Fernanda Chavez, assessora parlamentar e única sobrevivente do ataque no dia 14 de março de 2018, relata à Ponte a rotina daquele dia com Marielle Franco, assassinada com Anderson Gomes no centro do RJ
* Depoimento concedido à repórter Carolina Moura
Fazia calor naquele pós-carnaval. A quarta-feira, 14 de março de 2018, foi marcada por muito agito no gabinete da vereadora Marielle Franco. Com o evento na Casa das Pretas programado para começar 18h, o dia começou movimentado. O mandato dela não terceirizava uma equipe para tomar conta da agenda de eventos, era tudo feito pela própria coordenação. Eu fazia parte. Entre agendas cheias, artigos inacabados e horário apertado, era só mais um dia comum de trabalho dentro da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro. Ninguém imaginava que aquele dia iria terminar com a morte de Marielle Franco, executada com quatro tiros na cabeça na rua Joaquim Palhares, no Estácio, centro do Rio de Janeiro.
Era uma quarta-feira como outra qualquer. Boa parte do gabinete estava deslocado para organizar o lugar, a Casa das Pretas, na Lapa. Arrumar a área, levar cadeiras, instalar câmeras para streaming (transmissão online), preparar para começar a roda de conversa na hora em ponto. Eu, como coordenadora do mandato, fiquei responsável pelo espaço infantil. Queríamos que as mulheres que são mães, dentro do gabinete, pudessem assistir a palestra sossegadas. Também estava com a elaboração do artigo sobre os 30 dias da intervenção federal no RJ. Editei o texto escrito pela vereadora e mandei para o Jornal do Brasil. Nisso, me atrasei para o evento na Casa das Pretas.
Em seus últimos minutos dentro do seu gabinete, na Cinelândia, Centro do Rio, Marielle se reuniu com a gente da equipe e desceu para a Lapa, já em cima da hora. Algumas horas depois, consegui terminar o artigo e mantive sob meu controle o espaço infantil. Por sorte, não tinha tanta criança no evento. Cansada, ainda pensei em voltar para casa. Já estava tarde e, como tudo parecia dentro dos conformes, não parecia tão necessário. Mas me deu um estalo. Só quando entrei no táxi resolvi mudar o percurso. Fui direto para a Casa das Pretas. Cheguei quase no fim do evento, mas ainda consegui pegar um pouco da fala da Marielle.
O evento chamava “Jovens Negras Movimentando Estruturas”. Nosso objetivo era promover o debate com mulheres que trabalham em áreas como comunicação, cinema, audiovisual, mídia, tecnologia… Marielle estava radiante com o resultado do bate papo e empolgada com as ideias trocadas ali. No fim, ela tirou foto com as mulheres e desceu, junto comigo, para entrar no carro e voltar para casa. Nós éramos vizinhas na Tijuca, zona norte. Quase sempre voltávamos juntas no carro por causa disso. A gente aproveitava para conversar, separar assuntos e preparar a agenda para o dia seguinte.
Dentro do carro, ela decidiu ir atrás. Marielle nunca fazia isso, ia ao lado do motorista todas as vezes. Ela sempre ia na frente. No entanto, Mari queria mostrar umas fotos para mim do evento, falar sobre a reunião que a gente ia ter no dia seguinte. Estava ansiosa e não queria demonstrar na frente do Anderson, lembro bem. Ele era motorista substituto porque o outro quebrou o braço no carnaval, então não tínhamos muita intimidade com ele. Ela até brincou dizendo que ia de madame no banco de trás. Rio com a brincadeira. Afastou o bando, porque ela era muito grandona, e foi ombro a ombro comigo durante todo o trajeto, rindo, vendo fotos e falando no WhatsApp.
Pelo dia corrido, aquela hora respondíamos as nossas famílias. Coisas como se precisavam que a gente levasse alguma coisa para casa. A Marielle estava animada para chegar logo e assistir a um jogo de futebol. Além disso, também estava preocupada com a Mônica, sua esposa, que teve febre. De repente, entre uma conversa e outra, uma rajada de metralhadora silencia a conversa. Lembro só disso e dos vidros, que explodiram e veio uma fumaça branca no ar.
A gente não percebeu nada, eu nem estava olhando para o lado de fora. Para não dizer que não vi nada, eu tinha visto rápido onde estávamos naquela hora, pouco antes dos tiros. Eu me abaixei entre as pernas da Mari, me enrolei toda, fiquei com o rosto entre os dois bancos da frente do carro. Foi quando eu vi o braço do Anderson soltar o volante e cair. Ali, percebi que ele tinha sido atingido. A Marielle não falou nada. Não esboçou qualquer sinal. O carro continuou andando seguindo sozinho e aquele silêncio absurdo, um zumbido no ouvido… Foi então que estiquei o braço para puxar o freio de mão. Desliguei o carro e sai me arrastando para fora.
Dentro da minha cabeça, a gente tinha passado por um tiroteio. Não sei, o lugar estava escuro. Mas, quando vi que os outros carros estavam passando tranquilamente, percebi que não foi nada disso. Eu estava toda suja de sangue, cheia de estilhaço de vidro, o sangue da Mari em mim. Olhei para um lado e para o outro, algumas pessoas que passavam na calçada vieram perguntar o que tinha acontecido. Uma mulher me ajudou a chamar a ambulância e ligar para polícia.
Os policiais chegaram, isolaram o espaço com uma fita e um dos policiais presentes mandou uma mensagem, por celular, informando que tinha dois óbitos e uma sobrevivente dentro de um carro. Achei a abordagem muito estranha. Só quando ele falou das mortes que minha ficha caiu. Foi meu primeiro contato com a morte de Marielle. Para mim, naquele momento, ela estava só desmaiada. E eu estava ali, inteira. Depois de ser atendida pela ambulância, fui para a delegacia prestar depoimento. Fiquei de meia noite até 5h.
Origem da amizade
Nossa amizade era antiga. Conheci a Marielle através do Marcelo Freixo (deputado federal pelo Psol do RJ), que na época, em 2006, estava em suas primeiras campanhas para deputado estadual. Ela se aproximou via grupo de mulheres que estavam construindo carta para entregar aos candidatos, com pontos para saber quem se comprometeria com a pauta de mulheres para esse meio feminista apoiar. Como a irmã dela já foi aluna dele no pré vestibular, Marielle já tinha uma consideração pelo Freixo. Ela havia trabalhado na Redes da Maré, que era um lugar que o Marcelo frequentava muito. Quando ele se elegeu, chamou a Mari para fazer parte do gabinete.
Foi nesse momento que começamos a ser próximas. De companheiras de trabalho para amigas, comadres e vizinhas. Teve um momento, trabalhando para o Marcelo, que eu tive vontade de ir embora. Então fui para Brasília, que era onde meu marido trabalhava. A gente vivia nessa ponte aérea, eu aqui e ele lá. Só que tive minha filha e não estava querendo mais ficar no ambiente do mandato. Freixo andava com dez seguranças, ameaçado direto. Fui para Brasília de vez, mas não perdi contato nem um momento com Marielle. Acompanhei a campanha dela toda. Vim para o Rio votar e, quando ela foi eleita, me chamou para coordenar o mandato. Impossível recusar. E voltei.
É difícil digerir aquele dia. Até hoje sinto que não superei. O que aconteceu parece que fica guardado na caixinha de irrealidades. Aquilo foi surreal. É difícil demais lidar com esse episódio. Depois de ter enviado o artigo para o Jornal do Brasil e apagar a luz do gabinete, dei boa noite e nunca mais retornei para aquela sala. Tem gente que eu não vejo desde aquele dia. Tem toda aquela agonia. Eu cuidava da imagem publica da Mari e no dia seguinte você vê tudo, todos os jornais, revistas… Falando tudo, de coisas lindas até as absurdas, as mentiras e você não pode mais administrar aquilo, que era o que eu fazia. O que mais dói foi não poder ter vivido os ritos de despedida. Não pude sair de casa para ir no enterro, no velório, na missa, nos atos. Então, é difícil concluir, fechar essa perda, esse ciclo.
Viajei para a Europa, fiquei dois meses protegida pela Anistia Internacional. Depois, voltei rapidamente ao Brasil para fazer a reconstituição da morte da Marielle. Voltei para outro país, onde fiquei na casa de amigos exilada porque não me sentia segura em voltar. Retornei ao Brasil dentro desse programa da União Europeia de proteção para defensores dos direitos humanos. Foi quando comecei a falar com a imprensa. Fiquei com medo de ameaças. Por não querer aparecer, fiquei receosa de acharem que eu estava escondendo algo ou que eu sou testemunha ocular.
O que aconteceu agora, a prisão dos dois policiais, é um passo importante. Foi esquisito ver essas figuras presas, olhar a cara do cara que metralhou o carro que eu estava e que matou Marielle. É uma sensação estranha, é um passo importante. Acho que estão de parabéns a promotoria, o Ministério Público do Rio, as autoridades que investigaram. Agora, foi um ano para chegar nisso. Foram 365 dias. É inacreditável. Chegar isso a essa altura é angustiante. Então, apesar de tudo, apesar de ter sido positivo, eu tenho algum receio. Porque eu quero saber quem mandou matar. Quem pagou por isso? E eu não quero esperar mais um ano. A gente tem que continuar cobrando das autoridades. Quem mandou matar, quem pagou por isso e mais, por que mandaram matar?
[…] também enfatiza as homenagens à Marielle Franco, vereadora assassinada em 14 de março de 2018, e Vera Lúcia dos Santos, uma das fundadores do movimento Mães de Maio, que […]
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[…] Há três anos, em 14 de março de 2018, a vereadora Marielle Franco foi brutalmente assassinada quando voltava para casa depois de uma atividade com outras mulheres negras no centro da cidade do Rio de Janeiro. Quando a vida de Marielle foi arrancada, ela já era gigante: a vereadora do PSOL foi quinta parlamentar mais bem votada das eleições municipais do Rio de Janeiro em 2016, com 46 mil votos. […]
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