‘Desespero grande’: família luta por justiça para escrivã que tirou a própria vida em MG

Rafaela Drumond, 31, foi encontrada morta pelo pai dentro da casa da família em Antônio Carlos, na sexta-feira (9); em áudios, vítima relatou sobrecarga de trabalho, exaustão e assédios moral e sexual

Rafaela Drumond era escrivã da Polícia Civil de Minas Gerais há três anos | Foto: reprodução/redes sociais

Atenção: esta reportagem trata de saúde mental e suicídio – que podem gerar gatilhos. Caso você não esteja bem e precise conversar com alguém, a Ponte recomenda entrar em contato com o Centro de Valorização à Vida (CVV), que funciona 24 horas e pode ser acionado através do telefone 188 (ligação gratuita) ou neste site, ou uma unidade mais próxima de saúde que você pode encontrar por meio do Mapa Saúde Mental.

Rafaela Drumond, de 31 anos, estava há cerca de três anos na Polícia Civil de Minas Gerais. Passou no concurso de escrivã, mas o que queria mesmo era ser delegada. “Era o sonho dela, ela sempre quis ser policial”, afirma o mecânico Aldair Divino Drumond, 61, pai da jovem. “Ela tentava concurso para delegada no país inteiro, em São Paulo, no Rio, onde ela passasse. Ela falava ‘pai, se eu for fazer a prova em tal lugar você me leva?’ Eu falava ‘levo'”.

Primeira da família a ingressar na polícia, Rafaela trabalhava na delegacia de Carandaí, a aproximadamente 135 quilômetros da capital mineira e vizinha a Antonio Carlos, onde a família vive. “Ela morava lá e vinha visitar a gente aqui em Antônio Carlos”, lembra Aldair. “Até janeiro, parecia tudo normal. Ela vinha, brincava, interagia”.

Nos últimos três meses, segundo ele, a filha ficou mais reclusa e não conversava com a mesma frequência de antes com os pais. “Eu pedi para minha esposa perguntar o que estava acontecendo e ela disse que estava focada nos estudos para ser delegada”, conta. “Eu deixei de lado porque quando ela tentou [o concurso] para ser escrivã ela ficou um pouco dessa forma, mas ela não estava normal.”

Antes do último feriado de Corpus Christi, o mecânico foi buscar Rafaela na rodoviária para levá-la para casa. Na sexta-feira (9/6), os dois chegaram a visitar a irmã de Rafaela numa clínica onde é veterinária e retornaram. À noite, Aldair, que cochilava no sofá, foi despertado por um barulho e, ao andar pela residência para entender o que havia acontecido, encontrou a filha sem vida. “Foi um desespero, foi a pior cena que um pai poderia ver”, lamenta. “A gente não entendia, porque era uma moça cheia de vida, cheia de perspectiva, adorava a polícia.”

O resgate foi acionado, mas Rafaela não resistiu. “O meu mundo ali acabou e eu ainda teria que ser forte para cuidar de tudo. Minha esposa estava transtornada”, lembra.

A família, que não estava entendendo o que havia acontecido, acabou tendo acesso a uma série de áudios e um trecho de um vídeo em que Rafaela discutia com um homem ainda não identificado, que seria policial, que circularam pelas redes sociais e pela imprensa local.

Neles, que Aldair confirma se tratar da voz da filha, a escrivã relata sobrecarga de trabalho, exaustão e perseguição a quem reclama das condições de trabalho. “Esses covardes da polícia, principalmente do alto escalão da polícia, falam que faz [mas] são tudo uns engomadinho falso, filha da puta, que só quer ganhar nós, mas quem tá embaixo, que trabalha, que sofre as coisas, só se fode. É por isso que tá todo mundo adoecendo, pegando licença e ninguém tá nem aí”, diz ela. Em outra gravação ela menciona que teria sido assediada sexualmente por um inspetor.

Em um vídeo, cujas imagens são de um chão de um local não identificado, ela discute com um homem que a xinga de “piranha”, “cabecinha fraca”. Quando Rafaela diz que vai denunciar, ele ironiza e fala “grava e leva no Ministério Público, na Corregedoria, na puta que pariu, nos diabos, leva pra quem você quiser”. “Se você fosse homem, ou eu ou você já tava com olho roxo”, afirma o homem ao dizer que “não bate em mulher”.

O mecânico Aldair Drumond, pai de Rafaela, mostra cartaz com dizeres “justiça pela escrivã da Polícia Civil Rafaela Drumond, que sofreu assédio na Delegacia de Carandaí. Ela está morta!” | Foto: arquivo pessoal

Na segunda-feira (12), Aldair conta que foi no centro da cidade pedir ajuda e fez uma manifestação com um cartaz em que pedia justiça pela filha e que ela foi vítima de assédio moral. “Eu nunca imaginei que ela estava passando por isso”, lamenta o mecânico. “Imagino que ela estava escondendo isso por medo de a gente ir atrás. O desespero na cabeça dela pelo jeito era grande e ela não aguentou a pressão”.

Ele afirma que a Corregedoria da Polícia Civil, com dois delegados, uma escrivã e duas psicólogas, o chamaram para informar que o caso estava sendo investigado. “Aquilo me tranquilizou um pouco, mas a gente espera que seja investigada a veracidade dos fatos”, afirma. “O que aconteceu com a minha filha me fez ela me dar uma missão de ajudar a combater todo o tipo de assédio”.

O diretor do departamento jurídico do Sindicato dos Escrivães de Polícia de Minas Gerais (Sindep-MG), Marcelo Horta, informou à Ponte por meio de nota que Rafaela procurou o núcleo jurídico da entidade uma semana antes. “Ela fez uma consulta acerca dos limites de carga horária de trabalho, mas naquela oportunidade não denunciou os assédios que estaria sofrendo”, declarou. “Também há informações sobre casos de afastamento de policiais por questões de saúde mental na regional onde laborava a escrivã, porém infelizmente essa tragédia aconteceu antes de termos a oportunidade de comparecer ao local.”

O sindicato afirma que têm realizado tratativas junto à chefia de polícia e procurou a Assembleia Legislativa para buscar providências e também pedir uma audiência pública sobre assédio e saúde mental na corporação, já que os profissionais encontram dificuldade de para serem ouvidos. “Infelizmente, casos de assédio moral e sexual têm sido muito comuns, mas é muito difícil produzir provas para punir os assediadores, uma vez que, na maioria dos casos, quem testemunha não quer se envolver por medo de retaliação, ou até mesmo sofre abusos semelhantes, mas não consegue se rebelar”, disse Horta. 

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O Sindep convocou uma homenagem à escrivã a partir de uma caminhada com seis horas de silêncio na cidade vizinha de Barbacena para a missa de sétimo dia, nesta quinta-feira (15), na Paróquia Bom Pastor.

O que diz a polícia

Em coletiva de imprensa nesta quinta-feira (15/6), o chefe de Departamento de Barbacena, delegado Alexander Soares Diniz, responsável pelas investigações do caso, disse que o celular de Rafaela foi recolhido para perícia, bem como serão periciadas as gravações divulgadas. “Nós fizemos um trabalho de acolhimento de família da vítima e dos colegas policiais da delegacia de Carandaí”, declarou.

Questionado sobre o conteúdo dos áudios e se Rafaela chegou a procurar a Corregedoria, ele disse que “não chegou nenhuma reclamação formal” ao conhecimento dele, “mas o inquérito policial está verificando isso”. Ele também disse que o único contato que ele teve com a vítima foi quando ela teria pedido para trabalhar em uma unidade mais próxima da família e que não fez solicitação para ser transferida da delegacia de Carandaí, que é subordinada ao Departamento de Barbacena.

A Ponte também procurou a assessoria da corporação sobre a questão de saúde mental na Polícia Civil, que encaminhou a seguinte nota:

A valorização e qualificação dos servidores é um dos principais valores da Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG). Assim sendo, eventuais denúncias de sobre prática de atos que constituam assédio moral são imediatamente investigadas pela instituição, por meio de procedimentos disciplinares e criminais. Com o objetivo de orientar os seus servidores e a população em geral, a PCMG disponibiliza em seu sítio eletrônico uma cartilha sobre a temática do assédio moral, na qual consta, inclusive, onde procurar ajuda e como denunciar. Links da cartilha e do site: https://www.policiacivil.mg.gov.br/site-pc/pagina/servico-cartilhas-pcmg Informamos ainda que, o CID dos afastamentos por licença-saúde é sigiloso e, por este motivo, não há como estratificar os dados solicitados. A Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG) informa que o Centro de Psicologia do Hospital da Polícia Civil (HPC) oferece atendimento psicológico clínico, por meio de sessões presenciais e também por teleconsulta, para servidores da ativa, aposentados e dependentes, da capital e do interior do estado. Ademais, o HPC dispõe do plantão psicológico, que consiste em um dispositivo de escuta especializada, sem necessidade de agendamento, serviço amplamente divulgado aos servidores.

A PCMG acompanha de perto os dados sobre saúde mental e eventuais casos de suicídio nas respectivas unidades que atuam em Minas Gerais. Contudo, dados estatísticos sobre o tema não são objeto de divulgação, com o intuito preservar a família das vítimas, garantir o direito à privacidade, evitar alarmismos e análises descontextualizadas sobre casos individuais que possuem motivações multifatoriais. A Superintendência de Investigação e Polícia Judiciária (SIPJ), por meio da Inspetoria-Geral de Escrivães, além de uma equipe da Diretoria de Saúde Ocupacional (DSO), do Hospital da Polícia Civil (HPC), foram no município de Carandaí para acolhimento e atendimento dos servidores. A PCMG instaurou procedimento disciplinar e inquérito policial, com o objetivo de apurar as circunstâncias que permearam os fatos.

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