Direitos e militância trans em debate

    Evento marca o “Dia do homem trans no Brasil” e coloca demandas dessa população no mapa das políticas públicas

    Por Leo Moreira Sá*, especial para a Ponte

    Evento celebra dia do homem trans no Brasil
    Participantes celebram dia do homem trans no Brasil

    Entre 20 e 23 de fevereiro, foi realizado o 1° ENAHT – Encontro Nacional de Homens Trans, no anfiteatro da Faculdade de História e Geografia da Universidade de São Paulo. Pela primeira vez, um evento reuniu 115 participantes das cinco regiões do país para discutir especificidades dessa população, articular demandas e fomentar políticas públicas. Para marcar o momento histórico de consolidação desse ativismo, o dia 20/2 corresponde agora ao “Dia do Homem Trans no Brasil”. O encontro foi realizado pelo IBRAT – Instituto Brasileiro de Transmasculinidades, que representa e luta pelo emponderamento de todas as pessoas transmasculinas.

    As mesas debateram saúde, sexualidade, educação, inclusão no mercado de trabalho formal, despatologização, Lei de Identidade de Gênero e outras demandas. Tive a honra de participar da abertura na mesa “Homens trans e o transfeminismo: reinvindicando masculinidades em corpos oprimidos pelo machismo”, tema que levantou a urgência do movimento trans* em se unir à bandeira de luta feminista, pois o transfeminismo se posiciona contra o machismo e faz uma crítica radical ao conceito de gênero, que só reconhece como mulheres as pessoas que nasceram com vagina e como homens as pessoas que nasceram com pênis.

    O evento teve como tema “Da invisibilidade à luta”, bastante apropriado, uma vez que os homens trans são a parte da comunidade T que mais sofre com a exclusão social, vitimados por uma cultura machista e misógina, que desligitima qualquer reinvindicação política de pessoas que, ao nascer, foram culturalmente designadas como mulheres. O transfeminismo desafia a cultura cisheteronormativa, que reconhece apenas dois gêneros e não considera outras expressões. O patriarcado ocidental, ao longo da história, cristalizou os conceitos homem e mulher como únicos representantes “naturais” da espécie humana, estabelecendo funções sociais distintas para cada um, consolidando assim as relações de poder que o sustentam. Sendo homens trans pessoas que ao nascerem foram designadas como sendo do sexo feminino mas que se identificam com o universo masculino, não é uma contradição falar em misoginia como base da transfobia contra esse segmento, porque nossos corpos sao campos colonizados pela cultura patriarcal e interditados pelo Estado e pela moral religiosa. Michael G. Flood, o sociólogo australiano pró-feminista, definiu a misoginia como “uma ideologia ou sistema de crença que tem acompanhado o patriarcado ou sociedades dominadas pelo homem por milhares de anos e continua colocando mulheres em posições subordinadas com acesso limitado ao poder e tomada de decisões”. A questão é que nossas narrativas existenciais são tão completamente escamoteadas que quando se fala em transexualidade, a única população considerada é a das mulheres transexuais.

    NBs 1

    Reforçando esse apagamento social, homens trans não gostam de se expor e preferem o anonimato como uma estratégia de sobrevivência na sociedade cisgênera. Assim que começam a se hormonizar, os pelos crescem, a voz engrossa e depois da mastectomia é muito fácil sumir na multidão e viver na zona “confortável” do modelo de homem cisgênero. Tornar-se machista e homolesbotransfóbico, consequência sinistra dessa escolha, passando de vítima a opressor, reproduzindo e compactuando com as relações de poder que antes o excluíam. Por isso o transfeminismo é nossa bandeira de luta prioritária, levando a consciência política aos nossos pares que escolheram a invisibilidade social e perderam seu lugar no mundo como agentes de sua história ao tomar o posto de seu algoz.

    Não é fácil assumir publicamente a transexualidade. Defendemos o direito que todxs têm de viver a vida como quiserem, mas é preciso ter consciência de que o preço pode ser mais alto do que perder um ilusório “privilégio” de status cisgênero. A conquista da nossa cidadania exige a desconstrução desse modelo de homem ideal, tão perseguido por nossos pares políticos para construir um novo ser humano, livre da opressão machista. Ao contrário do que muitas feministas radicais pensam porque preferem ver em nós apenas a imagem do opressor. Por isso, a luta dos homens trans tem que passar necessariamente pela libertação do feminismo.

    O ponto alto do encontro foi a participação dos não-binários: jovens transmasculinos que não se enquadram em nenhum modelo proposto pela nossa cultura e reinvindicam uma fluidez em suas expressões de gênero. Provocaram um tenso debate e enfrentaram uma grande rejeição da ala mais conservadora da militância dos homens trans, mas por fim foram acolhidos e instruídos pelo Ibrat a criarem seu próprio núcleo. São meninxs lindxs, com idade média de 20 anos, que misturam as características físicas e comportamentais dos dois gêneros e preferem ser chamadxs ou no masculino, ou na neutralidade. A principal proposta do grupo foi a “ressignificação do conceito de homem”!!! Essa participação proporcionou o conflito necessário para reflexão e autocrítica de um ativismo que começa a se desenvolver e não pode reproduzir o jogo do inimigo. Precisa se conectar com a contemporaneidade porque a desconstrução dos gêneros já começou!

    ponte ENAHT ok#

     

    * Léo Moreira Sá é ator e militante pelos direitos Trans

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