibição do uso máscaras muito na toada de toda a reverberação midiática que a questão dos black blocs teve naquele ano. Alckmin sancionou, mas não regulamentou. E agora o atual governador Doria fez isso, mas há vários problemas”, afirmou.
Segundo o advogado Rafael Custódio, coordenador do Programa de Violência Institucional da Conectas Direitos Humanos, a Constituição Federal não estabelece qualquer tipo de exigência de autorização prévia para manifestação. Ele considera grave a obrigação de submeter o trajeto às autoridades policiais. “O decreto estabelece que o deslocamento precisa ser alinhado com a Polícia Militar. Ou seja, o que ele está dizendo na prática é que a PM precisa dar uma espécie de aval para o trajeto, situação inconstitucional. Não cabe ao poder público dizer se o protesto deve seguir o caminho a ou b, esse é um direito dos próprios manifestantes, claro, respeitando os princípios da razoabilidade”, destaca.
Camila Marques, da Artigo 19, o aviso prévio deveria servir para viabilizar o protesto, mas na prática não é isso que acontece. “Desde 2013, a gente tem visto que o aviso prévio traz uma questão restritiva e burocratizante. É totalmente incoerente com muitas dinâmicas de organizações sociais e ao acontecimento de atos espontâneos, que acontecem em reação a fatos políticos, sociais. Na segurança pública, por exemplo, a gente vê pessoas indo para as ruas como imediata reação a uma ação de um agente policial. A delimitação do trajeto feito na hora é uma forma de assegurar a proteção dos manifestantes, porque a gente sabe que, muitas vezes, quando a polícia sabe antes do protesto o itinerário, eles bloqueiam ruas próximas, passam a pensar em uma logística que facilite a repressão e a violência”, critica.
Nos dois atos organizados pelo MPL (Movimento Passe Livre) contra o aumento da tarifa do transporte público em SP, neste ano, a reportagem da Ponte mostrou exatamente isso: no primeiro, em 10 de janeiro, a PM impediu que os manifestantes chegassem até a Praça do Ciclista, na Avenida Paulista, onde aconteceria a dispersão; na quarta-feira (16/1), houve forte repressão antes mesmo de o protesto começar, com abordagens e detenções, e tentativa de impedir a saída do ato.
Para os dois especialistas, existe também uma questão bastante sensível no decreto que é a abrangência das proibições e o uso da palavra “reunião”. “Ele está regulamentando o direito de reunião com mais de 300 pessoas. Ou seja, uma assembleia estudantil com 300 pessoas pode cair no risco do aviso prévio”, comenta Camila.
Ambos também demonstram preocupação com a equiparação dos objetos proibidos e a criação de uma categoria de armas que não existe. “Há equiparação de armamentos letais e armas brancas e objetos lícitos. Não existe proibir alguém de andar com pedra. Isso por si só não é crime. Alguém que está com uma bandeira, algo absolutamente normal em um protesto, pode ser enquadrado e levado em um delegacia. A gente já sabe que isso acontece só que esse decreto legitima essa pratica, traz um verniz de legalidade para uma prática inconstitucional”, explica Camila Marques, da Artigo 19.
O advogado da Conectas Rafael Custódio avalia como arbitrário e excessivo esse artigo da regulamentação. “O poder público precisa se preocupar se o manifestante está usando esse objeto para cometer algum crime, e, aí sim, está legitimado para intervir. Agora um trabalhador que está saindo do trabalho com um guarda-chuva, por exemplo, indo para a manifestação e isso poder ser caracterizado como uma conduta ilícita não faz o menor sentido. Isso é abuso do governador”, analisa.
Sobre a restrição ao uso de máscaras, principal ponto motivador do decreto, Custódio afirma que, da forma como está escrito, também se abrem diversas interpretações que dão aval para abusos. “O uso de máscara por profissionais da imprensa e mesmo pelos manifestantes é justamente para se prevenir do uso de bombas de gás lacrimogêneo do próprio Estado. Além do mais, vai ser difícil diferenciar se um protesto, se uma manifestação de pessoas de cunho cultural, por exemplo, pode ou não utilizar máscara”, aponta.
Camila Marques, da Artigo 19, concorda e ainda ressalta outros aspectos. “As máscaras, por si só, não se enquadram na vedação do anonimato. É bem verdade que a Constituição veda o anonimato, porem com objetivos muitos claros e a gente sabe que existe uma discussão de que o uso de mascara não condiz com essa condição do anonimato. A segunda questão, que na minha visão é uma das partes mais preocupantes do decreto, é que o governo está trazendo a seguinte vinculação: na presença de alguém que use máscara, automaticamente há o crime de desobediência. A gente tem aqui uma completa invasão por parte do governo da competência do delegado de polícia e dos membros do sistema de Justiça, dos membros do Ministério Público e do Judiciário. Não é função do governo do estado indicar qual tipo deve ser capitulado e qual crime deve ser tipificado”, explica.
Se manifestantes precisam estar de cara limpa, com a Polícia Militar não é bem assim. Nos dois protestos ocorridos desde o início do ano, policiais do Caep (Ações Especiais) estavam com o rosto coberto e, ainda, traziam no lugar do nome na tarjeta, códigos. “Há uma incoerência nessa restrição, sim, já que é possível identificar uma prática bastante comum, não só aqui mas em outros estados, de policiais irem sem identificação ou usando máscaras. Só que existe a obrigação legal que todo o funcionário público exerça suas funções de forma transparente. É inconstitucional e irregular a prática de irem mascarados e sem identidade ou então com aquela identificação alfanumérica incompreensível”, diz a advogada da Artigo 19.
“A gente tem acompanhado, monitorado especialmente depois de 2013 a questão das manifestações e não vimos nenhum avanço nas garantias de direito ao protesto. Pelo contrário. A gente só viu a sofisticação das técnicas e instrumentos de repressão e criminalização. A gente tem visto a polícia se esquivar das responsabilidades, como por exemplo, essa questão da identificação. Infelizmente esse decreto se insere num contexto muito mais amplo de restrição de direito ao protesto”, conclui.
[…] Maria Teresa Cruz | Ponte Jornalismo Um decreto assinado pelo governador de São Paulo, João Doria (PSDB), e publicado no Diário […]