Defensoria desafia norma da ditadura e recorre de decisão que absolveu PMs de estupro

Justiça Militar acolheu recurso e permitiu que Defensoria pudesse questionar sentença em caso de jovem violentada em viatura no litoral paulista; Código de Processo Penal Militar permite que, da parte da acusação, apenas promotores possam recorrer de decisões

De acordo com vítima, estupro aconteceu dentro da viatura no trajeto até o terminal rodoviário | Foto: Divulgação

A Defensoria Pública do Estado de São Paulo agora vai poder questionar na segunda instância do Tribunal de Justiça Militar a sentença que absolveu os soldados Danilo de Freitas Silva e Anderson Silva da Conceição da acusação de estupro de uma jovem de 19 anos que relatou ter sido obrigada a fazer sexo dentro da viatura quando pediu uma carona aos PMs em Praia Grande, no litoral paulista, em 2019.

Isso porque, segundo o Código de Processo Penal Militar, da parte da acusação, só quem pode recorrer de uma decisão nessa esfera é o Ministério Público e, nesse caso, o assistente de acusação (que pode ser um advogado ou um defensor público) só poderia acrescentar informações ao pedido do MP. Como a promotoria não recorreu, qualquer assistente de acusação que quisesse questionar uma decisão não poderia fazê-lo – o que é diferente dos processos que tramitam na Justiça Comum, em que qualquer pessoa habilitada pode interpor recurso mesmo se o Ministério Público não se manifestar.

O Código de Processo Penal Militar foi criado por meio de decreto em 1969, durante a ditadura civil-militar. “Com isso, a vítima fica à mercê da atuação do Ministério Público e não é isso que a Constituição de 1988 determinou, em seu artigo 5º, que estabeleceu que a ação penal privada é subsidiária da ação penal pública [que é feita pelo MP] em caso de inércia do Ministério Público”, aponta o presidente da Comissão de Direito Militar da OAB-ES (Ordem dos Advogados do Brasil) Tadeu de Andrade. “Essa diferença estabeleceu uma forma de hipertrofiar o poder Ministério Público e esvaziar o poder de reação da vítima [na esfera militar], o que não tem lógica nenhuma, e que foi feito para proteger o establishment da época, que era os próprios militares, e criou uma blindagem em torno deles”, critica.

Danilo foi condenado por “libidinagem ou pederastia em ambiente militar”, crime previsto no artigo 253 do Código Penal Militar, cuja pena é de detenção de seis meses a um ano. Porém, segundo o G1 na época, o soldado não foi preso porque o juiz Ronaldo João Roth suspendeu o cumprimento da pena, que é em regime aberto. Já Anderson, que estava na direção do veículo, foi absolvido porque o magistrado entendeu que a relação sexual foi consentida porque a vítima não resistiu.

O texto da sentença deixou movimentos de mulheres e entidades de direitos humanos indignados. Além disso, como a Ponte revelou, em setembro do ano passado, Roth também passou a ser investigado pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo por suposto favorecimento ao advogado José Miguel da Silva Junior, que é um dos representantes do soldado Anderson. Antes, o processo estava público, agora, está sob segredo justiça, e nem o TJ-SP nem o MP quiseram se manifestar sobre o andamento da apuração por conta do sigilo.

O Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres da Defensoria, que atua como assistente de acusação do caso, então entrou com um recurso para que fosse reconhecida a legitimidade do órgão para interpor recursos, além de pedir a revisão da sentença porque o resultado “deixou de considerar os resultados dos exames periciais e o depoimento da vítima” e “em virtude da ausência de imparcialidade do juízo, na medida em que o julgamento foi informado por estereótipos/estigmas de gênero e não na prova dos autos”.

Conforme revelado pela coluna da Mônica Bergamo, no jornal Folha de S.Paulo na sexta-feira (11/3), o Tribunal de Justiça Militar acolheu os pedidos da Defensoria. O processo tramita em segredo de justiça, mas a Ponte obteve a íntegra do acórdão (decisão de um grupo de desembargadores), que data de 10 de fevereiro e pode ser acessado na íntegra abaixo.

No texto, o desembargador e relator Silvio Hiroshi Oyama faz uma tabela com semelhanças e diferenças entre o Código de Processo Penal Militar e o Código de Processo Penal Comum (a partir da pág. 10) e aponta que é “perfeitamente possível que o assistente de acusação possua as mesmas prerrogativas que lhe confere a legislação adjetiva penal comum”, com base na “índole do processo penal”, que é previsto no artigo 3º do Código de Processo Penal Militar. Tadeu Andrade explica que esse artigo, cuja expressão “ninguém sabe o que significa” realmente, serve de justificativa para aplicar elementos do sistema de justiça comum ao militar. Esse argumento também havia sido usado antes para negar a legitimidade de atuação da Defensoria no caso.

Por ser um decreto anterior à Constituição Federal de 1988, o presidente da Comissão de Direito Militar da OAB-ES esclarece que a fundamentação do desembargador foi justamente apontar que a norma sobre a assistência de acusação no Código de Processo Penal Militar não foi atualizada e que precisava ser revista e coincidir com a norma vigente. “A Justiça Militar é marcada por um traço tradicionalista inútil, muita coisa velha, e essa decisão traz novos ares, como o próprio juiz fala”, aponta.

A professora de Direito Penal da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) Maíra Zapater concorda. “Embora a regra seja diferente, a gente tem que fazer uma interpretação pela Constituição de dizer que todas as vítimas têm direito de serem tratadas igualmente. Tanto faz se é uma vítima de um crime praticado por militar ou vítima de crime praticado por cidadão comum. A vítima de um crime praticado por cidadão comum teria direito a um assistente de acusação, mas a vítima de um crime praticado por militar teria esse direito restringido? Essa é a discussão que o relator colocou”.

Hiroshi Oyama descreve que ao mesmo tempo em que o código da época da ditadura deu “voz àquele que teve como algozes agentes de segurança do Estado, levando ao conhecimento dos tribunais suas aflições e dores [que] certamente traria embaraços indesejáveis ao regime que então imperava no país”, também acabou “suprimindo das vítimas de crimes militares o direito de acesso aos tribunais”.

Para Tadeu de Andrade, a decisão tem relevância enquanto jurisprudência. “Temos poucos tribunais estaduais de Justiça Militar no Brasil, tem em Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul; fora isso, tem o STM (Superior Tribunal Militar) e a Justiça Militar da União, que é só para Exército, Marinha e Aeronáutica. Então, nos outros estados, por exemplo, no Espírito Santo que eu estou, quem faz as vezes da Justiça Militar é o [tribunal] comum. Quando o tribunal militar de São Paulo, de uma das maiores tropas estaduais, dá uma decisão dessa, tem um caráter bem relevante e persuasivo”, afirma.

Maíra Zapater aponta que todo o Código de Processo Penal Militar deveria ser revisto por ser um decreto, que é um ato legislativo assinado pelo presidente sem passar pelo Congresso. “A Constituição de 1988 determina que toda a norma penal e processual penal têm que ter fonte em lei, ou seja, uma lei que seja debatida pelo Congresso Nacional, pelos representantes eleitos da população e votada como lei”, explica. “A gente tem várias leis penais que seguem esse formato [de decreto] que, na minha leitura, são inconstitucionais, deveriam ter sido feitas outras depois de 1988. O Código Penal Militar e o Código de Processo Penal Militar são decretos, mas o Código Penal e o Código de Processo Penal civis, que não são militares, também são decretos do Getúlio Vargas, [na época] do Estado Novo [1937 a 1945], e são frutos de regimes não democráticos”.

Relembre o caso

A vítima do abuso conta que, em 12 de junho de 2019, tinha perdido ponto de desembarque de um ônibus intermunicipal, de onde voltava de uma festa na região de Campinas. Ela teria que ter descido em São Vicente e quando notou estava em Praia Grande. Ao desembarcar, avistou uma viatura onde foi buscar informações sobre a melhor forma de fazer o trajeto de volta. Na viatura estavam os soldados Anderson e Danilo, que ofereceram uma carona para a vítima até o terminal rodoviário Tude Bastos.

Em entrevista à Ponte alguns dias após o ocorrido, a jovem contou que aceitou a oferta de carona, por pensar estar mais segura com a PM do que aguardando um ônibus passar na avenida, já que o relógio marcava quase meia-noite. “Assim que a viatura começou a andar, ele pegou a minha mão e colocou no pênis dele. Aí eu puxei e ele colocou de novo. Aí eu falei não, não. Mas ele pegou o meu braço com mais força. Ele abriu a calça e abaixou a minha cabeça, para eu fazer sexo oral nele. Aí ele pegou, levantou a minha cabeça e me deitou. Aí ele tirou a minha calça e me penetrou. Por último ele segurou a minha cabeça e ejaculou na minha boca. Isso tudo foi com a viatura em movimento. Quando chegou, ele desceu, se limpou e sentou no banco da frente. Aí eles foram e me deixaram no terminal”, relatou a vítima na época.

Os policiais foram presos preventivamente na época e foram denunciados por estupro pelo Ministério Público Militar. Em dezembro de 2019, porém, os soldados foram soltos e respondem o processo em liberdade. Em junho de 2021, foi proferida a sentença de absolvição.

Apoie a Ponte!

Em nota na ocasião, a Secretaria de Segurança Pública declarou que os policiais “respondem a processo disciplinar demissionário pela instituição e seguem afastados do trabalho operacional”, que é “independente do processo penal-militar”. “Em que pese a decisão [de absolvição] do TJM, ainda há graves infrações sendo apuradas em Processo Regular”, diz a assessoria. A Ponte verificou que esse processo ainda está em andamento.

Já que Tamo junto até aqui…

Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

Ajude

mais lidas