Delegado tenta enquadrar pichadores por homicídio, mas Justiça e Promotoria recusam

    Delegado transformou B.O. em textão jurídico tentando demonstrar tese de que pichadores deviam ser responsabilizados por morte acidental de amigo

    Pichação realizada meses atrás, em outro prédio, por Rafael, Evandro e Patrick | Foto: Fábio Vieira/FotoRua

    Nunca passei por isso, sabe, moço. Eu nunca tinha entrado numa delegacia. Eu fiquei em choque. Entrei onde meu irmão estava e comecei a orar com ele. Ele estava abalado, chorando muito. O Rafael tem esse negócio de pichar, mas é um excelente menino. Levanta todo dia às seis horas da manhã e vai trabalhar. Carrega marmita dentro da bolsa. Eu ouvia o advogado falar para o delegado ‘como assim, o senhor vai colocar um homicídio na vida do menino?’ e o delegado respondia ‘é com o juiz que o senhor vai discutir, eu vejo como homicídio culposo’. Mas eles falavam em uma outra linguagem que eu não conseguia entender.

    A dona de casa Iris Maia, 41 anos, não conseguia compreender a linguagem usada pelo delegado Ricardo Giuliano Spagolla Prazia, plantonista do 78º DP (Jardins), que falava de “cuidado objetivo”, “conduta voluntária” e “resultado danoso”, mas entendeu o que a autoridade pretendia fazer com aquelas palavras estranhas: acusar seu irmão, o estudante Rafael Gomes da Silva, 29 anos, de ter matado o próprio amigo.

    Na madrugada do último sábado (28/5), Rafael se juntou a três amigos, Murilo Milan Gimenes, 22 anos, Evandro Guedes Barbosa, 37, e Patrick Alexandre Liu, 34, para escalar um prédio comercial e fazer suas pichações na rua Rui Barbosa, na Bela Vista, região central da cidade São Paulo.

    Como costumavam fazer, os pichadores subiram uns sobre os outros para conseguir alcançar os andares mais altos e deixar ali suas inscrições. Nesse momento, o grito de uma mulher no interior do prédio assustou o grupo. Um deles, Patrick, perdeu o equilíbrio e caiu na marquise do edifício, em cima dos fios elétricos. Morreu ali mesmo. Os três foram até a marquise para tentar ajudar Patrick, mas uma pessoa que viu a cena gritou para que não tocassem no corpo do jovem, porque corriam o risco de serem eletrocutados juntos com o amigo.

    Rafael, Murilo e Evandro foram, então, para o outro lado da rua e ficaram chorando na calçada até a chegada da Polícia Militar. Presos, foram levados à delegacia. Ali, tomaram o segundo susto da noite. Além de autuá-los por pichação, o delegado anunciou que também pretendia indiciar os três por homicídio culposo (sem intenção de matar) e cobrar, de cada um, uma fiança no valor de R$ 18.700.

    Na visão do delegado Prazia, os pichadores haviam provocado a morte do amigo ao agir “com imprudência, negligência e imperícia”. Para justificar sua decisão, o delegado inseriu um longo textão com argumentos jurídicos no histórico do boletim de ocorrência (veja abaixo), espaço geralmente usado para narrar fatos.

    Nem toda a argumentação jurídica do delegado, porém, serviu para convencer o promotor do Ministério Público e o juiz que analisaram o caso na tarde de segunda-feira (29/5), durante a audiência de custódia no Fórum Criminal da Barra Funda, para onde os pichadores foram levados após passar a noite na carceragem do 78º DP.

    Na audiência, o juiz Rodrigo Tellini de Aguirre Camargo decidiu relaxar a prisão em flagrante por homicídio culposo, acompanhando o entendimento do Ministério Público, que tratou a morte de Patrick como “uma infeliz fatalidade”. Eles foram enquadrados apenas na Lei de Crimes Ambientais e autorizados a responder em liberdade. Na noite de segunda, foram soltos e puderam voltar para casa.

    O episódio foi mais a mais nova tentativa da Polícia Civil paulista de usar leis mais duras contra os pichadores. Como a Lei de Crimes Ambientais prevê no máximo um ano de detenção para o crime de pichação – possível de ser substituída, na Justiça, pelo pagamento de uma cesta básica – os delegados vêm usando a criatividade tentando enquadrar os autores de “pixos” em crimes que possam dar cadeia.

    No início do ano, o Deic (Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado) abriu um inquérito contra pichadores por associação criminosa. O endurecimento da polícia contra o “pixo” coincide com a declaração de “guerra aos pichadores” feita no começo do ano pelo prefeito João Doria (PSDB), afilhado político do governador tucano Geraldo Alckmin.

    Alheia a tudo isso, Iris apenas está feliz em ter seu irmão de volta:

    Nós somos uma família grande, uma família de sete irmãos. Rafael tem trinta sobrinhos e é o nosso caçula. Ele mora comigo. A gente cuida do Rafa como se fosse nosso bebê. Ele não é aquela imagem que colocaram dentro da televisão.

    A gente sabe que infelizmente pichação é considerado como um crime. O Rafael já deu uma entrevista falando sobre pichação para a televisão da França. Eles vieram aqui na minha casa. Eu conversei com eles e falei que que não gostava que ele pichasse. Ele tem essa necessidade de causar esse transtorno todo, mas a nossa família não é de acordo. A gente não quer que ele faça isso, porque o Rafael é um menino bom, ele sempre trabalhou. Rafael trabalha numa empresa de cilindros de gás. Deve ter um ano e pouco que ele está nesse emprego. Ele entrou como ajudante no caminhão e hoje ele é chefe!

    Dentro de um ano e dez meses, a gente perdeu minha mãe, depois perdeu meu pai, os dois com câncer. Rafael trancou a faculdade de engenharia porque não teve cabeça devido a gente ter perdido os pais. O psicólogo falou que a pichação é uma forma do Rafael expressar o sofrimento dele.

    Na noite em que Rafael foi preso, eu entrei onde eles estavam e comecei a orar. O delegado ficou do meu lado e perguntou se o Rafael era conhecedor da palavra de Deus. Eu falei que o Rafael era, mas estava desviado. Ele falou: ‘Rafael, escuta os conselhos da sua irmã, não faz mais isso’. Na minha frente, eles trataram o Rafael bem. Mas quiseram prender meu irmão por homicídio. Ainda bem que no final a vontade de Deus prevaleceu e ele foi solto.

    Outro lado

    Questionada a respeito da acusação de homicídio culposo levantada pelo delegado Ricardo Giuliano Spagolla Prazia contra os pichadores, a assessoria de imprensa da Secretaria da Segurança Pública, comandada pela empresa particular CDN Comunicação, enviou à Ponte Jornalismo uma nota em que transcrevia parte do boletim de ocorrência registrado na delegacia.

    A SSP não comentou o resultado da audiência de custódia, que não aceitou a tese do delegado.

    A Polícia Civil esclarece que todo delegado tem autonomia para, após análise do conjunto probatório apresentado no momento do registro da ocorrência, deliberar pela natureza pela qual o B.O será registrado. No caso específico, o delegado Ricardo Prezia, plantonista do 78º Distrito Policial – Jardins, elenca os elementos que o fizeram tomar a decisão de registrar o caso como Homicídio Culposo:
    1) Conduta voluntária: todos os pichadores agiram em conjunto para um mesmo fim: a pichação;
    2) Ausência do dever de cuidado objetivo: os pichadores deixaram de seguir as regras básicas de atenção e cautela;
    3) Houve um resultado danoso involuntário, sendo que tal resultado não era esperado por nenhum dos pichadores. Não queriam a morte de um amigo;
    4) Previsibilidade: era possível sempre, nos casos de pichação em grandes alturas, a queda de qualquer dos pichadores, sendo então possível a previsão do resultado lesivo;
    5) Tipicidade: é necessário que o tipo penal contenha expressamente o tipo penal culposo, conforme prevê o tipo do artigo 121, em seu parágrafo terceiro.
    Entendeu ainda que as três modalidades de culpa estavam presentes no caso concreto:
    1) Imprudência: realizaram a escalada sem as cautelas necessárias, agindo sem se atentarem para todas as regras que exigem uma escalada, como por exemplo equipamentos especiais de escalada, com sapatilhas;
    2) Negligência: assumira atitude passiva diante dos riscos de uma escalada, não utilizando os equipamentos de segurança exigíveis em escaladas;
    3) Imperícia: não são peritos em escaladas, ou seja, não possuem formação teórica e técnica para realizarem escaladas, portanto são imperitos na arte de escalar.
    Os agentes, todos amigos, ao agirem, escalando um prédio, até seu quarto andar, utilizando seus próprios corpos como uma corda, agem cada um com sua parte de ação, sendo todos coautores. Causado o resultado que não era desejado por nenhum dos coautores, todos respondem pela causação desse resultado não desejável, contudo previsível: a morte da vítima.
    Portanto, os indiciados, com suas condutas, acabaram por ceifar a vida da vítima Patrick, de forma culposa, pois agiram com imprudência, negligência e imperícia, ao descuidarem do dever objetivo de cuidado, previsto em todos os crimes culposos.

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