Pesquisadora, que integra grupo de trabalho do Ministério dos Direitos Humanos para pensar combate ao extremismo, afirma que defender a aniquilação de grupos sociais não é liberdade de expressão
Um adolescente armado que invade uma escola e mata crianças e professores; um parlamentar que faz falas transfóbicas e misóginas da tribuna do Congresso Nacional; milhares de pessoas que não aceitam o resultado das urnas e decidem atacar as sedes dos três poderes da República. Estas cenas recentes são apenas algumas das consequências do discurso extremista que se disseminou no país na última década.
Com a missão de estudar e discutir estratégias para combater o discurso de ódio e desestimular o extremismo no país, o Ministério dos Direitos Humanos criou um grupo de trabalho para formular um relatório com propostas de políticas públicas, que será entregue até o início do segundo semestre deste ano e analisado pelo ministro Silvio Almeida.
O grupo, presidido pela ex-deputada federal Manuela D’Ávila, é formado por membros do Ministério e de outros órgãos federais, além de 24 representantes da sociedade civil. Um dos representantes é a pós-doutoranda em democracia digital Nina Santos, pesquisadora associada da Universidade de Paris. Em entrevista à Ponte, Nina explica faz uma análise dos perigos presentes no Brasil com a ascensão da extrema direita. Para a pesquisadora, a sociedade brasileira está fraturada e é preciso criar mecanismos para interromper o crescimento das ações extremistas.
Ponte — Como está sendo a atuação do grupo de trabalho (GT) sobre extremismo do Ministério dos Direitos Humanos?
Nina Santos — A gente teve duas reuniões. Serão encontros semanais até o meio do ano e a ideia é discutir uma diversidade de temas ligados à questão do extremismo e do discurso de ódio. Questões como intolerância religiosa,desinformação e construir saídas para esses problemas. A primeira etapa é de diagnóstico e a segunda de proposição. A fala inicial do ministro Silvio Almeida deixou muito claro que esse GT não vai tratar da questão da regulação de plataformas digitais, que é um tema que tem sido tratado em outras instâncias, tanto do Executivo quanto do Legislativo e do Judiciário.
Então, me parece que a ideia desse GT seja entender como que o próprio Ministério dos Direitos Humanos pode agir em conjunto com outros ministérios para ter uma política estruturada de combate ao extremismo e ao discurso de ódio e, por outro lado, ser também uma instância de assessoramento do ministério sobre esses temas. Tem sido um espaço muito colaborativo, de construção conjunta. Tem muito espaço para propor coisas e cada pessoa traz um pouco da sua expertise nos temas que pesquisa. Cada pessoa também se voluntaria para falar sobre determinados temas que são mais próximos ao que ela conhece.
Ponte — Nos últimos anos temos visto ações extremas, como assassinatos em escolas e invasão de prédios públicos por conta de questões ideológicas. Como você enxerga esse fenômeno?
Nina Santos — Eu acho que esse tipo de ação acaba sendo fruto de uma realidade social de fratura que a gente tem vivido. Fratura no sentido de que a gente tem diferentes partes da sociedade que enxergam a realidade de maneiras muito diferentes. Enquanto uma parte da sociedade enxerga, por exemplo, um processo eleitoral democrático justo, outra parte da sociedade enxerga nesse processo uma ilegitimidade ou algum tipo de processo espúrio. Isso só para citar um exemplo. A gente também poderia falar sobre a pandemia, a vacina e a “Terra plana”. Essa fratura de visões de mundo é um dos marcos do nosso tempo. Ela é muito fruto do cenário comunicacional que a gente vive. O fato de que, com a internet, com as mídias digitais, a gente tem, por um lado, um processo muito positivo de inclusão de novas vozes que antes eram excluídas do debate, por outro lado temos também um processo de surgimento de uma série de novas fontes de informação que acabam divulgando visões completamente distorcidas da realidade.
O fato de que as pessoas têm uma diversidade de fontes que elas podem escolher para consumir faz com que elas possam se informar quase que exclusivamente por fontes com as quais têm mais afinidade ideológica. Me parece que esses processos de violência contra instituições, contra a democracia e contra pessoas acabam sendo uma forma de reação a essa fratura social. Cada pessoa vê a realidade de uma forma que se torna tão absurda que é preciso reagir de alguma maneira. E a maneira de reagir a isso acaba sendo uma maneira extremamente violenta.
Ponte — Qual o perigo desse extremismo ter chegado à política institucional?
Nina Santos — É parte do processo. Se a gente tem uma sociedade em que esse tipo de visão e de comportamento ganha espaço, é parte do processo democrático que essas vozes passem a ser representadas no Congresso. Só que isso, se por um lado é parte do processo democrático, no sentido de que existem na sociedade e, portanto, podem pleitear uma uma representação dentro das instituições políticas, por outro lado ter isso dentro das instituições políticas é extremamente nocivo para a própria democracia. Há aí um dilema que me parece que é muito importante de ser enfrentado. O fato de existir esse tipo de discurso na sociedade o torna legítimo dentro de instituições políticas.
Esse é um debate que eu acho que a gente precisa enfrentar e que, inclusive, eu acho que o GT do Ministério dos Direitos Humanos tem e deve ter como um dos seus objetivos pensar esses espaços de representação e como que se deve lidar com esses discursos extremos. Porque existe um limite no que pode ser considerado opinião, o que pode ser considerado crítica. Tudo isso me parece que é muito legítimo dentro de um sistema democrático, mas na medida em que determinados posicionamentos começam a ser nocivos e a atacar outros grupos sociais, até, no limite, a defender a aniquilação de determinados grupos sociais, a gente já passa do limite do que pode ser considerado dentro da democracia. Tem um debate aí que é da relação entre liberdade de expressão e discurso de ódio, que eu acho que é também um debate importante de ser feito e que impacta diretamente em qual tipo de tolerância a gente deve ou não ter com esse tipo de discurso dentro de espaços institucionais, como o Congresso, por exemplo.
Ponte — Esses discursos extremistas são cheios de misoginia, transfobia, racismo, ao mesmo tempo que quem profere esses discursos não se enxergam como misóginos ou homofóbicos, por exemplo. Apenas a hipocrisia justifica essas atitudes?
Nina Santos — Essa identificação do racismo, da misoginia, da homofobia. faz sentido dentro de uma visão de mundo que diz que a gente deveria ter diversidade, pluralidade, tolerância. Olhando a partir desse ângulo, a gente consegue identificar comportamentos que não estão de acordo com essa lógica. Mas se a gente admite que existem visões de mundo que não consideram isso como essencial, que pode ser, por exemplo, a visão da extrema direita, se isso não é essencial ou não faz sentido, é pautar a discussão política ou a avaliação de opiniões políticas a partir desses critérios.
Eles [extrema direita] não consideram a diversidade, a pluralidade e a tolerância como elementos e premissas essenciais de uma sociedade democrática. Para eles, simplesmente não faz sentido ou é desimportante pensar na questão do preconceito, as premissas para essa parte da sociedade são outras. É a premissa da meritocracia, ou, se a gente for pensar no extremo, seria o nazismo. A pureza de uma determinada raça superior. São outros princípios que vão nortear a visão de mundo que a partir da qual essas ideologias se constroem. A gente pode dizer que tem um nível de hipocrisia, sim, mas eu acho que é mais profundo do que isso. É a falta de reconhecimento de que esses problemas do racismo, da misoginia, da LGBTfobia são de fato problemas a serem enfrentados. Só faz sentido pensar em racismo e em combate ao racismo para quem considera que isso é um problema.
Ponte — Qual é o maior dano atualmente desses discursos extremistas para a sociedade brasileira?
Nina Santos — Talvez a gente possa pensar em duas consequências. Uma é justamente aquela fratura social que eu falava no começo. A impossibilidade ou incapacidade da gente, enquanto sociedade brasileira, de ter um entendimento mais ou menos comum de qual é a realidade, de quais são os problemas a serem enfrentados. Não necessariamente de soluções, porque a divergência sobre soluções faz parte e sempre vai existir dentro do jogo político, mas essa falta de capacidade de estabelecer o que é o comum entre nós, e esse ponto de partida compartilhado. Isso me parece que é um problema muito grave e que não é simples de ser resolvido.
Outro problema que o extremismo traz, decorrente desse primeiro, é a questão da representação política que esse campo passa a ter dentro dos espaços institucionais, como o Parlamento, como o Executivo. É uma dificuldade de construir caminhos comuns do que é a base da democracia, que é o diálogo, a negociação, a deliberação, a discussão para chegar a algum tipo de, se não um consenso, mas pelo uma tomada de decisão que contemple partes de argumentos de diferentes lados. Isso tudo é parte do sistema democrático. Quando a gente entra num modo de embate, que é o que o extremismo traz, a gente acaba tendo muito mais dificuldade de lidar com esses processos de negociação democráticos. Então as decisões políticas acabam sendo muito piores no sentido da qualidade democrática e isso é muito nocivo para a sociedade.
Ponte — É possível quantificar o tamanho desse extremismo no Brasil?
Nina Santos — É bem difícil quantificar isso, até porque depende um pouco de como a gente vai conceituar a questão do extremismo a partir de onde a gente está no espectro ideológico. Digamos que vai da extrema esquerda até a extrema direita. A partir da onde que a gente considera um extremismo? Isso não é fácil de ser identificado. Eu acho que é um fenômeno importante, tanto que a gente tem visto que tem chegado a ter representações dentro do Parlamento. Portanto, não é um fenômeno pequeno. Por outro lado, a gente tem, evidentemente, graus muito diferentes. Desde pessoas que são extremamente engajadas, que têm uma visão não democrática e extremista da sociedade que estão militando por isso. Estão invadindo instituições, estão agredindo outros grupos sociais.
Existe também uma parte das pessoas que têm essa visão de mundo, mas não estão cotidianamente participando de ações, sejam ações online, sejam ações offline e que expressam esse tipo de posicionamento, assim como você tem qualquer outro posicionamento político. Tem pessoas que são de esquerda, que são militantes, que estão em partidos políticos ou em organizações sociais, ou em outros espaços de militância. e tem pessoas que têm uma visão progressista ou uma visão de esquerda e que aplicam isso no seu cotidiano, mas que não estão cotidianamente engajadas em algum tipo de militância. Acho que existem essas diferenças também e que é bastante difícil de a gente mensurar exatamente, mas é um fenômeno relevante.
Ponte — É possível que seja identificado algo novo nas ações extremistas durante esses encontros do GT?
Nina Santos — O GT é mais um trabalho de entender como que o Ministério dos Direitos Humanos, junto com outros órgãos do governo, pode ter uma política efetiva sobre isso do que de identificar novos fenômenos. Eu acho que é um fórum muito rico, porque tem esse foco de tentar construir soluções e ao mesmo tempo consegue reunir uma série de pessoas, de acadêmicos, pesquisadores, professores, que têm lidado com diferentes aspectos desse problema. Colocar todas essas pessoas para conversar, para dialogar, para discutir e para propor coisas me parece que pode ser um espaço bastante interessante. Mas eu acho que talvez a novidade esteja mais no fato de ter todas essas pessoas juntas conversando do que, enfim, no diagnóstico do problema em si.