“No dia 15 de maio, eu saí de casa por volta das 14h para ver um filme, o “Hoje não quero voltar sozinho”. Fui com uma amiga e, quando saímos do cinema, percebemos que havia uma movimentação grande e que as pessoas estavam se preparando para uma manifestação.
Então fomos até um café na Haddock Lobo, o Fran’s Café, e ficamos em torno de uma hora lá até mesmo para que a situação acalmasse e pudéssemos ir embora mais tranquilas.
Quando saímos, percebemos que a manifestação já estava dispersa. Eram poucas as pessoas que restavam na rua, sendo que a maioria delas também estava esperando a situação acalmar para poder ir embora. Então ficamos perto desse grupo, onde a gente se sentiu um pouco mais segura. A rua da Consolação foi liberada para carros e ônibus e então decidimos caminhar até a estação Paulista da linha Amarela do metrô.
E aí foi muito próximo da entrada do metrô que tudo aconteceu. Duas viaturas subiram a Consolação no sentido oposto [sentido bairro] atirando contra um grupo muito pequeno, de umas 30 pessoas no máximo, que também não estava na manifestação – ou parecia não estar.
Ouvi dois estrondos antes de ser atingida por um artefato, que eu não sei precisar se era bala de borracha, estilhaço de bomba, ou ambos. Só sei que o que me atingiu foi atirado pela PM.
Tenho certeza disso porque o grupo estava atrás de mim. Não tinha como ser um manifestante ou quem não tinha nada a ver com a manifestação.
Depois de ouvir os dois barulhos bem próximos a mim, no terceiro eu já senti o impacto no meu rosto e eu só me dei conta de que tinha sido atingida porque eu sangrava muito, minha roupa estava cheia de sangue. Então, a minha amiga e algumas pessoas desconhecidas me deram os primeiros socorros e me levaram até o hotel Fórmula 1, que fica ali bem perto, e, por sorte, se assim eu posso chamar, estava tendo uma conferência de médicos naquele dia.
Eles completaram os primeiros socorros e me levaram de taxi até o Hospital das Clínicas, onde fui atendida.
A cada passo que eu dava no hospital, o segurança vinha atrás. Ele sempre perguntava “cadê a garota que levou o tiro no olho?”
Chegando lá, os médicos se mostraram bastante preocupados com o meu caso. Estancaram o sangue. Tive que fazer uma tomografia, onde foi constatado que eu tinha quebrado o nariz e o osso ocular no lado esquerdo da face, abaixo dos olhos.
Acabei ficando a madrugada toda lá, em atendimento. Aí levei pontos na face para fechar o corte e fiz uma cirurgia 15 dias depois, que durou aproximadamente 40 minutos e que foi terrível porque, como não foi anestesia geral, eu vi tudo. Foi muito agonizante. No dia 11 de junho, foi a última vez que fui ao hospital.
Estou em acompanhamento médico. E tenho retorno em julho porque é necessário esperar que desinche completamente a região afetada para saber se será necessária uma nova cirurgia porque o lado esquerdo nasal ainda está um pouco obstruído. Ainda é difícil respirar.
Quando eu cheguei ao hospital, no dia 15, um homem que se apresentou como diretor do hospital veio conversar comigo. Ele falou que precisava saber o que estava acontecendo porque a polícia estava do lado de fora e que ia fazer um BO contra mim. Eu fui a vítima e a polícia faz um BO. Muito estranho, mas foi o que me disseram.
Hoje, sempre que vejo uma viatura tenho medo, constrangimento.
A cada passo que eu dava no hospital, o segurança vinha atrás. Ele sempre perguntava “cadê a garota que levou o tiro no olho?”
Uma hora eu me injuriei com aquilo e perguntei pra ele:
-Por que vocês ficam atrás de mim? O que está acontecendo?
-Porque cada passo que você dá aqui dentro a gente tem que passar para o policial.
-Que policial?
-Tem um policial lá fora, ele já conversou com o médico e tem todos os seus dados.
Então, por um momento, aquilo me deixou muito apavorada. Eu tinha acabado de ser vítima. Já me veio à mente que eu sairia do hospital e iria direto para uma viatura. Fiquei com medo. Mas, quando eu saí do hospital isso não ocorreu.
Hoje, sempre que vejo uma viatura tenho medo, constrangimento. Porque quando a gente pensa que quem deveria fazer a segurança nos dá mais medo do que qualquer outro cidadão comum… é desesperador.
Até o dia da cirurgia, tudo foi assustador, tanto fisicamente quanto psicologicamente. Era um misto de sentimentos dentro de mim: tristeza com indignação, com impotência contra a violência policial. Vem tudo na cabeça, né? Porque mesmo se eu fosse manifestante, nada justificaria atirarem uma bala de borracha ou qualquer outra coisa em direção ao meu rosto.
Acho que foi ainda pior quando a Secretaria da Segurança Pública me desmentiu em rede nacional, dizendo que a polícia não tinha usado balas de borracha e que tinha dado total apoio à manifestação para que ocorresse tudo bem, sendo que mesmo eu não estando na manifestação, eu percebi que isso não aconteceu. Tanto que eu fui vítima. E isso me deixa bastante indignada. E agora, quando eu lembro, ainda é um pouco assustador, mas eu prefiro pensar que o pior já passou.
Tudo o que aconteceu só veio confirmar as coisas que eu sempre pensei. Sempre achei que a nossa polícia é muito despreparada e é truculenta. Depois disso, só veio confirmar. Não porque aconteceu comigo dessa vez. Mas porque já vem acontecendo há algum tempo e continua. Está cada vez pior. E atitudes como esta têm todo respaldo e apoio do nosso governo. Em nenhum momento vieram atrás de mim, depois, para saber o que aconteceu comigo. Ninguém me procurou. Pelo contrário, a secretaria só me desmentiu.”