Juntos há 14 anos, Cleber Reikdal e Gustavo Cavalcanti, pais da patinadora trans Maria Joaquina, falam sobre a paternidade como escolha
“Se não fossem meus pais e meus irmãos eu acho que não seria uma menina trans.” Com essa frase, Maria Joaquina Cavalcanti Reikdal, 12 anos, definiu a importância da sua família. Filha mais velha de Cleber Reikdal, 39, e Gustavo Cavalcanti, 38, ela sabe como o acolhimento mudou sua vida.
Juntos há 14 anos, em 2007, Gustavo e Kleber realizaram uma das conquistas do movimento LGBT: o casamento homoafetivo. Quase dez anos depois, outro sonho: serem pais. “Estávamos vivendo a nossa vida, mas sempre sentíamos que faltava o ‘algo mais'”, lembra Cleber.
No fim de 2016, entraram, então, na fila da adoção. Inicialmente pensaram em adotar duas crianças. Queriam irmãos. Pouco depois mudaram de ideia e acrescentaram mais uma vaga na família. Foi quando Maria Joaquina e seus irmãos mais novos, Talhia, agora com 10 anos, e Carlos, com 8, apareceram na vida do casal.
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O processo de adoção foi bem rápido, mas, em um primeiro momento, os irmãos pensaram que aqueles dois homens poderiam apenas trabalhar no abrigo que chamavam de casa, mas não de lar. “Ninguém sabia se eles estavam lá pela gente ou pelas outras pessoas”, lembra Maria. “Não queríamos ficar o resto da vida lá”, completa Talhia.
Carlos só chorava nessa época. Maria tinha muita vergonha e mal falava. Talhia vivia brava. Tudo isso mudou quando a adoção foi concretizada e, enfim, os três irmãos ganharam um pai. Ou melhor, dois pais. A família, que mora em Curitiba, construiu um lar. “A gente tinha agora vocês”, diz Carlinhos, como é carinhosamente chamado em casa, olhando para os pais durante a entrevista à Ponte, “e casa, comida, água, para sobreviver”, conclui.
Apesar de rápido, o processo de adoção mostrou ao casal que nem tudo seria fácil. Sofreram homofobia ainda no abrigo. “A gente foi autorizado pela Vara da Infância para conhecer as crianças, mas no abrigo impediram a nossa entrada por sermos um casal homoafetivo”, conta Gustavo.
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Mas o maior desafio ainda estava por vir. “A Maria veio com uma demanda que a gente não entendia muito”, lembra Gustavo. “O coordenador do abrigo já tinha dito que a Maria chegou lá uma menina. Na época, eu não entendi, acabamos raspando o cabelo dela, mas entendemos depois”.
Depois de procurar um psicólogo para ela, os pais entenderam que Maria era uma criança trans. “Não acolhemos a questão da transição de forma tranquila, como as pessoas acham”, confessa Gustavo. “Tentamos privar ela de muita coisa, mas, à medida que as coisas foram acontecendo, entendemos que era mais saudável e mais feliz se a gente acolhesse e entendesse”.
Antes mesmo de conhecer seus novos pais, aos 6 anos, Maria já era Maria. Ela usava o cabelo grande e usava as roupas de Talhia. Era Maria, não importa o que lhe dissessem. “A Maria sempre foi muito insistente no que ela queria. Não aceitava as barreiras, as pessoas dizerem não”, aponta Cleber.
Em 6 meses, Maria pode, finalmente, ser ela mesma com o apoio dos pais e dos amigos da família. “Ela não usa nenhum tipo de medicamento, não usa nenhum tipo de hormônio nem nada”, explica Gustavo. “Agora que está com 12 anos, estamos entrando com bloqueador de puberdade, que é o acompanhamento que o Hospital das Clínicas de São Paulo faz com as crianças trans”.
Gustavo acredita que a transição de gênero, processo de reconhecimento de uma pessoa trans com o gênero de identificação, na infância possibilita uma vida mais saudável. “A sociedade acha que a pessoa trans nasce com 18 anos”, brinca, lembrando que é raro casos de crianças trans no Brasil.
“A Maria, por ter tido acolhimento e ter o bloqueador, não vai desenvolver nenhuma característica secundária do gênero que ela não reconhece e vai ter uma infância muito mais tranquila”, defende.
Pai é quem ensina a superar os desafios
Em 2019, a família travou uma batalha para que Maria pudesse competir em campeonatos da patinação artística, uma das paixões dela. A Ponte contou os desafios que a família enfrentou para que Maria pudesse competir, apesar de todas as transfobias enfrentadas por ela. “Eu gosto de patinar, mas o que eu mais gosto é de competir contra outras pessoas”, conta Maria. “Mas, às vezes, eu não posso competir e fico muito triste. Agora já passou”.
Cleber aponta que os momentos de dificuldade não começaram em 2019 e também não se encerraram ali. “Aquilo foi a gota d’água, mas já vínhamos enfrentando muitas dificuldades das tentativas de impedir a Maria de outras formas, proibindo ela de frequentar os banheiros e fazendo uma série de coisas que acabaram estourando no ano passado, quando eles declaradamente proibiram tudo”, conta.
“Mesmo acontecendo tudo aquilo, esse ano tentaram proibir novamente. Para gente, como pais, é uma luta constante. Eu sempre falo para as crianças, principalmente para a Maria, que essas situações existem e ela vai ter que aprender a enfrentar isso”, argumenta Cleber.
Maria define como “bem difícil” os momentos em que é impedida de competir unicamente por ser uma criança trans. “O primeiro campeonato foi normal, eu queria usar collant, mas o meu pai não deixava. Ele fez uma roupa que não era collant e nem roupa de menino, fez uma roupa esquisita para eu patinar. Não era roupa de menina nem de menino”, lembra.
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O preconceito, aliás, faz parte da vida de todos na família, que levanta a bandeira da criança trans. “Existia a dificuldade porque as pessoas não conheceram a Maria como Maria. Não fizemos questão de continuar amizade com algumas pessoas, porque quando passamos a ter filhos queremos que as pessoas aceitem os seus filhos também”, conta Cleber.
“A narrativa da qual a Maria faz parte, da família da Maria, de ter dois pais, de ter uma adoção homoafetiva, faz com que as pessoas deslegitimem a existência dela”, lamenta Gustavo, que reforça que, por serem pais gays, recebem críticas sobre a identidade de gênero da filha: “Acham que ela é assim por influência nossa”.
Ele destaca que a criança trans simplesmente é e fala sobre a bobagem de quem defende que exista algum tipo de influência externa. “É uma luta dela, é uma luta da nossa família, é uma luta da nossa existência para dizer que a Maria existe”, pontua.
É essa leveza da vida que todos tentam trazer para dentro de casa, principalmente durante a pandemia. “Em casa tudo é diversão”, conta Maria, que também confessa que não gosta de ser a irmã mais velha. “Queria ser a do meio ou a mais nova, porque os meus irmãos ficam pedindo coisas”, brinca.
Para diminuir o impacto da falta de legitimação de famílias LGBTs, acredita Gustavo, o caminho é a representatividade. “Eu sou pai por adoção de três crianças, mas eu sou pai igual ao meu pai, eu sou pai igual a qualquer modelo de paternidade que exista”, aponta.