Delegacia se recusa a ouvir depoimento que inocenta preso — então vítima escreve carta

    Homem enviou documento autenticado à família de Heverton Enrique Siqueira, preso pela PM por suspeita de roubo a carro na zona leste de SP, para ‘corrigir injustiça’

    Carta da vítima (à dir.) busca inocentar falsa acusação contra Heverton (à esq.) | Foto: Arquivo pessoal

    A vítima de um roubo de um carro ocorrido no dia 8 de outubro deste ano, em Sapopemba, zona leste de São Paulo, está tentando corrigir uma injustiça. Após reconhecer no dia do crime Heverton Enrique Siqueira, 20 anos, e um adolescente, V., como autores do crime, ele enviou carta à família do jovem para se comprometer a retificar sua fala. O homem garante que estava abalado e cometeu um erro. Essa mesma tentativa de alterar o reconhecimento foi feita no 69º DP (Teotônio Vilela), mas nenhum integrante da Polícia Civil quis ouvi-lo.

    “Confesso que, como foi tudo muito rápido entre o roubo e a elucidação do caso, coisa de uns 30 a 40 minutos, eu ainda me encontrava muito abalado e muito nervoso. Tendo em vista que os reconheci […] sem saber ao certo o que eu estava fazendo”, admite a vítima, que se disponibilizou a declarar ter feito o reconhecimento equivocado em juízo para inocentar Heverton e o adolescente.

    O documento é datado do dia 11 de outubro, três dias após o roubo e a prisão. A carta é escrita à mão e foi autenticada em cartório. À Ponte, a vítima confirmou a autenticidade do documento e o fato de ter buscado os parentes de Heverton para reverter a injustiça que estava sendo feita. O relato já é utilizado pela defesa do jovem para pedir sua liberdade.

    Eram por volta das 8h10 da manhã daquele dia quando o motorista que trabalha com aplicativo de transportes foi abordado na rua Manoel França dos Santos. Dois rapazes o abordaram e um deles, que usava uma arma, anunciou o assalto, levando o veículo e três celulares. O motorista chamou a polícia.

    Heverton estava cerca de 2 quilômetros distante do local dos fatos, na casa onde mora com uma das irmãs. A alegação da família é de que o jovem estava em casa na hora do crime, enquanto conversava por vídeo chamada com a namorada. Há um print do celular em que mostra o horário da ligação. Minutos depois, o jovem saiu de casa para fumar em uma praça que fica três ruas abaixo do seu lar, onde os PMs Samuel Soares dos Santos e Kaique Monteiro Passos o abordaram e o acusaram de participar do crime.

    Heverton estava fumando em uma praça quando os PMs o abordaram; família defende inocência do jovem | Foto: Arquivo pessoal

    Segundo o homem, ele percebeu que havia reconhecido as pessoas erradas no dia seguinte ao roubo quando, por volta de 7h50, viu “os verdadeiros indivíduos que me assaltaram a uma quadra de onde fui assaltado. “Posso afirmar com certeza que Heverton e V. não são os autores desse delito”, prossegue o homem, motorista de aplicativo de transportes.

    A vítima tentou informar o equívoco ao delegado Daniel Bruno Colombino, responsável pela investigação e prisão do jovem e do adolescentes apresentados pelos PMs como autores do roubo. Apesar de querer colaborar com as investigações para corrigir o erro cometido, o representante da Polícia Civil não estava presente na delegacia.

    Narra o homem na carta que foi no dia 11 de outubro ao 69º DP (Distrito Policial), em Teotônio Vilela, mas os agentes o informaram que Colombino “só retornaria na próxima semana”. Ele não conseguiu se retratar oficialmente à Polícia Civil até o momento. “Sendo assim, procurei a família e o advogado dos indiciados e me prontifiquei a fazer essa carta […] para desfazer a injustiça cometida com esses jovens”, escreve a vítima.

    A inexistência dessa prova no inquérito fez com que o Ministério Público Estadual seguisse adiante com o processo e denunciasse Heverton pelo artigo 157 do Código Penal, que trata de roubo, e 244-B do ECA (Estatuto da Criança e Adolescente), que versa sobre corrupção de menores de 18 anos.

    Print da conversa em vídeo feita pelo jovem e sua namorada na hora do crime | Foto: Reprodução

    A promotora de Justiça Solange Aparecida Sibinel pede a “sentença condenatória” do jovem, ainda que ele e o adolescente tenham negado participação no crime. O documento foi encaminhado à Justiça de SP no dia 17 de outubro. Nele constam os dois PMs, Passos e Santos, como testemunhas, além da própria vítima do roubo.

    Com a nova prova, o advogado Ricardo André de Souza entrou com pedido de absolvição sumária e liberdade de Heverton e do adolescente. “Juntei como fato novo tudo o que foi alegado nessa carta. Os autos, hoje, foram para o Ministério Público para apreciação da declaração encaminhada pela vítima. Se mantiver preso o Heverton, aí vou com pedido de habeas corpus no Tribunal de Justiça de São Paulo”, explica o defensor. O advogado incluiu também a primeira reportagem do caso, publicada na Ponte no dia 15 de outubro, para sustentar a inocência de Heverton.

    Segundo Souza, caso a prisão seja mantida, além do HC ele encaminhará o caso ao CNJ (COnselho Nacional de Justiça), de Brasília, “para analisar a conduta omissiva dos policiais, bem como do juiz e do Ministério Público”. “O Ministério Público, diferentemente do que ele atua, está para ser o fiscal da lei, tem que fiscalizar a atuação da lei, e não apenas apontar e denunciar. Se verificar que não existe indícios de autoria daquela matéria delitiva da pessoa, o Ministério Público é obrigado a atuar em favor dos fatos, das provas que estão nos autos. E essa prova é contundente, muito farta no sentido da inocência dos dois réus”, explica.

    Distância entre o local do roubo, a casa de Heverton e a praça onde ele estava fumando quando abordado pela PM | Foto: Google Maps

    A Ponte solicitou posicionamento da SSP (Secretaria da Segurança Pública), comandada pelo general João Camilo Pires de Campos neste governo de João Doria (PSDB), sobre a atuação da Polícia Civil neste caso. Em nota enviada às 21h40 de terça-feira (22/10), a pasta explicou que “a vítima reconheceu os dois autores e, inclusive, descreveu as roupas usadas no momento do crime”. “Posteriormente, ela retornou à delegacia e pediu para conversar com o delegado responsável pelo caso, mas ele não estava naquele dia. Ela foi orientada a retornar nos próximos dias e não compareceu. O inquérito foi relatado em razão do prazo”, sustenta a SSP.

    A reportagem também questionou o MP quanto a nova prova anexada no processo de Heverton. Após receber o material da defesa, a juíza Teresa de Almeida Ribeiro Magalhães solicitou uma análise para o MP, que agora terá um prazo para dizer se mantém a decisão de denunciar os dois ou se retifica sua posição, assim como fez a vítima do roubo. O MP ainda não respondeu.

    *Atualizado às 22h05 do dia 22/10 para inclusão da nota da SSP

    Errata A versão original do texto informava que o artigo sobre roubo no Código Penal é o 121, que na verdade é homicídio. O erro foi corrigido: trata-se do artigo 157.

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