Depoimento | ‘PM me arrancou de ônibus a caminho de reportagem’

    Repórter da Ponte conta como foi arrancado à força de um ônibus por policiais rodoviários de Campinas (SP), a caminho de pauta sobre violência policial

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    Policiais que arrancaram do ônibus o repórter da Ponte | Foto: arquivo pessoal

    “Numa abordagem, você prende um bandido ou faz um amigo”, sentenciou o novo comandante da Polícia Militar de São Paulo, coronel Marcelo Vieira Salles, em entrevista à Folha de S.Paulo, na qual o comandante afirma seu compromisso com uma polícia “humana e respeitosa no trato com as pessoas”. Mas parece que a nobreza das palavras do comandante está distante da realidade do que a gente encontra nas ruas.

    Neste sábado (12/5) eu passei por uma abordagem policial. Eu me senti, de fato, coronel Marcelo, tratado como um bandido. Mas o senhor acredita que não fui preso e nem fiquei amigo dos policiais? Pois é. Se anotei os dados que consegui a respeito deles, não foi para adicioná-los no Facebook, segui-los no Instagram e chamá-los para minha festa de aniversário, como faço com meus amigos. E sim porque pretendo denunciá-los às autoridades competentes – se é que existem, e são de fato competentes.

    Eram quatro policiais militares, dois do TOR (Tático Operacional Rodoviário), da viatura R-01570, placa PYZ-3223, de Campinas, e dois da Rocam (Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas). Eles pararam o ônibus em que viajava, por volta das 12h, na entrada de Santos, a caminho de cobrir pela Ponte um ato das Mães de Maio, que tiveram seus filhos mortos pelo Estado, em vários casos por membros da Polícia Militar do Estado de São Paulo.

    Depois de entrar no ônibus, os PMs pediram os documentos de alguns passageiros, eu e mais dois, se não me engano. No meu caso, a atenção foi maior. Além de fotografar meu RG, também pediram para revistar minha mochila e perguntaram o que eu fazia e onde trabalhava. Eu sabia que eles estavam indo além do que a lei poderia lhes autorizar, mas não reclamei. Só mudei minha atitude quando um dos policiais me disse para sair do ônibus.

    O senhor vai me desculpar, coronel Marcelo, mas não consigo achar saudável a ideia de me ver retirado de um ônibus no meio de uma viagem por policiais militares. Tive receio do que poderia acontecer depois disso. Eu sei, eu sei. Deveria ter mais confiança no coração e mais fé nessa valorosa corporação, mas sabe como é. Conheço muita história de gente que aceitou convites como esse vindos de policiais e nunca mais foi vista com vida. Imagino que o senhor também conheça algumas.

    E o mais importante: eu sabia que eles não tinham o direito de me obrigar a sair do ônibus para uma revista pessoal. Está lá no artigo 244 do Código Processo Penal, que o senhor, coronel Marcelo, certamente conhece, e imagino que eles também: “a busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito”. Imagino que os policiais também conhecessem a legislação e a jurisprudência que afirma que a tal da “fundada suspeita” tem que ser baseada em elementos objetivos, coisas reais, não o que dê na telha na policial, nem a cor da pele do suspeito, ou o local onde o suspeito trabalha.

    “Eu não vou sair do ônibus. Eu não fiz nada”, eu disse.

    “Estou dando uma ordem legal. Você vai por bem ou por mal”, respondeu um dos policiais. O tom dele, caro coronel Marcelo, eu preciso reconhecer: não era exatamente humano nem respeitoso.

    “Não é uma ordem legal. Qual é a fundada suspeita que você tem para isso?”, perguntei.

    “A fundada suspeita quem determina sou eu. Eu não tenho que te dizer nada.”

    “O Código de Processo Penal…”, comecei. E não consegui mais continuar. Os policiais não pareciam muito interessados em discussões jurídicas.

    Com a covardia de quem se garante pelo número maior e pelas armas, os dois policiais desafivelaram o meu cinto de segurança e me arrancaram com força do assento. Uma passageira fez um vídeo da cena. É bem curto. Ela não filmou mais porque teve medo. Não é louco isso, coronel Marcelo? As pessoas têm medo de serem presas, violadas ou mortas pela Polícia Militar, mesmo que não estejam fazendo nada de errado. De onde será que vem esse medo tão irracional?

    Mesmo agora, mais de 24 horas após o ocorrido, ainda sinto uma leve dor do aperto da mão de um dos policiais embaixo do meu braço esquerdo. Não é uma lembrança carinhosa, sinto dizer, coronel. E não me deu vontade de ficar amigo do soldado que me deixou esse carinho.

    Fui levado ao acostamento, onde me apalparam todo o corpo. Perguntaram se eu tinha droga na mochila, a mesma que eles já tinham revistado – me desculpe, coronel Marcelo, mas nessa hora, não sei por quê, me passou pela cabeça a definição de Millôr Fernandes, para quem “inteligência militar é uma contradição em termos”. Também voltaram a perguntar onde eu trabalhava e o que ia fazer. Aí preferi responder que não ia dizer nada sem um advogado.

    Ficaram alguns minutos conversando com o rádio da viatura, enquanto eu aguardava, de pé no acostamento. A conversa com o rádio me deixou mais tranquilo. Estavam checando meus dados, seguindo procedimentos. Menos mal, pensei. Não parece que vão me colocar na viatura e sumir comigo (não estou dizendo que essas coisas aconteçam, viu, coronel Marcelo, não sei por que pensei nisso). Esperei. Mais tarde, um dos passageiros do ônibus me disse: “Como você ficou calmo com a situação!”. Não sei se estava exatamente calmo, mas sabia que qualquer gesto ou fala da minha parte poderia me valer uma acusação de desobediência, desacato ou perturbação do trabalho, que me levaria a uma delegacia e me faria perder o ato das Mães que precisava fazer dali a pouco.

    Quando um dos policiais veio me devolver meu RG e dizer que estava liberado, imaginei que fosse pedir desculpas. Era a chance, quem sabe, de fazer um amigo, não é, coronel Marcelo? Mas nem isso. Parecendo decepcionado por não ter encontrado um motivo para me prender, ele reclamou:

    “Você podia ter colaborado com a gente.”

    “Vocês podiam saber os limites legais da sua atuação”, disse.

    “Ah, é assim que você vê o trabalho da polícia? Pode ir. Está liberado.”

    Ao voltar para o ônibus, eu me sentia puto comigo mesmo ao perceber que minhas mãos estavam tremendo e que eu tinha me deixado abalar mais do que devia por um abuso que, felizmente, era tão pequeno perto de tantos outros que narro todos os dias na Ponte. Alguns passageiros estavam mais indignados do que eu. Um deles fez questão de anotar os dados da viatura e prometeu fazer uma denúncia. E ainda me contou o que aconteceu no ônibus quando eu estava sendo apalpado no acostamento. Segundo ele, um dos PMs entrou no veículo e fez um discurso sobre a importância de colaborar com a polícia e prestar atenção aos objetos que outros passageiros colocam no compartimento para bagagem de mão. “Se alguém deixou uma mala com droga perto de você, mesmo que não seja sua, você pode ser preso”, avisou.

    Logo após arrancar um passageiro do ônibus, um PM diz aos demais que eles podem facilmente ser presos “por engano” por tráfico de drogas. Será que isso parece com uma tentativa de intimidação, coronel Marcelo?

    Quando o ônibus me deixou perto da praia, parei para comer sardinhas num boteco e, de barriga cheia, notei que minhas mãos tinham parado de tremer. Ótimo. Estava pronto para voltar ao trabalho. Quando cheguei ao ato, uma das participantes, que também estava comigo no ônibus, já havia contado o que tinha me acontecido. Débora, das Mães de Maio, veio até mim e me deu um abraço forte, de mãe guerreira acostumada a lutar, e uma risada: “A polícia te deu um sacolejo, foi?”.

    Conversei com outros ali, militantes e comunicadores, e ninguém conseguia entender o que tinha acontecido. Podia ter alguma relação com o trabalho que faço e a pauta que cobriria naquele dia? Até agora, não sei. Parece que os motivos para uma abordagem violenta parecem simplesmente não importar. Como disse o policial antes de me arrancar do meu assento, cabe a ele determinar o que pode ou não ser feito. Ao restante da população, que não veste farda, cabe apenas o papel de colaborar com as autoridades. Com todo o respeito, coronel Marcelo, acho que esse não é o melhor jeito de fazer amigos. Nem de construir uma democracia.

    Outro lado

    Procurada sobre a abordagem feita pelos PMs da viatura R-01570 ao repórter da Ponte, a In Press Comunicação, responsável pela assessoria de imprensa da Secretaria da Segurança Pública de SP do governador Márcio França (PSB), não respondeu.

    Em conversa com a Ponte, o Corregedor da Polícia Militar de São Paulo, coronel Marcelino Fernandes explicou que a abordagem do artigo 244 citada na matéria se refere somente para investigações. “As abordagens feitas pela polícia na rua é com base no poder de polícia”, sustenta.

    Segundo o corregedor, são três atributos para este poder: a de autoexecutoriedade, que dá ao policial poder imponderável de abordar sem ter mandado; a discricionariedade, que trata da faculdade de agir pautado em oportunidade e conveniência; e coercibilidade, que é o uso da força. “Se for de rotina não precisa da fundada suspeita, como ocorre por exemplo para entrar num campo de futebol! Todos são revistados”, exemplifica.

    Segundo apurado, já foi aberta investigação para apurar as ações dos policiais envolvidos. Ela ficará a cargo do coronel Luis Henrique Di Jachinto Santos, comandante da Polícia Militar Rodoviária.

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