Familiares de Thiago Cordeiro, de 19 anos, morto com quatro tiros disparados por um policial de folga, organizaram um protesto hoje (7/1), no bairro do Glicério. Defensoria apontou suspeita de fraude processual no caso
É uma dor constante, dilacerante, a que a enfermeira Deuza Cordeiro de Lima, de 58 anos, sente há dois anos. Em 7 de janeiro de 2023, ela teve o sobrinho Thiago Gomes da Silva Lima Cordeiro, 19, arrancado — termo que ela usa para definir o que houve. O jovem foi morto com quatro tiros por um policial militar de folga. O inquérito não foi concluído e a tia, que criou Thiago como filho, segue em busca de justiça.
Nesta terça-feira (7/1), a tia foi ao local em que Thiago foi morto, a rua do Glicério, no bairro da Liberdade, zona central de São Paulo. A enfermeira colou faixas no local exato onde o sobrinho caiu após ser atingido pelos tiros. Aos gritos, ela implorou para que quem tivesse testemunhado o crime contasse sua versão.
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Em fevereiro do ano passado, a Ponte acompanhou outro protesto de familiares, também no bairro Glicério, marcando o primeiro ano da morte de Thiago. “Espero que a justiça se mobilize, que a população desse local se mobilize, porque o meu [sobrinho] não foi o primeiro a ser assassinado. Quem estava aqui naquele local, no dia 7 de janeiro de 2023, se manifeste”, disse Deuza.
Essa é a única esperança da família, já que até agora ninguém foi responsabilizado pela morte. Em dezembro, o delegado Rodrigo Moreira Silva, da 2ª Delegacia de Polícia de Repressão a Homicídios, ganhou mais 60 dias para investigação. Rodrigo assumiu o caso em maio do ano passado.
A Defensoria Pública do Estado de São Paulo, que assiste à família de Thiago, requisitou que todos os envolvidos no resgate do jovem fossem ouvidos pelo delegado. A demanda se deu pela suspeita de fraude processual já que, para a Defensoria, há indícios de que Thiago já estava morto quando foi levado pelo Corpo de Bombeiros Militar.
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A suspeita tem como base o relatório de atendimento do Corpo de Bombeiros. Nele, consta que não foi possível aferir a frequência cardíaca, respiratória e arterial do jovem. Outro ponto é que o registro de chegada para atendimento coincide com a partida. Para o órgão, isso indica que nenhum procedimento de socorro foi realizado no local. Três bombeiros foram identificados, mas as oitivas (depoimentos) ainda não aconteceram.
Neste prazo também já deveria ter ocorrido a perícia do celular de Thiago. O aparelho tinha sido submetido aos peritos, mas não foi periciado sob alegação de estar bloqueado. O Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) determinou que os pedidos da Defensoria fossem cumpridos pela Policia Civil.
Morto com quatro tiros
A tia conta que, no dia em que foi morto, Thiago saiu de casa dizendo que ia jogar videogame na casa de um amigo. O jovem carinhoso, conforme descreve Deuza, cresceu na Liberdade e tinha se matriculado em um curso universitário um dia antes da morte. “Era para ele estar indo para o quinto semestre”, lamenta a enfermeira.
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Quatro tiros atingiram o corpo do jovem. O soldado da Polícia Militar de São Paulo Helvio de Matos Júnior confessou os disparos em depoimento. Na versão do militar, Thiago quebrou o vidro do carro dirigido pelo PM, tentando roubar um celular que estava em um suporte. Mesmo avisado de que estavam no veículo dois policiais, o jovem teria insistido na tentativa de pegar o aparelho, projetando o corpo para dentro do carro e “dando a entender que estava armado”. Nenhuma arma foi encontrada.
A resposta do PM, em sua versão, foram tiros contra Thiago. Helvio estava acompanhado no carro pela também soldado Denise dos Santos de Souza, sentada no banco do passageiro. Ela negou, nos dois depoimentos que prestou, que tenha atirado contra o jovem. Ambos disseram estar de folga e que passaram pelo local após um almoço. O carro em que estavam é de propriedade de Denise.
Deuza não acredita na versão. Para ela, se Thiago estava mesmo roubando, os quatro tiros foram desproporcionais. “Por que não levaram ele preso então?”, gritava.
Familiares doentes
Um dos cartazes usados no ato desta terça dizia: “Familiares doentes em busca por justiça. O luto é lutar”. A frase sintetiza os dias de Deuza nos últimos dois anos até aqui. Não houve nenhum deles, conta, em que ela não tenha pensado em Thiago. Não houve um deles em que ela não chorou.
A enfermeira sofre por não ter podido socorrer o sobrinho. Ela conta que, nos anos de trabalho, salvou várias vidas e acredita que se estivesse no local poderia ter salvo Thiago — segundo ela, o sobrinho agonizou por 30 minutos. “Ele deu o último suspiro dele em frente a uma multidão”, inconforma-se.
Thiago foi ferido na perna, nas costas, no pescoço e no rosto. Deuza só conseguiu encontrar o sobrinho na unidade de saúde, quando ele já estava sem vida.
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Com carinho e tristeza, a tia fala dos últimos momentos que passou com Thiago. Conta do almoço que fez no dia anterior, da promessa de uma viagem para a praia, da alegria que Thiago transmitia. “Ele foi morto cruelmente pela polícia. Ele não significava perigo nenhum para eles”, diz aos prantos.
O que diz a SSP
A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) solicitando entrevistas com o delegado, o policial investigado e com um porta-voz da instituição. Também foi questionada a demora na conclusão do inquérito.
Em nota, a SSP-SP fiz que a Polícia Civil trabalha para atender as demandas do Ministério Público.
Leia nota na íntegra
O caso citado foi investigado por meio de inquérito policial instaurado na 2ª Delegacia da Divisão de Homicídios do DHPP e relatado em maio de 2024, tendo retornado à unidade para o cumprimento de cotas. A autoridade policial trabalha para atender às solicitações do Ministério Público.
*Matéria atualizada às 13h de 8/1/2025 para incluir a nota da SSP-SP.