Emicida: Democracia, amor e ódio

    Sou a exceção da regra num cenário de tantas exclusões, mas preciso reconhecer os benefícios alcançados pelo povo a partir da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva. Votarei Dilma no segundo turno

     

    Foto: Rafael Kent/OkentFILMS
    Foto: Rafael Kent/OkentFILMS

    Sempre fico pensando em como as mesmas palavras soam diferentes nos vários ouvidos que alcançam. Nosso país tem um pantone variado, muito mais cores do que qualquer outro. Etnia e condição social parecem – embora não sejam – elementos intrínsecos. Um chega a soar quase automaticamente uma consequência do outro, vide o funcionamento padrão da grande maioria dos aparatos de segurança e consumo, em que preto e pobre são sinônimos, com o agravante de pobre ser sinônimo de bandido – em execução ou em potencial.

    São entendimentos, para a tristeza dos que são suas vítimas diretas ou indiretas, profundamente enraizados em nossa cultura, difíceis de combater, mas não impossíveis de derrotar. Democracia, por exemplo, é um termo repetido à exaustão em tempos eleitorais, mas para o povo (leia-se aqui classe trabalhadora, pobre, baixa, média ou às vezes sem nenhuma renda) talvez signifique a possibilidade de escolher quem vai governá-lo. Mesmo que esse povo comece a tomar consciência agora de que é realmente a maioria.

    Para o outro lado, que aqui chamarei de burguesia, a democracia a que se referem orgulhosos com seus diplomas me lembra o primeiro dos conceitos da palavra: o da democracia ateniense. Esse grupo conta com o apoio de alguns que, mesmo originalmente pertencendo ao citado no parágrafo acima, buscam se alinhar ao pensamento desta classe. Embora não pertençam a ela, mantêm essa ambição, independentemente do quão improvável seja sua possibilidade de sucesso.

    Quando o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso se sente livre para dizer que os votos do Partido dos Trabalhadores são oriundos de grotões, dos pobres e desinformados, temos um sintoma claro da incapacidade de ler uma nação complexa e gigantesca como é a brasileira. Particularmente, não considero novidade, uma vez que ele governou o Brasil durante 8 anos sob essa lógica. Na democracia ateniense votavam os homens com mais de 21 anos, filhos de pai e mãe atenienses e livres – a democracia surgiu em uma sociedade escravista, e mulheres não tinham direito ao voto. Logo, o conceito era extremamente distante do que se entende por democracia hoje.

    O que havia era um acordo de cavalheiros em que se transferia o poder para os que possuíam os mesmos privilégios, as mesmas características sociais. Era muito mais uma massagem no ego dos ricos, que diziam estar discorrendo sobre a liberdade e o poder de decisão de uma nação, do que uma oportunidade real de todos obterem a chance de alterar seu destino como iguais, por meio do voto.

    “Votarei Dilma no segundo turno pela continuidade de um projeto de Brasil que conseguiu cravar o social no discurso do mais reacionário dos candidatos: se Aécio Neves hoje tenta puxar para si e para seu partido a paternidade de um programa como o Bolsa Família – que até pouco tempo ele e seus correligionários chamavam de bolsa esmola -, então foi virada uma chave muito significativa nos últimos 12 anos. Eu quero que mais chaves como essa sejam viradas.”

    Infelizmente, essa lógica não morreu na Grécia Antiga. Sendo assim, democracia pode ser duas coisas completamente diferentes, dependendo de quem discursa ou escuta sobre ela. Quando se é preto, então (o meu caso), pior ainda, uma vez que há pouco mais de 100 anos éramos produto perecível e de fácil reposição para os antepassados de muitos dos que hoje manuseiam a democracia brasileira.

    Temos uma imprensa irresponsável, que trabalha diariamente e de forma incansável para convencer os que estão vulneráveis a seu conteúdo de que ódio ao PT e amor pelo Brasil são a mesma coisa. Mas são coisas completamente diferentes.

    Votarei Dilma no segundo turno pela continuidade de um projeto de Brasil que conseguiu cravar o social no discurso do mais reacionário dos candidatos: se Aécio Neves hoje tenta puxar para si e para seu partido a paternidade de um programa como o Bolsa Família – que até pouco tempo ele e seus correligionários chamavam de bolsa esmola -, então foi virada uma chave muito significativa nos últimos 12 anos. Eu quero que mais chaves como essa sejam viradas.

    Os anos 90 foram do PSDB. Eles trabalharam à sua maneira para um Brasil do qual eu (in)felizmente (?) não faço parte. Aos que me apontam como exemplo de ascensão e dizem que esse discurso destoa de meu padrão de vida hoje, humildemente respondo que voto por nós, não por mim somente. Sou a exceção da regra num cenário de tantas exclusões, mas preciso reconhecer os benefícios alcançados pelo povo a partir da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva. Tenho dúvidas se meu perfil de (micro) empreendedor independente comprometido com a cultura hip hop e sua expansão conseguiria abrir os mesmos caminhos na era FHC.

    “Quando o Censo aponta o crescimento do número de pessoas que se declaram pretas/pardas, como houve nos últimos tempos, temos um indicativo maravilhoso de que muitas entenderam que a cor de sua pele não é mais uma barreira para ocupar diversos espaços. A autoestima faz milagres e traz possibilidades positivas infinitas.”

    Assisti a cada deboche preconceituoso distribuído livremente sobre o Fome Zero no início da era Lula. Fome Zero que era elogiado e visto como esperança de muitos parentes dos meus camaradas pelas ruas. Bolsa Família a mesma coisa. Prouni/cotas, então, nem se fala. Pela primeira vez a faculdade deixava de ser algo de playboy branco bancado muitas vezes pelos pais e passava a ser algo para todos, ou quase.

    Quando o Censo aponta o crescimento do número de pessoas que se declaram pretas/pardas, como houve nos últimos tempos, temos um indicativo maravilhoso de que muitas entenderam que a cor de sua pele não é mais uma barreira para ocupar diversos espaços. A autoestima faz milagres e traz possibilidades positivas infinitas.

    Não acho que tivemos um governo que mereça calorosos aplausos no que diz respeito a construir um Brasil etnicamente mais justo. Não tivemos isso em toda a história do Brasil, mas dentro de um campo notadamente conservador e, por que não dizer, racista, o PT iniciou mudanças que acredito serem fundamentais para alcançar o Brasil que eu quero que minha filha conheça.

    “Quando o Censo aponta o crescimento do número de pessoas que se declaram pretas/pardas, como houve nos últimos tempos, temos um indicativo maravilhoso de que muitas entenderam que a cor de sua pele não é mais uma barreira para ocupar diversos espaços. A autoestima faz milagres e traz possibilidades positivas infinitas.”

    Alternância de poder pode ser interessante, sim, mas fico reflexivo porque os que falam disso ignoram o fato de meu estado (SP) ter no poder o mesmo partido há 20 anos, tragicamente estendidos para 24 no ano seguinte ao despertar do gigante (risos).

    Quero um Brasil que fale seriamente (e com urgência) sobre reforma agrária e urbana, visto que as desigualdades fazem vítimas no campo e na cidade; sobre demarcação de terras indígenas; sobre regulamentação/democratização verdadeira dos meios de comunicação para termos menos desserviços prestados ao país; sobre questões como aborto e drogas; sobre criminalização real de racismo e homofobia. Vejo derrotas em todos esses campos, mas abraçar o PSDB como possibilidade de mudança positiva em qualquer um desses temas é pular da frigideira para o fogo.

    Aos que vão de Aécio, é um direito de vocês, desde que reconheçam democraticamente o direito deste outro Brasil que muitos de vocês desconhecem de lutar contra o retrocesso que uma gestão tucana representa com diversos exemplos Brasil afora. Meu voto é a favor do Brasil, meu voto é Dilma.

     

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    Gustavo
    Gustavo
    9 anos atrás

    Moro na periferia de belo horizonte e nao quero esse governo assistêncialista, o pobre precisa de beneficios porque as oportunidades são mais custeadas, porque o salario minimo é uma bosta, ai vem as bolsas. Uma forma de fidelizar o eleitor, isso é a política deles, mas bom ou ruim fizeram, nao ta nos conformes, pois ainda tem muita pobreza financeira, intelectual e cultural, a favela ainda é restrita pra caralho, não é porque tenho pc e celular que minha vida esta nos conformes mano. O tucano é playboy da sul, siceramente nao boto fe nesse maluco. Ai sou obrigado a escolher o menos pior (eu acho). Sobre a democracia, vivemos uma tirania em outras palavas mano. Sobre a consciência para votar, estudo oa 2 candidados e concluo que sou obrigado a escolher o menos pior. Nao deveria ser assim, mas infelismente é. Nao sou eu que tenho que ter consciência pra votar é eles que devem ter consciência pra governar. Valew mano, sou fã do seu trampo, canta muito. A rua é noiz!

    Marcos Costa
    Marcos Costa
    9 anos atrás

    Sou estudante de Ciências Sociais e através de você conheci o rap.
    Através da banda Fresno, do qual sempre fui fã conheci você, e através de você conheci essa cultura maravilhosa.
    A 2 anos atrás me filiei ao Partido dos Trabalhadores por compreender a importância deste Partido para o Brasil.
    Sempre que ouvi suas músicas, e confesso ter baixado todos os seus álbuns pois infelizmente não disponho (ainda, hehe) de grana para comprá-los, procurei um pouco de PT em suas letras.
    E encontrei.
    A primeira vez que tive contato com a música “Levanta e Anda”, foi assistindo o clipe dela. Eu chorei.
    Durante todo meu período de militância e principalmente quando tive a oportunidade de presidir o Diretório Central dos Estudantes da Universidade onde eu estudo fui conhecido como um cara duro, direto e extremamente pragmático.
    Sinto que temos uma sintonia de pensamento, e quando naquele verso você disse que “esses boys conhece Marx, nóis conhece a fome” eu me arrepiei inteiro, ao final daquele clipe eu chorei.
    Acho que foi a primeira vez que eu senti tanta emoção junta ao conhecer uma música.
    De longe, foi um dos sentimentos mais fortes da minha vida pois ali tinha muita coisa envolvida.
    Estou em um estado extremamente conservador (Paraná) onde o pensamento de direita e meritocrático é praticamente uma lei. É uma situação complicada.
    É muito difícil explicar para as pessoas que o mundo não é exatamente daquela maneira que elas estão vendo. Que o bolsa-família não é bolsa-esmola e aí você tem que usar o argumento que é um programa bom para a ECONOMIA do país para fulano ou ciclano começar a TE OUVIR.
    O que seria a FOME perto da ECONOMIA?
    Quando sai as notícias de que o mercado está otimista com a grande possibilidade do Aécio ganhar meus próprios familiares me perguntam: TÁ VENDO? TÁ VENDO? É disso que eu to falando!!
    Mas ai eu pergunto: Mas o governo é pra governar para o povo ou para o mercado? (Acho que você pode usar isso em uma de suas músicas, ia ficar legal).
    Se posicionar é ter coragem
    E coragem nunca te faltou
    Sabe cara, eu teria tanta coisa pra te falar, tantos sentimentos que gostaria que você conhecesse, mas este pequeno espaço aqui já cumpre este papel.
    CONTINUE fazendo esse trabalho incrível que você faz.
    CONTINUE sendo o EMICIDA da Rinha
    A sua missão é muito maior do que você mesmo imagina.

    Forte abraço,
    Marcão.

    Willamys
    Willamys
    9 anos atrás

    Opinião, opinião e opinião, cada um tem a sua, e cada um tem o direito de expor a sua vontade, não me faço de cego, mas digo afirmo e reafirmo, não vi benefícios nesses 4 anos de mandatos da excelentíssima presidente Dilma, votei nela, para uma vez e nunca mais.
    Gosto bastante das musicas de Emicida, assim como gosto das musicas do Projota, Rashid, Racionais, MV Bill, e tantos outros rappers que deixaria essa mensagem tão grande quanto já está. Mas enfim cada um tem a sua posição e devemos apenas respeitar, eu só posso descordar e expor meu pensamento.

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