Secretário da Segurança do governo Tarcísio e prefeito associaram o esvaziamento a ações contra “tráfico” na favela do Moinho. ONG denuncia agenda política higienista e diz que usuários foram expulsos sob tortura pela GCM

O cenário atípico de esvaziamento da região da Cracolândia chamou atenção no início desta semana em São Paulo. Moradores da região afirmam que, desde sexta-feira (9/5), a rua dos Protestantes, na Santa Ifigênia, não tem mais o fluxo de usuários. O fato foi comemorado por autoridades do governo estadual e municipal como um feito das políticas de segurança e assistência social.
Tarcísio de Freitas (Republicanos) e Ricardo Nunes (MDB) também buscaram associar o esvaziamento à destruição da favela do Moinho — ação inserida no contexto de transferência de prédios da administração estadual para o Centro. A narrativa, no entanto, é contestada por movimentos que atuam na região há anos e atribuem a dispersão ao aumento da repressão da Guarda-Civil Metropolitana (GCM) contra usuários.
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A Craco Resiste, movimento social contra a violência policial na Cracolândia, denunciou em nota na terça-feira (13/5) que os usuários espalharam-se pelo centro da cidade fugindo das agressões. E registrou que essa “política não é nova, remete à Operação Dor e Sofrimento posta em prática em 2012 pela então gestão do prefeito Gilberto Kassab”. A organização mapeou concentrações de pessoas principalmente na Praça Marechal Deodoro, em Santa Cecília, e no entorno do elevado Presidente João Goulart, o Minhocão. A TV Globo também registrou aglomerações nas zonas sul e leste da cidade.
Vídeos feitos por moradores registraram usuários tentando se instalar na Praça Marechal Deodoro, na região de Santa Cecília, na noite de terça-feira (13/5). As imagens mostram um grupo de pessoas andando acompanhadas por uma viatura da GCM. É possível ouvir gritos e ver algumas pessoas correndo. Moradores de bairros centrais também relataram à Ponte a presença de usuários em ruas de bairros como Barra Funda e Santa Cecília.
‘O que já era ruim, piorou’
O espalhamento das pessoas é visto com preocupação pelo promotor da área de saúde pública do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP), Arthur Pinto Filho. “A situação é preocupante porque, com as pessoas saindo, o pouco de auxílio que elas tinham de assistência social e de saúde, que era pouco, mas ainda tinha algum tipo de auxílio, se perde porque as pessoas estão andando pelas ruas e ninguém sabe onde elas estão. Um dia estão de um lado, no outro, de outro. O que já era ruim piorou”.
“A região central está muito, muito ruim. As pessoas estão vagando pelas ruas em todos os lugares sem nenhum tipo de atuação do Estado que não seja a violência, que não seja a Guarda Civil atrás dessas pessoas. É uma situação muito preocupante, muito difícil”, diz.
Uma reunião entre o Ministério Público e movimentos que atuam na Cracolândia será marcada para a próxima semana. O objetivo é entender o que está acontecendo na região.
Derrite alardeia prisão de ‘lideranças do tráfico’
Autoridades dos governos estadual e municipal fizeram publicações comemorando o resultado. No X, o secretário da Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite, publicou uma foto da rua dos Protestantes vazia. “Quem já viu esse ponto da Rua dos Protestantes antes se impressiona com essa imagem de hoje”, escreveu.
“Prendemos as principais lideranças do tráfico de drogas no centro de São Paulo. Desmascaramos pensões e hotéis que serviam de pontos de distribuição de entorpecentes e para lavagem de dinheiro do PCC, que explorava o vício de dependentes químicos. A droga parou de chegar, fazendo com que o centro de São Paulo deixasse de ser um ponto interessante para a criminalidade”, alardeou Derrite.
Na quarta-feira (14/5), a PM-SP realizou uma operação com cães farejadores na comunidade do Moinho, que supostamente ajudaria a abastecer a Cracolândia, e divulgou ter apreendido apenas 1,3 quilo de crack, além de quatro quilos de outras drogas, uma pistola e uma garrucha. Nenhum traficante foi preso.
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O vice-prefeito de São Paulo, Coronel Mello Araújo (PL), reforçou a narrativa do “sucesso” da política municipal com uma série de publicações no Instagram elogiando a atuação da GCM e demais forças de segurança. “Estamos vencendo essa guerra. Parabéns às nossas forças de segurança”, escreveu. Mello Araújo afirmou ainda que “a imprensa está inconformada porque não há dependentes químicos”.
O próprio governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), compartilhou na segunda-feira (12/5) o trecho de uma entrevista em que falou sobre a Cracolândia. A conversa foi ao ar no dia 7 de maio e o bolsonarista listou ações feitas para desarticular o crime organizado, como a desapropriação de imóveis que pertenceriam ao Primeiro Comando da Capital (PCC).
‘Fortaleza do tráfico de drogas’
Na ocasião, Tarcísio se referiu à favela do Moinho como uma das razões que levaram ao esvaziamento da rua dos Protestantes. “Estamos fazendo agora ação no Moinho para dar dignidade para aquelas pessoas que moravam lá. Mas o Moinho funcionava também como uma fortaleza do tráfico de drogas. Lá dentro a gente tinha inclusive as antenas que faziam a interceptação da comunicação rádio da polícia”, disse.
Essa associação também apareceu na fala do prefeito Ricardo Nunes. Em entrevista coletiva, Nunes se mostrou surpreso com o sumiço do fluxo. “Surpreendeu a prefeitura. Mas, obviamente, a gente já vinha reduzindo gradativamente. Todos os dias vinha reduzindo a quantidade de pessoas lá. As pessoas indo para tratamento, voltando para os seus estados, as pessoas aceitando a internação”, explicou o prefeito.
O prefeito disse que as operações da prefeitura e do governo do Estado para o combate ao tráfico de drogas contribuem para a redução no fluxo dos usuários. “Sem a droga presente, você tem uma facilidade maior de convencer as pessoas a irem para tratamento. Ontem, a gente tinha 60 pessoas que procuraram tratamento voluntariamente. A gente tem tido sucesso em convencer as pessoas.”, afirmou.
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Em áudio enviado pela Secretaria de Comunicação da prefeitura à Ponte, o prefeito diz que é preciso comemorar os avanços em relação à Cracolândia. “Hoje a gente dá para dizer que resolveu todo o problema? Obviamente que não resolveu todo o problema, mas que a gente avançou muito, que a gente precisa comemorar”, afirma Nunes.
O alcaide defende que o número de pessoas concentradas na rua dos Protestantes diminuiu gradativamente desde o início da gestão. “Eu pedi para publicar diariamente a contagem, diariamente, e a gente foi mostrando, 3 mil, 2 mil, 1.500, 1.800, gradativamente a gente foi diminuindo a quantidade de pessoas fazendo uso de drogas naquele local”, diz.
Parte das pessoas, defendeu, foram atendidas nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) e em outras estruturas da prefeitura que promovem saúde e atendimento e tiveram o número de vagas aumentado. O prefeito criticou a imprensa por “pegar no pé” sobre a questão da Cracolândia. “Para de pegar no nosso pé, vamos estar juntos nessa batalha, nós estamos bem intencionados, nós estamos querendo resolver esse problema”, disse.
Uma agenda política higienista
A derrubada da favela do Moinho está inserida no plano de privatização de Tarcísio, que inclui a construção do novo centro administrativo do governo e a construção de uma estação de trem onde está a favela. A região é apontada pelo governo Tarcísio como uma peça central na distribuição de drogas no Centro. Para Ariel Machado, membro da Craco Resiste, parece haver uma tentativa de conciliar a desmobilização do Moinho com o esvaziamento da Cracolândia.
A ideia do governo do Estado é construir no local onde hoje vivem mais de 800 famílias um parque ou uma estação de trem. A contraproposta oferecida para a saída dos moradores é alvo de críticas por oferecer valores baixos de auxílio-aluguel e financiamentos de imóveis em valores que muitos moradores não conseguem pagar.
A retirada das famílias tem sido marcada por violência policial. Nos dois últimos dias, a Polícia Militar escoltou operários da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU). Houve uma ação com bombas de gás lacrimogêneo e tiros de balas de borracha. Ao menos três pessoas foram baleadas com munições não letais e vários moradores passaram mal com o pânico e a dificuldade de respirar.
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A área fica em um terreno da União, que está em processo de cessão ao governo do Estado. Na terça-feira (13/5), após ter autorizado que fossem feitas demolições de casas na favela, o governo Lula (PT) voltou atrás e oficiou extrajudicialmente o governo do Estado para paralisar o processo de cessão do terreno. Em nota, o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGISP), ao qual é submetida a Secretaria do Patrimônio da União (SPU), que conduz desapropriações a nível federal, afirma não concordar com o uso de violência policial contra os moradores do Moinho.
O ofício não foi suficiente para barrar as demolições e a presença da Polícia Militar. Nesta quarta-feira (14/5), a PM de Tarcísio foi para a comunidade com a Tropa de Choque. Os agentes revistaram mochilas de crianças, impediram que moradores saíssem de casa e escoltaram operários do CDHU em demolições. Os policiais também impediram a entrada de jornalistas na favela, sob alegação de que existe uma “ordem policial” para isso. Questionada, a Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP-SP) não explicou de onde partiu a ordem.
‘Tortura a céu aberto’
Movimentos que acompanham a situação na Cracolândia discordam dessa narrativa. A Craco Resiste afirma que a Guarda Municipal passou a adotar nos últimos dias uma política de dispersão com violência. Pessoas ouvidas pelo movimento afirmam que os guardas municipais passaram a bater mais no rosto e na cabeça das pessoas.
“O que está acontecendo nas ruas do centro de São Paulo em pleno 2025 chama-se tortura! Tortura a céu aberto, protagonizada pelo poder público e custeada por toda a população contribuinte. Foram as diversas formas de violência que levaram as pessoas à Cracolândia, não vai ser a pancada que vai tirá-las de lá. Isto já foi tentado, já se sabe que é ineficaz, cruel e muito caro aos cofres públicos”, diz, na nota.
“O que nós conseguimos coletar de relatos nos últimos dias foi que a violência da GCM ficou mais frequente e mais gratuita”, diz Ariel Machado, membro da A Craco Resiste. Segundo ele, a GCM segue agindo com violência para impedir que os usuários retornem à região ou se estabeleçam em determinados territórios.
“Então elas estão sendo coagidas a circular e não permanecer em grupos. Isso está sendo feito pela GCM basicamente. É a GCM quem tem cumprido esse papel de impedir novos pontos de concentração”, afirma. Conhecido como o “palhaço da ‘Cracolândia’”, o psiquiatra Flávio Falcone conta que o fluxo se espalhou pelo Centro. “Ao mesmo tempo, cada vez mais polícia na rua com a estratégia de separando eles [usuários] fica mais fácil de reprimir”, diz.
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Essa não é a primeira vez que a Cracolândia se desloca. Em 2022, a concentração de usuários deixou o entorno da praça Júlio Prestes e mudou para a praça Princesa Isabel, ambos endereços no centro da cidade. A mudança, segundo a polícia, ocorreu por ordem do crime organizado.
Em janeiro deste ano, o aumento no número de pessoas em situação de rua e usuários de drogas provocou uma reação criminosa em bairros da zona norte da capital. Em Tremembé, um grupo passou a atuar de forma criminosa na tentativa de remover essas pessoas do bairro. Institutos “Justiceiros de Tremembé”, eles divulgavam as ações nas redes sociais.