O premiado ‘Fabiana’ mostra detalhes da última viagem da caminhoneira antes da aposentadoria, depois de 30 anos de profissão; diretora do filme define a saga como ‘a liberdade em um estado bem puro e avançado’
A vida na estrada pode ser solitária. Mas não para Fabiana Camila Ferreira, 59 anos. A caminhoneira passou 30 anos dirigindo de norte a sul do Brasil e conquistou amigos e amores ao longo dos quilômetros rodados. Sua história foi contada no longa-metragem documental ‘Fabiana‘, um projeto de Brunna Laboissière, 30 anos.
Em um evento de pré-estreia no Itaú Cultural, o longa, que foi selecionado pelo Rumos Itaú Cultural 2015-2016, programa fomento à cultura, foi exibido para o público geral na noite da última terça-feira (26/3). Depois da exibição gratuita, um bate-papo entre o público, o elenco e a diretora finalizou a noite. A estreia mundial de ‘Fabiana’ aconteceu internacionalmente no início de 2018, no Internacional Film Festival Rotterdam, Bright Future Competition. Em 2018, o longa levou o Prêmio Público no Olhar de Cinema, foi eleito melhor filme no Festival Panorama e melhor longa documentário no Festival For Rainbow. Esteve também no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro – Mostra Festival dos Festivais, Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – Mostra Brasil e Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade – Panorama Brasil.
Bruna conheceu Fabiana por acaso. Nascida em Goiânia (GO), a diretora cursou Arquitetura e Urbanismo em São Paulo. Para visitar a família, costumava ir de carona. Acostumada com a vida de caroneira, Laboissière foi surpreendida quando, em uma das viagens, se deparou com uma mulher no volante. Em uma viagem que durou dois dias e meio, de São Paulo para Brasília, Bruna e Fabiana viraram amigas. A resistência que a caminhoneira representava, por ser mulher, transexual e lésbica, encantou a cineasta.
Quando contou a ideia de documentar a última viagem antes da aposentadoria, depois de 30 anos enfrentando o machismo na estrada, Bruna recebeu um sim imediato de Fabiana. “Conhecer a Fabiana gerou uma espécie de liberdade, de sermos sinceros com a gente mesmo. Ela tem isso de não escutar muito o que os outros falam e nós seguimos o que o nosso coração manda. A liberdade em um estado bem puro e avançado”, disse Bruna à Ponte.
Foram mais de 11 mil quilômetros rodados para gravar o documentário e Laboissière, arquiteta por formação, se viu obrigada a desempenhar todas as funções de um filme. Ela assinou direção, roteiro, fotografia, som, assistência de montagem e produção (este último ao lado de Fernando Pereira dos Santos e Silva e Fernanda Lomba) – apenas edição e montagem ficaram a cargo de outra pessoa, Bruna Carvalho Almeida.
Ela define os 28 dias de gravação como intensos e cheios de insônia. “Eu tive que aprender na prática. Bati muito a cabeça, mas foi um processo de reconhecer minha autoestima e entender que eu posso fazer as coisas, que as mulheres podem fazer as coisas mesmo o mundo dizendo que a gente não pode. Se vamos tentando tudo é possível. Segui muito a minha intuição nesse processo e me espelhei em outras pessoas, mas as decisões de roteiro, do que gravar e do que não gravar, foi um processo muito intuitivo”, explica a diretora.
O longa é classificado no chamado cinema direto, quando cinema e realidade se confundem. Grande parte da história está ambientada dentro do caminhão de Fabiana e temos a sensação de que estamos no banco do carona, onde a diretora e sua câmera estavam posicionados.
As cenas são variadas, é possível ver a caminhoneira conversando com amigos caminhoneiros, deixando e pegando produtos ao longo das cidades percorridas, ligações telefônicas para amigos e familiares e uma visita a uma amiga especial. É possível notar que, em nenhum momento, Fabiana se define como transexual na estrada, apenas se reivindica como mulher e lésbica. Tudo de maneira espontânea e humanizada.
Com dificuldade de ser entrevistada, Fabiana fez Laboissière repensar o roteiro durante o processo de filmagem. “De manhã eu fazia muitas perguntas pra ela e ela me respondia de uma maneira escassa. Aí de tarde eu percebi que não ia funcionar dessa forma e de optei por deixar a câmera ligada, para quando viesse uma ideia eu começasse a filmar. Ela me chamava e eu fingia que não escutava, deixava tudo pronto, e respondia. Nisso ela começava a contar uma história e eu estava gravando. Foi tudo nesse fluxo livre de quando a gente tá viajando e pensando. Tinha momentos que eu falava uma coisa que ela não respondia na hora, mas voltava nisso depois. Isso gerou um processo dela contar mais o que ela estava interessada em compartilhar do que nas minhas perguntas de um roteiro pré-definido”, explica a cineasta.
Dessa forma, Bruna conseguiu captar histórias de todos os momentos da vida de Fabiana, que contou da cirurgia de redesignação sexual, do filho Alex Sandro, do primeiro casamento, dos amores de estrada, da relação com os pais (sua mãe a aceitava, já seu pai não) e do relacionamento com Priscila, sua atual companheira.
Em breve entrevista à Ponte, Fabiana contou a sensação de ver sua história na tela de um cinema. “Foi ótimo [ver minha história sendo contada], ainda mais agora vendo o pessoal assistindo. Eu estava decaída na época das gravações, agora estou bem, mas é por causa do sossego, do descanso da aposentadoria. Eu queria que os meus amigos vissem, mas ainda não teve exibição em Goiânia, eles estão loucos para ver”, relata a caminhoneira, que agora pretende montar uma distribuidora de bebidas em Goiás.
O filme é dividido em dois momentos. No primeiro, mostra os 18 dias de viagem de Fabiana e Bruna por Goiás, São Paulo, Rio de Janeiro, Mossoró (RN) e Fortaleza. No segundo, a dupla volta para Goiânia para buscar Priscila, companheira de Fabiana, rumo à Belém, em uma viagem de ida e volta que dura 10 dias.
A cabeleireira Priscila Cardoso, 29 anos, que está na vida de Fabiana há 7 anos, também é transexual e começou a transição aos 18 anos. Ela enxerga o filme como uma fonte de transmissão para o público trans, “uma oportunidade muito boa de mostrar que podemos ter o nosso espaço”. Em entrevista à Ponte, Priscila contou a importância do relacionamento com outra mulher transexual.
“O fato de nós duas sermos transexuais é muito legal. Às vezes eu apresento ela para as pessoas, como companheira, e elas ficam surpresas. Porque ainda tem o fato de além de trans sermos lésbicas. Eu me sinto muito bem com ela, gosto muito da pessoa que ela é, a gente tem uma relação muito boa. Eu fiquei com muitas dúvidas quando a gente se conheceu, me questionando se era certo o que estávamos fazendo, fiquei com receio de terminar com ela para ficar com um homem. Mas conclui que com ela é melhor para mim, ela entende minhas dores, eu me sentia bem com ela”, desabafa Cardoso, que reatou o relacionamento com Fabiana há dois anos.
O filme ainda não tem previsão de estreia em circuito.