Luciana de Oliveira Alves é viúva de Rodinei dos Reis, ambulante morto por GCMs de Itapecerica da Serra (SP); delegado considera prematuro indiciar guardas
Luciana de Oliveira Alves, 27 anos, tem como objetivo honrar a vida de trabalhador levada pelo companheiro, Rodinei Alves dos Reis, morto por GCMs (Guardas Civis Municipais) de Itapecerica da Serra há 5 dias. O ambulante foi confundido com assaltantes que levaram a moto de um dos guardas em um assalto ocorrido no quilômetro 35 da rodovia Ayrton Senna, em Itaquaquecetuba, Grande São Paulo, no dia 12 de outubro, feriado de Nossa Senhora Aparecida. Rodinei estava com os amigos Bruno Nascimento de Souza, que também foi morto, e Kauê Oliveira Francisco, que foi espancado e preso. Kauê foi solto nesta quarta-feira (16/10).
“Eu quero o nome deles limpo, esse é o meu foco. É não aparecer como apareceu ‘Rodinei Alves dos Reis bandido, assaltante’. Quero que apareça ‘Rodinei Alves dos Reis, Kauê, Bruno: inocentes, trabalhadores’. É isso que eu quero”, confessa em entrevista à Ponte.
Imagens de câmeras de segurança do posto mostram a movimentação segundos antes do crime. O grupo vítima do roubo está ao lado de uma bomba de gasolina. O Fiat Siena prata com os três amigos encosta no local para abastecer. Na sequência, dois homens chegam andando para assaltar os guardas e suas namoradas.
Na fuga, os guardas atiram na direção dos assaltantes e no carro onde estavam Bruno, Kauê e Rodinei. Kauê chega a sair com as mãos para o alto e deita no chão. Neste momento, um dos guardas se aproxima e o agride com chutes. Depois, com uma corda, prende as mãos do vendedor.
Rodinei dirigia o veículo, que está registrado no nome de Luciana. Ele e os amigos vinham de Aparecida, cidade do Vale do Paraíba, onde fica o Santuário de Aparecida e que atrai romeiros no dia da santa. O objetivo era levantar uma grana vendendo água e sorvete para os fiéis que todos os anos lotam a basílica. Há vídeos em que os três amigos brincam antes de chegar ao local: Bruno aparece dormindo, Kauê no banco do carona e Rodinei dirigindo. Os GCMs também voltavam de Aparecida, onde tinham participado da cerimônia religiosa.
Luciana conta que esteve junto de Rodinei praticamente a vida toda. O início do namoro se deu há 12 anos, quando ela tinha 15. O casamento ocorreu sete anos atrás. Dali para frente começou a história de amor que teve como fruto uma filha, atualmente com 6 anos. Mais do que a dor da perda do companheiro de vida, a mãe conta que sofreu para contar à filha que nunca mais veria o pai.
“Foi muito difícil contar que o pai dela não ia mais voltar para casa. Ela estava deitada na cama e escutou eu chorando de manhã, quando o policial me falou da morte, mas ela ficou quietinha, não falou nada. Saí para ir ao hospital e ela perguntou o motivo deu estar chorando para minha irmã, que explicou que eu estava triste e o que tinha acontecido”, conta Luciana.
Quando voltou para casa, explicou para a pequena que o pai “foi para o céu, virou um anjo”. O ensinamento vem da igreja evangélica que a família frequenta em Francisco Morato, cidade na Grande São Paulo, onde moram. Na escolinha religiosa, contaram para a menina que há uma festa no céu quando uma pessoa morre, uma espécie de boas-vindas.
“Disse a ela que o papai do céu, por ser muito bom, o levou para junto dele. Em seguida, ela fez um desenho do céu, tipo o paraíso, e uns docinhos, como se tivesse uma festa, e um ‘eu te amo’ para o pai dela”, conta Luciana, emocionada na frente da delegacia de homicídios de Mogi das Cruzes. Essa é a unidade responsável por apurar as mortes de Rodinei, Bruno e Roberta, namorada de um dos GCMs.
No protesto feito por familiares dos três em frente à delegacia mogiana na tarde de quarta-feira (16/10), Luciana cobrou que o delegado Rubens José Ângelo prestasse esclarecimentos sobre as investigações do caso. “Ele não tem que se esconder, ele é uma autoridade, tem que aparecer e explicar o que está acontecendo”, cobrou.
Rubens concedeu coletiva de imprensa na manhã desta quinta-feira (17/10) e explicou a decisão de não indiciar os dois GCMs de Itapecerica da Serra. “Vou aguardar a chegada do laudo de corpo de delito do Kauê, do laudo necroscópico, de todos os laudos. Preciso dessas provas técnicas para poder fazer o indiciamento ou adotar outra medida de Polícia Judiciária”, diz, justificando, na sequência, que optar pelo indiciamento seria prematuro. “É aguardar, não podemos adotar nenhuma medida precipitada, açodada”, definiu.
O delegado explicou que o vídeo da cena do roubo é um dos elementos usados para libertar Kauê, solto na noite de quarta-feira. Além disso, vídeos em que os ambulantes preparam os sorvetes, imagens com os isopores dentro do carro e a retratação de uma testemunha que o havia reconhecido colaboraram para considerá-lo inocente. “A Polícia Judiciária não quer só prender. Também quer fazer justiça”, definiu.
Luciana vê que só o afastamento dos GCMs da rua não é o suficiente para sentir que “justiça está sendo feita” no caso da morte de seu companheiro. “Amanhã a advogada vem em casa, vejo o que ela fala e aguardo os dez dias de prazo que o delegado tem. Quando der e, se ele não se posicionar e não pedir as prisões, vamos para a porta da delegacia protestar”, promete.
Segundo o advogado Ariel de Castro Alves, conselheiro do Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana), o delegado pode responder por prevaricação. “As imagens mostram os GCMs atirando e também torturando um dos rapazes. Deveriam ser indiciados por homicídios e tortura”, define. “Os guardas tinham ciência de que os que estavam no carro não participaram do assalto. Eles viram os verdadeiros assaltantes que os renderam”, pontua.
Para Ariel, ainda há a possibilidade de enquadrar o delegado em abuso de autoridade por mandar prender uma pessoa ilegalmente. “A ação foi toda desastrosa. Se os GCMs não atirassem, a própria namorada de um dos guardas estaria viva. Esse caso mostra a importância do desarmamento de todos, inclusive dos guardas municipais”, analisa.
Rodinei trabalhava desde os 13 anos como “marreteiro”, como são chamados os ambulantes que vendem mercadorias em trens e outros eventos de grande proporção, como jogos, shows e a romaria até Aparecida, como foi neste caso. Estes profissionais não têm registro e são perseguidos por seguranças e policiais pelo trabalho irregular. “Atualmente ele não estava mais nos trens, era nos estádios, mesmo. Sempre foi assim. Desse jeito conquistamos nossa casa, nosso carro e tudo tenho como provar”, diz Luciana.
Agora, a viúva tenta imaginar como será seu futuro e o da filha. “Não sei o que eu faço, para falar a verdade. Ele sempre falava ‘um ajuda o outro, um precisa do outro’, ‘o que falta aqui o outro preenche ali’. Era um pensamento aqui, outro ali… Estávamos começando um comércio, tínhamos alugado um salão, estávamos pintando e não sei se consigo sem ele, que era o cabeça”, diz.
O companheiro havia acabado de se batizar na igreja. A cerimônia ocorreu na quarta-feira (9/10), três dias antes da morte. ” ele se batizou nas águas da igreja, se entregou para Deus. Tenho certeza que o principal é a alma dele, que foi salva e ele está em paz. Eu só quero justiça porque ele está em paz e nós estamos na guerra lutando por ele, pelo nome dele”, afirma Luciana.
A Ponte questionou a Secretaria de Segurança, Trânsito e Transporte de Itapecerica da Serra, liderada pelo secretário Oswaldo Luiz Cardenudo, sobre a conduta dos GCMs Emanuel Formagio e Adriano Borges Rodrigues durante a folga e se os dois seguem em trabalho de patrulhamento nas ruas. No entanto, não há resposta oficial até a publicação desta reportagem.
Ao G1, a prefeitura informou que “lamenta o triste episódio” e que os agentes foram afastados do trabalho. Além disso, foi instaurado um procedimento administrativo para apurar os fatos.
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