Desobediência civil: por que associações de pacientes de maconha medicinal precisam transgredir a lei

Em meio ao proibicionismo brasileiro, entidades enfrentam contradições legais, encarceramento e preconceitos para garantir o direito constitucional à saúde

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Prisão, preconceito e desobediência civil são alguns dos desafios enfrentados pelas associações pacientes de maconha medicinal. | Ilustração Junião/Ponte Jornalismo

Cerca de 18 pessoas dividiam uma cela escura de concreto, de aproximadamente quatro metros de largura por quatro metros de comprimento, quando Hélio Henrique Júnior, 30 anos, e seu pai Hélio Henrique, 67 anos, souberam que iriam deixar o Presídio Masculino de Tubarão, cidade do sul de Santa Catarina. Era cinco de agosto de 2021, e a liberdade provisória havia chegado. “Todos os presos ao redor se abraçavam e choravam, torciam porque alguém de lá conseguiu.” Pai e filho ficaram 38 dias presos. “Eles não tratam as pessoas como seres humanos. Ficamos cerca de dez dias numa sala fechada sem luz, sem ver o sol”, recorda Hélio Júnior.

Hoje em liberdade, o engenheiro e fundador da Associação de Apoio ao Direito à Saúde Natural (Apoiar) se emociona ao falar sobre os motivos que o levaram à prisão: cultivar maconha para ajudar no tratamento de saúde de cerca de 40 pessoas da região em que vive, no sul de Santa Catarina. Desde o episódio, a produção de óleos foi interrompida. Alguns dos pacientes contribuem até hoje com valores diversos para o funcionamento da instituição, que agora trabalha em parceria com outras associações, tentando conseguir os medicamentos.

Nesse intervalo, pacientes que integravam a Apoiar tiveram prejuízos à saúde pela falta de acesso ao tratamento continuado com os óleos, diz Hélio. Um desses associados é o jovem Adilson da Silva Pereira, de 23 anos, que por conta de alterações cerebrais relacionadas ao autismo voltou a sofrer com muitas convulsões pois está sem os fitoterápicos. 

Hélio afirma que foi forçado pelos PM’s a ir com os policiais à sua casa, onde mantinha uma plantação de maconha. | Foto: Arquivo Pessoal.

A mãe, Ana Otília da Silva, 47 anos, se lembra de como era a vida do filho quando tinha acesso aos óleos de canabidiol (CBD), uma das principais substâncias encontradas na maconha, que ele tomou por cerca de quatro a seis meses. “Com o óleo ele ficava mais calmo, se concentrava. Quase não tinha crises, hoje ele tem crises todos os dias, tem dias que chega a sete”, disse Ana, que trabalha como pescadora. “Ele estava fazendo o uso e de repente não tinha mais, fiquei muito triste. Tenho medo de ele voltar a tomar e ter que interromper novamente.” Diante disso, em 2021 Ana entrou com uma ação na Justiça para adquirir os óleos via SUS (Sistema Único de Saúde), mas até hoje não conseguiu uma decisão favorável do Estado. 

A detenção dos fundadores da Apoiar ocorreu durante a madrugada, depois que Hélio foi parado em uma blitz na noite de 29 de junho de 2021, na cidade de Braço do Norte, também no sul catarinense, quando levava cerca de sete frascos de óleo para um dos pacientes da associação. Segundo ele, na abordagem, cerca de oito policiais questionaram o porquê de tantos recipientes no veículo. Mesmo apresentando sua prescrição médica, o rapaz diz que teria sido forçado a levar os policiais até a sua residência. 

Em depoimento ao delegado André Monteiro Crisostomo, responsável por assinar a prisão em flagrante, o PM que conduziu a abordagem, Ronaldo Michels, informou que foi motivado a parar o carro por ter sentido “cheiro de maconha”. O policial ainda disse ter recebido autorização de Hélio para ir à casa dele. 

Sem qualquer mandado judicial, os policiais entraram na casa do engenheiro por volta de nove horas da noite e se depararam com a plantação de maconha de cerca de 290 pés. “Um dos policiais entrou no meu carro e levou para um posto. Eles me botaram na viatura deles, me obrigaram a levá-los à minha casa. Chegando lá me mandaram dar a senha do wi-fi e começaram a postar fotos das plantas na internet, divulgando: ‘aqui não, Babilônia’. Além disso, não deixaram eu ligar para a minha advogada desde o início da abordagem, tiraram meu celular.” 

Publicação feita pelos políciais que estavam na abordagem dentro da casa de Hélio. PM’s foram marcados na publicação. A pedido de Hélio, os perfis foram ocultados a fim de preservar sua segurança. | Foto: Reprodução/Instagram.

Além do cultivo, também foram encontradas 1.300 gramas de maconha triturada e três antigas armas de fogo de tipo “garrunchas”, semelhante a uma pistola ou revólver. Segundo Hélio, são herança antiga da família e eram usadas como moldes para produção de peças em gesso. “As armas estavam em um móvel antigo do meu avô, trancadas, tiramos as cópias das armas para fazer quadros de decoração e iríamos entregá-las para o meu tio, que tem porte e iria atualizar a documentação na Polícia Federal”, alega. 

No dia 1º de julho, o juiz Klauss Correa de Souza converteu a prisão em flagrante para prisão preventiva, alegando ser necessária para a “garantia da ordem pública”. Após decisão da Quarta Câmara Criminal de Florianópolis, assinada pelo desembargador José Everaldo Silva, pai e filho foram soltos. 

A proibição do cultivo de maconha no Brasil está inserida na Portaria SVS/MS nº 344, de 12 de maio de 1998 do Ministério da Saúde, que define as substâncias consideradas drogas no país. Essa lista é mencionada no art. 1º da Lei 11.343/2006, a chamada Lei de Drogas, segundo o qual “consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União”. 

Além disso, o artigo 34º da Lei de Drogas estabelece ser crime “fabricar, adquirir, utilizar, transportar, oferecer, vender, distribuir, entregar a qualquer título, possuir, guardar ou fornecer, ainda que gratuitamente, maquinário, aparelho, instrumento ou qualquer objeto destinado à fabricação, preparação, produção ou transformação de drogas”. 

A legislação antidrogas também prevê, no parágrafo único do artigo 2º, a autorização para “plantio, cultura e colheita dos vegetais” exclusivamente para fins medicinais ou científicos. Mas a falta de regulamentação sobre as condições necessárias para o cultivo medicinal legal deixam à mercê pacientes que, se flagrados com cultivo e sem uma autorização da Justiça, podem ser considerados traficantes, cuja pena pode ser de cinco a 20 anos de prisão, de acordo com o art. 33 da mesma lei. 

Hélio, que é pós-graduado em cannabis medicinal na faculdade Unyleya Educacional, foi denunciado pela promotora Luiza Zuardi Niensheski, do Ministério Público Estadual de Santa Catarina (MPSC), por associação ao tráfico de drogas e falsificação de medicamentos.

Já ao pai somou-se uma denúncia no artigo 12 do Estatuto do Desarmamento (Lei 10826/03), pois ele mantinha sob sua guarda as armas de fogo e munições no interior da residência. Eles seguem respondendo à denúncia na Justiça catarinense. 

Raquel Helena Cardoso Schramm, advogada criminalista e presidente da Comissão sobre Política de Drogas da Ordem dos Advogados do Brasil de Santa Catarina (OAB-SC), que atua no caso de Hélio, é categórica ao afirmar que a prisão de ambos foi ilegal. “O Hélio foi parado em uma blitz de rotina. Não haveria motivo para ser revistado”, diz. Segundo Raquel, no boletim de ocorrência a polícia alegou que o “cheiro de maconha” era proveniente de determinada quantidade de “skunk” apreendido. “Foram apreendidos apenas alguns frascos de óleo medicinal, o qual não possui qualquer cheiro”, diz.

A conduta da PM também é questionada pela defensora. Os policiais disseram estar filmando Hélio e teriam afirmado a ele que, se mentisse, seria preso. “Houve coação por parte dos policiais e tais imagens nunca existiram.” Toda a ação começou a ser gravada apenas após a entrada da polícia na residência, quando as plantas já tinham sido encontradas, afirma Raquel. “Ambos já estavam sob a custódia policial.”

De acordo com entendimentos do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), a falta de consentimento do morador, documentada com vídeo, áudio, ou testemunhas, somada à inexistência da comprovação de investigações prévias que embasem a ação policial, é passível de tornar ilícitas as provas colhidas pela polícia. Além disso, o consentimento deve ser voluntário e livre de intimidações. 

As fotos da apreensão dos pés de maconha foram divulgadas nas redes sociais. A pedido de Hélio, os perfis foram ocultados a fim de preservar sua segurança. | Foto: Reprodução Instagram.

Em resposta à Ponte, a promotora de justiça Marcela Pereira Geller, da 2ª Promotoria de Justiça da Comarca de Braço do Norte, onde tramita o processo, disse sem entrar no mérito do caso que “ao menos em tese, o manuseio, produção e transporte de substância entorpecente pode deixar odor, não apenas no abordado, como também no veículo utilizado para o seu transporte”. Ela afirmou, ainda, que as imagens das câmeras das fardas dos policiais só são juntadas nas ações judiciais a pedido das partes (Ministério Público e advogado de defesa) e com determinação judicial, caso entendam ser necessárias para a elucidação do caso. 

Já a Polícia Civil do estado alegou que “o delegado André Crisostomo analisou os elementos que lhe foram apresentados pelos policiais militares e pelos conduzidos e tomou a decisão técnica que entendeu pertinente”. 

A reportagem buscou o magistrado Klauss Correa de Souza. Em nota, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) disse apenas que o juiz não emitirá qualquer explicação ou opinião por expressa vedação legal. “A Lei Orgânica da Magistratura Nacional proíbe manifestação sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem”, aponta o órgão.

Apoiar: “alguém pra dar a mão”

Fundada em 26 de janeiro de 2021, a Apoiar, segundo Hélio, partiu da sua própria experiência com o tratamento contra a ansiedade, feito com óleos à base de maconha medicinal. A substância consumida por ele mistura componentes da planta, o canabidiol (CBD) e o tetrahidrocanabinol (THC). O alto custo dos óleos que ele e o pai precisavam consumir fez com que optassem por realizar o plantio doméstico. “Vi o meu resultado positivo, a minha ansiedade indo embora e pensei: ‘eu não tenho como comprar o importado’.”

Na época, segundo ele, o custo do tratamento sairia quase R$ 24 mil por ano. Somado ao do pai, seriam cerca de R$ 40 mil. “Não tinha como, aí a gente começou a plantar”, revela.

Em pouco tempo, alguns pacientes da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) de Santa Catarina, que precisavam de óleo, começaram a procurar a família. “Eram casos extremos, que realmente precisavam de alguém para dar a mão. Um menino tinha cerca de 30 convulsões diárias”, conta. 

Segundo ele, o objetivo sempre foi buscar a legalização. “Não tínhamos o interesse em ter lucro, na maioria das vezes a gente dava o óleo só para a pessoa ver o resultado, ou para a gente organizar a documentação para ajudar a entrar com um pedido de habeas corpus, ou para solicitar a importação de um medicamento.” 

Hélio Júnior.
Hélio Júnior permaneceu 38 dias preso depois de sofrer abordagem da PM em Santa Catarina, desde então ele parou de cultivar maconha. | Foto: Arquivo Pessoal.

Buscando informações jurídicas sobre o cultivo doméstico, pai e filho se depararam com o inciso LXVIII do Artigo 5º da Constituição Federal, que afirma que “conceder-se-á ‘habeas-corpus’ sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”. 

Especializado na obtenção de habeas corpus preventivos para pacientes de maconha medicinal e na defesa criminal de cultivadores, o advogado criminalista e ativista Erik Torquato, que também é membro da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas (Rede Reforma), um coletivo de cerca de 26 juristas dispostas(os) a construir uma nova realidade a partir da política de drogas, explica que os HCs servem para proteger o direito à liberdade de toda e qualquer pessoa contra uma prisão arbitrária. 

“Em matéria de cultivo caseiro de cannabis para tratamento de saúde, ele se justifica pelo fato de a prática ser considerada criminosa pelo Estado. Assim, todo e qualquer cidadão que estiver plantando por necessidade médica tem o direito de se proteger de uma eventual prisão”, diz. Esse direito está baseado na Constituição Federal. “Prender quem planta o próprio remédio é ilegal pois a saúde é um direito constitucional. Ou seja, tudo está dentro da Constituição.”

Flor de maconha
O auto cultivo da maconha não é permitido no Brasil, para poder plantar é necessário ter uma autorização da justiça | Foto: Abrace.

Diante da lacuna legal deixada na Lei de Drogas, Hélio afirma que é preciso desobedecer a lei para poder solicitar uma autorização judicial. “É uma desobediência civil, você tem que usar a maconha para comprovar que ela faz bem, para depois ter o direito de plantar. É um paradoxo. Você não está machucando ninguém, está infringindo a lei para a sua saúde. Pode fazer isso, desde que consiga comprovar que está te fazendo bem”, questiona. 

O pedido de habeas corpus preventivo e individual para Hélio seria apresentado na semana seguinte à prisão dos dois. Por conta do ocorrido, a ação foi aberta somente em julho deste ano. Hoje, além do HC para si próprio, ele quer cultivar de forma associativa. “Quando tivermos o nosso HC, vamos entrar com uma Ação Civil para poder atender terceiros.” Atualmente somente 10 associações possuem o direito de plantar coletivamente, conforme informações concedidas pela advogada criminalista da Rede Reforma Cecília Galicio.

Artigo de luxo: o boom dos HCs  

O primeiro HC concedido no país para cultivo de maconha foi destinado a Margarete Santos de Brito, em 2016. Fundadora e diretora da Associação de Apoio à Pesquisa e a Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi), Margarete buscou o respaldo legal para poder tratar problemas de saúde de sua filha, portadora do transtorno por deficiência CDKL5, que provoca danos intelectuais, compromete a fala e causa crises epilépticas. De lá para cá, houve um verdadeiro “boom” nos pedidos e concessões dos habeas corpus

Informações fornecidas por Emílio Figueiredo, também advogado da Reforma, mostram que houve uma multiplicação na concessão de HCs entre 2016 e 2022 no Brasil, saltando de 3 em 2016 para 2.500 no ano passado. Ainda que expresse o crescimento real nas autorizações judiciais, o número é subdimensionado, uma vez que a estimativa é feita apenas com base nas autorizações obtidas pela Reforma.

Com o crescimento dos pedidos feitos pela sociedade civil, a Justiça brasileira vem se demonstrando cada vez mais sensível ao tema e consequentemente a quantidade de pessoas autorizadas a cultivar cresce ano a ano. Ainda no ano passado, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que o HC preventivo é cabível em casos de cultivo de cannabis sativa com a finalidade de extrair óleo medicinal para uso próprio, sem o risco de repressão por parte da polícia e do Judiciário.

São necessários dois requisitos para obter um HC: a comprovação do tratamento médico e já estar plantando maconha. Para recorrer ao Judiciário, há ainda outra necessidade: é fundamental contar um advogado que conheça da causa ou com as Defensorias Públicas.  

Documentos necessários para obtenção de um HC:

  1. Laudo e prescrição médica, com o  CID (Código Internacional de Doenças), a posologia e o registro no CRM (Código do Conselho Regional de Medicina) do médico ou médica.
  2. Um laudo com todo o histórico clínico do paciente e os medicamentos já utilizados e seus efeitos colaterais.
  3. Histórico da relação do paciente com a maconha, as melhoras a partir do uso, declaração de que não há outros medicamentos acessíveis e da falta de recursos para importar. Neste documento, também é necessário o CID e o CRM.
  4. Comprovantes da experiência com o plantio da maconha, adquirida em cursos de extração de óleo e de cultivo, também são levados em conta pelo poder judiciário. 

Esses pré-requisitos para solicitar um HC preventivo para cultivo se formaram em 2017, a partir da jurisprudência adotada em diversos tribunais do país. No entanto, não há nenhuma norma ou lei que obrigue um cidadão a apresentar tais documentos à Justiça.

Cecilia Galício, uma das precursoras dessa tese no sistema judiciário, vê o crescimento com preocupação. Ela acredita que o habeas corpus preventivo individual para cultivo não deveria sequer existir, uma vez que a autorização do uso terapêutico está prevista na lei de drogas. “O habeas corpus é para tutelar o direito à liberdade. Ele nada mais é do que o reconhecimento de que o Estado de maneira arbitrária, violenta e não legítima, incrimina pessoas que cultivam maconha para uso pessoal e terapêutico como traficantes, a maioria delas da camada mais vulnerabilizada da população.”

Além de lenta e trabalhosa, a judicialização dos pedidos de plantio doméstico de maconha pode ser pouco acessada pelas camadas mais pobres da sociedade, uma vez que o ingresso com um processo deste através de um advogado particular pode custar cerca de R$ 14 mil, de acordo com informações da tabela da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo. Os valores variam de estado para estado. Nesse sentido, optar pelo apoio jurídico das associações e movimentos sociais que trabalham com advogados pro bono é outra opção a quem não pode pagar pelos serviços privados. 

Números recebidos via Lei de Acesso à Informação (LAI) indicam que a Defensoria Pública da União (DPU) também atua cada vez mais nestes casos, ainda que pouco quando comparado aos advogados do setor privado e do terceiro setor.

A reportagem também teve acesso via LAI aos dados que expressam o crescimento em estados como São Paulo, a partir da distribuição de HCs entre 2018 e 2022 no Tribunal Regional Federal da 3ª Região, na classe “despenalização/descriminalização”, a principal utilizada para categorizar esse tipo de processo. Ressalta-se que em muitos casos processos de habeas corpus não são julgados necessariamente no ano em que chegam ao tribunal. Os demais TRFs responderam não possuírem os dados solicitados.

Já no STJ também houve aumento de solicitações de cultivo doméstico de maconha. 

Associações: proteção e acesso à informação

Agora criminalizado, o processo para a obtenção do HC se tornará mais difícil para Hélio. “Eu tinha todos os documentos, já tinha laudo de agronomia e tudo”, lamenta. Por outro lado, a associação já possui CNPJ, estatuto, ata, registro no cartório e até reconhecimento de utilidade pública da Prefeitura de Braço do Norte, obtido em 22 de outubro de 2021. 

A realidade da associação fundada por Hélio não é a de todas no Brasil. Ao todo, estão em funcionamento ao menos 54 associações no país, dessas, 17 não estão totalmente formalizadas com CNPJ. Além disso, 35,2% delas têm ações judiciais em andamento para obter autorização para o cultivo de maconha, outras cinco associações têm ações na justiça para outras finalidades, como para preparo de extrato, de óleo, guarda, manuseio, transporte ou envio, por exemplo. 

Esses dados preliminares são do levantamento realizado no âmbito da pesquisa “Desobediência civil e acesso alternativo à Cannabis para fins medicinais no Brasil: o papel das associações de pacientes”, de Paulo José dos Reis Pereira, professor da Pontifícia Universidade Católica do São Paulo (PUC-SP) e pesquisador de políticas internacionais de drogas. Eles foram obtidos com exclusividade pela reportagem. A publicação da pesquisa completa tem previsão para sair ainda neste ano em revista acadêmica. 

Em 2019, pesquisadoras do Observatório do Uso de Medicamentos e Outras Drogas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) também fizeram um levantamento do perfil das associações brasileiras. Na época, foram encontradas 40 organizações. O estudo foi publicado em relatório da Plataforma Brasileira por uma Nova Política de Drogas.

O pesquisador da PUC-SP mapeou, com o apoio da Federação Canábica (FACT), as características das associações de pacientes de cannabis para fins medicinais no Brasil, de abril a junho deste ano, por meio de um formulário eletrônico. O objetivo foi compreender o caso brasileiro no avanço mundial das regulamentações em torno da cannabis. “Minha hipótese é que as associações cumprem um papel de democratização de acesso à cannabis para fins medicinais no Brasil. E isso acontece por vários mecanismos, que vão da educação das pessoas sobre o tema até o plantio de cannabis, que ainda é proibido no Brasil. Tudo isso quebra com paradigmas e com a lógica proibicionista.” 

Ala da maconha medicinal e das associações na Marcha da Maconha de 2023. | Foto: Beatriz Drague Ramos/Ponte Jornalismo.

A pesquisa mapeou ainda a localização de cada associação. A maioria, 14 delas, se concentra no estado de São Paulo, mas elas estão presentes em muitos estados do Brasil. Para Paulo Pereira, isso sugere uma expansão nacional significativa, ainda que uma concentração em alguns estados específicos. Outro dado é que a maioria das associações se encontra em grandes cidades.

“Desobediência Civil”

Paulo avalia que a ideia de “desobediência civil”, termo utilizado por algumas associações para explicar sua atuação, é importante para compreender esse contexto. Como elas atuam dentro do espaço proibicionista brasileiro, inevitavelmente esbarram em um desacordo com a lei. “ As associações atuam de maneira transparente ao garantirem acesso à cannabis para fins medicinais para os seus associados, mostram o que estão fazendo e porque estão fazendo, e justificam sua ação, que por vezes  é uma desobediência civil à Lei de Drogas, por considerarem seus motivos legítimos, como é o direito à saúde”, complementa.

Elaborada no século XIX por anarquistas liberais, como Henry David Thoreau, a concepção de desobediência civil foi incorporada por um conjunto de figuras políticas importantes ao longo do século XX, como Mahatma Gandhi, Martin Luther King e outras lideranças que tinham a proposta de uma desobediência pacífica a leis e políticas governamentais consideradas injustas, explica Paulo. 

Manifestante exibe óleo feito a base de maconha na Marcha da Maconha de 2023. | Foto: Clara Assunção.

Ainda que exerçam um papel importante no país no momento atual, Paulo não acredita que essas entidades sejam a solução completa para uma regulação da cannabis baseada no amplo acesso e em justiça social. “Elas criam uma fissura na lógica proibicionista, apontando para caminhos alternativos de acesso mais democrático. Mas existem várias camadas de desigualdade que elas não conseguem resolver, relacionadas à classe e à raça. E a população pobre e negra ainda é marginalizada quando está em contato com essa planta, independente do seu fim.”

Ainda que algumas associações trabalhem com doações, os produtos de cannabis de parte delas, sobretudo das maiores, que têm maior capilaridade, ainda não são acessíveis para grande parcela da população, avalia ele. “Tanto porque elas cobram valores inacessíveis para quem está em situação de vulnerabilidade social, como pela dificuldade de acesso a médicos que prescrevam cannabis no país.”

Nem todas as associações cultivam a planta, algumas fazem atividades que vão desde a educação com seus membros, passando por apoio jurídico para demanda de remédios à base de cannabis no SUS [Sistema Único de Saúde] e a facilitação de importação de medicamentos. Há também outras ações, como indicação de médicos para prescrição de cannabis e cursos sobre o plantio da maconha, assim como a extração de óleo, mostra a pesquisa de Paulo.

Idosas na Marcha da Maconha 2023 pedindo a descriminalização da planta
Idosas na Marcha da Maconha de 2023 pedem a descriminalização da planta para o acesso pleno à saúde. | Foto: Clara Assunção.

Diante das lacunas da política de drogas atual, a função do cultivo e extração deve ser abraçada pelas associações, entende Hélio. “As pessoas não têm conhecimento para fazer extração. Então a associação tem que puxar essa responsabilidade.” Para Luan Arthur da Silva, 28 anos, operador de injetora, o custo de um processo de HC é inviável. “Eu preferiria estar plantando, mas sem o HC não tem como”, diz. 

Pai de três filhos, ele foi paciente da associação de Hélio, mas desde que o engenheiro foi denunciado parou de receber os óleos. Diagnosticado com depressão e transtorno afetivo bipolar, ele viu na Apoiar uma possibilidade de acessar os medicamentos naturais a um preço mais em conta. “Foi a única associação que me acolheu. Se não fosse por eles, talvez eu não estaria aqui hoje.”

Quando Hélio foi preso, Luan interrompeu o tratamento à base da planta. Ele ainda tentou adquirir os óleos através de outra associação da região de Florianópolis, mas só encontrou produtos que custavam cerca de  R$ 1 mil. “Depois que ele foi preso, continuei o meu tratamento com os medicamentos tradicionais.”

O trabalho das associações: “não tem modinha, é uma roleta russa”

Além das prisões por cultivo doméstico de maconha, casos de detenção por abordagens policiais são também um risco para quem integra uma associação. Diferente de Hélio, que chegou a ser preso, Luiz*, administrador e ativista da causa há mais de uma década, afirma que foi obrigado a fazer uma transferência bancária de cerca de R$ 7 mil para um policial em 2022, para não ser preso no Complexo Penitenciário de Bangu 1, para onde, segundo ele, foi ameaçado ser levado pelos policiais. 

Luiz, que também é fundador de uma associação e possui plantio não autorizado de maconha em um local sigiloso, foi parado por cerca de três policiais na região sul do Rio de Janeiro, com cerca de 40 vidros de óleos derivados de maconha dentro de seu carro. Mesmo provando com documentação que era presidente de uma associação, cujo nome preferiu preservar na reportagem por medo de represálias, foi obrigado a pagar para o policial para não ser preso. “Fiz um Pix. Eles foram categóricos dizendo que iriam me empurrar pro artigo 33 da Lei de Drogas se eu não pagasse”, disse. 

Naquele dia, Luiz se dirigia ao centro da cidade para entregar os frascos a um voluntário da associação. Os riscos de ele e sua equipe serem enquadrados no artigo 33 da Lei de Drogas, que inclui também a falsificação de medicamentos, por exemplo, fez com que o administrador passasse a tomar diversos cuidados. Retirar dos rótulos a palavra maconha ou cannabis é um deles. “Tem lá extrato vegetal integral, a gente não fala que é cannabis porque tem gente que viaja, vai pra um aeroporto, o cara pode ter um problema grave”, diz.

Ele também preserva o nome do farmacêutico ligado à associação nas documentações da organização. “A gente não deixou ele assinar a produção, por considerar que ia ser só uma exposição.” Já a pessoa que faz a entrega dos óleos é orientada a dizer que não sabe o que ela está entregando, em uma eventual parada da polícia. “São coisas chatas, você contrata entregador e tem que dar o maior papo de malandro, é chato falar isso, mas é necessário.”

Bloco pede o fim das prisões na Marcha da Maconha 2023.
Bloco pede o fim das prisões na Marcha da Maconha 2023 | Foto: Luiz Fernando Petty

As informações sobre o cultivo também não são divulgadas em nenhuma rede social. “Não divulgamos esse cultivo, para evitar roubo e qualquer investida do Estado”, conta Luiz, que cultiva e extrai óleos há mais de dez anos.

Atualmente, sua associação conta com cerca de 500 pacientes. Ele começou os trabalhos entre 2018 e 2019, mas registrou um CNPJ para a organização em 2021. O primeiro paciente veio por extrema necessidade. “Precisei fazer um óleo porque meu padrinho teve um câncer de pulmão fulminante, há 12, 13 anos”.

O estopim para formalizar a associação partiu de uma conversa que Luiz tinha com um colega da área: “Você tem que sair do tráfico”, disse o amigo. “Aí eu entendi o paradigma, essa proatividade em que você se posiciona pode fazer um juiz ter uma leitura diferente, em uma audiência de custódia, por exemplo.” De lá para cá, os trabalhos cresceram e hoje a equipe já conta com cerca de dez funcionários, além de parceria com uma farmacêutica. Apesar da alta demanda, todos são voluntários. 

Luiz avalia que as associações ainda são destinadas a quem realmente precisa. “Ainda é um movimento para pessoas que têm necessidade de um terceiro setor.” Para ele, o ato de criar uma associação “não tem modinha, é uma roleta russa”, por ter o risco de ser preso.

O aumento dessas entidades também está ligado, segundo ele, à qualidade dos produtos, ao baixo custo e ao acolhimento individualizado oferecido às famílias. “O produto que está sendo oferecido pelas associações não é importado, é a cannabis narcótica full spectrum”, explica, se referindo à maconha com teores mais altos de THC. “O que vem de fora, além de caro e burocrático, é ruim.”

Diante disso, o ativista prepara a documentação para ingressar com uma Ação Civil Pública (ACP) na Justiça, para conseguir a permissão para cultivo da associação e produção de óleo para tratamento dos associados. Ele conta que deve ingressar com esse instrumento “por ser mais robusto”, diferentemente do habeas corpus, que na visão dele deveria ser utilizado como mecanismo jurídico apenas para quem já está preso. “O HC é só para evitar o primeiro impacto, eu acho que não é o instrumento correto para o nosso caso, ele está se deturpando muito. A essência do HC, como instrumento jurídico, é para quem já está preso.”

Nesse sentido, a advogada Cecilia Galício acredita que os processos de autorização para cultivo por meio das associações são muito mais interessantes do que os processos individuais. Inclusive, o fenômeno das associações são, para ela, o caminho da legalização da maconha no país. “As associações são uma maneira de subverter essa ordem [da criminalização], privilegiando os processos comunitários. É uma forma de a gente mostrar para o SUS que este pode ser sim um caminho bastante interessante para o acesso.”

Raça, classe, cultivo e encarceramento

Desde 2017, atendendo principalmente famílias da periferia de São Paulo, a Associação Mãesconhas tem na Defensoria Pública seu principal suporte para encaminhar aquelas que precisam realizar o auto cultivo para fins medicinais. A entidade, que começou como um grupo de WhatsApp de mães em busca de informações sobre o óleo de canabidiol para ajudar no tratamento de seus filhos, atende hoje 80 famílias. A maioria delas, de acordo com a diretora da associação, Christiane Di Rísio, 46 anos, já contam com o HC que as protege da criminalização. 

Christiane viu a vida de seus filhos, e a sua própria, mudar após a utilização do óleo. Há 14 anos, ela foi vítima de violência obstétrica, que provocou uma lesão cerebral em Luiza e Felipe, diagnosticados com autismo. A mãe recorreu à Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae), mas foi a partir de 2017, quando passou a fazer uso do óleo, que notou maior desenvolvimento da coordenação motora, desenvolvimento neural e no comportamento das crianças. 

 Christiane Di Rísio, acompanhada da filha na Marcha da Maconha 2023.
Christiane Di Rísio, acompanhada da filha na Marcha da Maconha 2023. | Foto: Clara Assunção.

“A nossa qualidade de vida, sem dúvida, melhorou muito. Nem sei como seria sem o óleo”, conta, acompanhada da filha, em meio ao bloco terapêutico que se destacava entre os milhares de manifestantes que marcharam, em junho, na Marcha da Maconha, na Avenida Paulista, em São Paulo. “Na verdade, a gente já é criminalizada antes mesmo de procurar os nossos direitos. Então, uma mãe que precisa plantar, ela, mesmo com HC, sofre muito preconceito e pode ser criminalizada”, diz. 

O número de prisões por cultivo mostram que de fato a falta de regulamentação para plantar maconha também pressiona a Justiça Criminal do país. Como Hélio – (do início da reportagem) –, somente em Santa Catarina, 48 pessoas foram presas em flagrante por cultivo doméstico de maconha entre 2019 e 2022, de acordo com a Polícia Civil catarinense. 

A reportagem pediu via LAI acesso aos dados desde 2018 de todos os estados, mas obteve somente a partir do ano seguinte, quando o sistema de boletins de ocorrência (BO) passou a ser integrado e a registrar “posse ou porte de drogas para uso pessoal com o objeto apreendido pé de maconha” e de apenas 14 estados da federação. A partir disso, foram contabilizados 470 casos de prisões classificadas dessa forma em 2022.

Homem na Marcha da Maconha 2023
A Marcha da Maconha de 2023 teve a reparação à população alvo da guerra as drogas como lema. | Foto: Luiz Fernando Petty

O advogado da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, Rodrigo Mesquita, vice-presidente da Comissão Especial de Direito da Cannabis da OAB Nacional, diz ser razoável pensar que a dificuldade de acesso a cannabis medicinal e essas prisões por cultivo reflitam questões estruturais do país, como o racismo, que leva à prisão uma maioria de pessoas negras, pobres e periféricas, principalmente por tráfico de drogas, o delito que hoje mais encarcera no Brasil. “Com menor possibilidade de ter um serviço jurídico especializado que pode ser oferecido pela Defensoria, deficitária no seu atendimento, elas correm mais risco de serem presas”, observa. 

Regulamentação: empurra-empurra e “esperanças adiadas”

Há cerca de 30 projetos de lei sobre o tema do acesso à cannabis medicinal protocolados nas duas Casas do Congresso Nacional. A principal referência para o debate legislativo, contudo, é o PL 399/2015, já aprovado pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados. De autoria do deputado federal Fábio Mitidieri (PSD-SE), hoje governador de Sergipe, a medida foi proposta, inicialmente, para alterar o artigo 28 da Lei de Drogas e descriminalizar o cultivo de cannabis sativa para uso pessoal terapêutico.

Em 2019, a proposição ampliou seu escopo e passou a tratar do cultivo para fins medicinais, com a inclusão de um regime regulatório específico para as associações, e a possibilidade de plantação para outros usos, do veterinário ao industrial, como o cânhamo.

Uma “síntese”, nas palavras de Rodrigo Mesquita, “de uma correlação de forças”. O advogado acompanhou todo o processo de participação social pela Iniciativa Negra. E pondera que o texto, embora reflita principalmente os interesses comerciais do mercado e não represente “o ideal do campo antiproibicionista e das associações”, também contempla, de certa forma, as entidades sociais ao regulamentar o cultivo e incorporar as associações e seus regimes estatutários. “O projeto de lei traz a possibilidade de distribuição dos produtos de cannabis pelo SUS, por meio das Farmácias Vivas. Não é o ideal do que advogamos, mas incorpora substancialmente as reivindicações desse campo”, justifica.

Advogado Rodrigo Mesquita no STF.
Para Mesquita, a dificuldade de acesso a cannabis medicinal e o encarceramento em massa são reflexos do racismo. | Foto: Carlos Moura/STF.

O parecer aprovado, no entanto, não trata do auto cultivo doméstico, diz o jurista. “Essa é uma medida muito cara ao campo antiproibicionista, mas que era uma preocupação do campo conservador. E isso acabou não tendo sido contemplado no projeto de lei, justamente na tentativa de viabilizar o que a comissão e os deputados entendiam como prioritários”, comenta Mesquita.

O PL 399 aguarda agora recurso para ser analisado pelo Plenário da Câmara dos Deputados, sob baixas expectativas de que seja incorporado pela agenda legislativa. Por outro lado, o Judiciário e o Executivo têm caminhado de maneira mais constante sobre o tema.

À Ponte, Marta Machado Secretária Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos (Senad), pasta ligada ao Ministério da Justiça, afirmou que a regulação da importação e cultivo de variedades de cannabis com “baixa concentração de THC”, para fins industriais, farmacêuticos e medicinais é considerada “adequada” pela pasta. 

Marta Machado, secretária da Senad.
A secretária da Senad, Marta Machado, considera adequada a regulação da importação e cultivo de variedades de cannabis com baixa concentração de THC, para fins industriais, farmacêuticos e medicinais. Foto: Reprodução Twitter/ Marta Machado.

O objetivo com uma medida como essa deve ser, segundo ela, sanar as obscuridades do atual marco regulatório e corrigir as “distorções” por ele geradas, sobretudo a grande dificuldade de “controle pelas agências da segurança pública e demais órgãos de fiscalização das plantações atualmente existentes no território nacional, autorizadas por decisões judiciais.” 

O debate acerca desse tema deve se dar no Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad), colegiado sob coordenação da Senad que engloba diversas entidades representativas como a Anvisa, Polícia Federal e outros ministérios, segundo a pasta.

Quanto à atuação das associações de pacientes de cannabis medicinal no Brasil, o órgão pontuou que elas “têm um papel importante no esclarecimento da temática junto à sociedade e na disseminação do conhecimento sobre o uso medicinal da planta para alcançar pessoas que podem se beneficiar do tratamento para suas condições médicas”. 

Já no Supremo Tribunal Federal (STF), o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 635.659, voltou à pauta em maio. Apresentado pela Defensoria Pública de São Paulo, ele trata da possível descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal. Para o órgão, a lei antidrogas, que prevê penas para quem porta substâncias para consumo pessoal, é inconstitucional, já que, além de ferir o direito à autodeterminação, seria um crime cuja única vítima é a própria pessoa que o comete. 

Plenário do STF em 2023.
Desde 2015 o STF não retomou o julgamento da RE 635.659, que põe em pauta a descriminalização do porte de drogas.| Foto: José Cruz/Agência Brasil.

O tema foi à plenário ainda em 2015, mas ficou paralisado por oito anos, e voltou à pauta há dois meses, quando foi novamente adiado para esse segundo semestre. Até o momento, três ministros – Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e Gilmar Mendes – votaram, todos a favor de algum tipo de descriminalização da posse de drogas. Para os advogados consultados pela reportagem, se declarada a inconstitucionalidade, a decisão também deve repercutir sobre o uso medicinal da maconha, e o uso de HC será dispensado. “As pessoas que cultivam para uso medicinal pessoal poderão fazê-lo sem serem acusados de crime certamente”, diz o especialista da Iniciativa Negra.

Há um impasse, no entanto, diante da possibilidade de que os ministros peçam vistas no processo. Faltam ainda oito votos na Corte e, em caso de dois pedidos de adiamento da análise, o julgamento pode ser prorrogado por mais seis meses, ficando para o ano que vem. A falta de celeridade agrava os processos mencionados ao longo da reportagem: do custo da judicialização e da criminalização, à falta de acesso universal à saúde e tratamento.

“Cada vez que adia angustia ainda mais, são esperanças adiadas”, desabafa Maria Angela Aboin Gomes, 43 anos, da coordenação da Fact e mãe de uma adolescente diagnosticada com o transtorno do espectro autista. Ela, que cultiva há sete anos e já foi criminalizada por isso, avalia como perversa a ausência de medidas efetivas do Estado na temática e suas consequências. “Essa perversidade do outro em querer condenar a gente, ela sim é inaceitável. Estamos agindo por amor, aceitando as pessoas por amor e com amor.”

Maria Angela pede a descriminalização da maconha na Marcha da Maconha 2023.
“São esperanças adiadas”, afirma Maria Angela sobre a morosidade para o STF descriminalizar o porte de “drogas” no Brasil. | Foto: Clara Assunção.

O julgamento do RE 635.659 joga luz às questões de saúde pública ocultadas pela guerra às drogas, entende ela que também faz parte da Associação Mãesconha. “Ele traz essa garantia de um direito. Eu acredito que depois do julgamento deva vir uma avalanche de decisões mais amadurecidas e favoráveis ao movimento associativista e da maconha de uma forma bem ampla.” 

A expectativa é de que a decisão também traga reparação histórica e social para as populações vulneráveis, segundo ela. “É um começo muito simbólico, até mesmo para pressionar os legisladores para fazerem leis mais justas, para compreenderem o quanto a guerra às drogas continua matando pessoas todos os dias. É inaceitável impedir, por exemplo, uma criança de se desenvolver, com uma possibilidade terapêutica real simplesmente por um preconceito.”

Caminhos para reparação

Os tímidos avanços em relação à pauta vêm sendo agora também acompanhados por pedidos de reparação, “compreendida como um aspecto chave para a superação do racismo, da violência e da forma de encarceramento vigente no país”, de acordo com a Iniciativa Negra, responsável por um dos primeiros estudos sobre o tema no país divulgado em junho deste ano. 

Reparação: lema da Marcha da Maconha de 2023
Manifestantes defendem medidas de reparação para a superação do racismo, da violência e da forma de encarceramento vigente no país. | Foto: Luiz Fernando Petty

O processo envolve desde a construção da memória, justiça e verdade, como as mudanças legislativas e institucionais para o fim de conflitos e melhoria nas leis para drogas lícitas. E, principalmente, a averiguação das responsabilidades do Estado, de países estrangeiros e demais agentes no projeto globalizado de guerra às drogas, que sustentou injustiças criminais e racistas. Já há medidas semelhantes na Colômbia, onde desde 2021 foi institucionalizada a fabricação de têxteis, alimentos e bebidas à base de cannabis e a exportação da planta para fins medicinais. 

No país vizinho, pelo menos 15% da força de trabalho nas indústrias deve ser composta por campesinos – população mais atingida no país pela guerra às drogas. Em Nova York, nos Estados Unidos, as comunidades negras e latinas também têm prioridade na expedição de licenças de funcionamento do mercado da maconha para uso adulto. O próprio PL 399, aqui no Brasil, traz em alguma medida a reparação ao permitir a exploração do cânhamo, a fibra produzida pela maconha, pela agricultura familiar. 

“Há um processo reparatório coletivo que é o investimento maior do orçamento público, – a partir do que vai ser gerado pelo mercado de cannabis –, nos territórios que ficaram por anos sendo vitimados pela guerra às drogas”, diz a socióloga e diretora da Iniciativa Negra Por uma Política de Drogas, Nathalia Oliveira.

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Aumentar o investimento em políticas sociais e de garantias de direitos nos territórios que, hoje, recebem mais bala, mais morte, como política pública e garantir anistia para as pessoas que estão presas hoje por crimes como o tráfico de drogas em pequenas quantidades, por exemplo, são algumas das medidas defendidas pela socióloga. “Precisamos de uma força tarefa para que essas pessoas que estão presas por esses motivos possam sair. E que essas pessoas anistiadas possam também participar do mercado de cannabis, que elas não sejam proibidas de trabalhar nesse setor”, conclui.

Esta reportagem foi financiada pela Fundação Gabo e pela Open Society Foundations, como parte do Fundo para Investigações e Novas Narrativas sobre Drogas.

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