Entidades que atuam na área afirmam que violência aumentou; GCM usou bombas de gás e balas de borracha para dispersar ‘fluxo’, local de compra e venda de crack
As 1.202 unidades de moradia do Complexo Júlio Prestes, parte do projeto de revitalização da região da Luz, no centro de São Paulo, começarão a ser entregues em breve. O coletivo Craco Resiste, o padre Júlio Lancelotti, da Pastoral do Povo de Rua e um profissional do Caps (Centro de Atenção Psicossocial da prefeitura), identificado apenas como Glauber, afirmam que a violência durante o serviço de limpeza da prefeitura, que ocorre duas vezes por dia, tem se intensificado à medida que se consolida o projeto habitacional, fruto de uma parceria público-privada, da qual participaram as esferas municipal, estadual e federal.
“A ordem é não ficar ninguém lá, por causa da inauguração dos predinhos”, reiterou Lancellotti. Foi exatamente o que aconteceu na ação de limpeza desta quinta-feira (1/3), quando a GCM (Guarda Civil Metropolitana) foi retirar os dependentes químicos que ocupam a praça do Cachimbo e o entorno do Complexo Júlio Prestes. De acordo com alguns usuários, os guardas queriam que o ‘fluxo’ se deslocasse para a Rua Prates, considerada uma emboscada e um espaço muito vulnerável para os usuários, pelo Padre Júlio Lancellotti, da pastoral do povo de rua de São Paulo: “se eles forem atacados lá, eles serão massacrados”.
Com a negativa dos usuários, a GCM e Guarda Ambiental, que apoiava a ação, passou a reprimir o ‘fluxo’. O funcionário do Caps, Glauber, conta que chegou a ver pelo menos sete guardas discutindo com cinco usuários, quando o tumulto começou. “Foi coisa de cinco minutos que a gente saiu, escutamos bombas e dois ou três tiros [de bala de borracha] e os usuários começaram a correr. Teve gente que se feriu. Foram chegando vários GCMs e os usuários se dispersando por ali e as bombas continuando por um momento. Sitiaram o redor do fluxo: só tinham GCMs e as ruas estavam bloqueadas”, relata.
Em menos de uma semana, é a segunda vez que um episódio desse tipo acontece. Na sexta-feira passada (23/2), uma ação semelhante aconteceu e deixou feridos. Uma mulher chegou a ter que ser socorrida na tenda desativada do antigo programa de redução de danos “De Braços Abertos”.
“Nós soubemos que por conta da inauguração dos novos prédios da região os moradores e frequentadores do chamado fluxo terão que sair para deixar ‘o ar mais limpo’, como diria nosso prefeito Dória”, completou o integrante do coletivo Craco Resiste, Marquinho Maia.
Maia afirma ainda que por conta disso algumas ações têm acontecido durante a noite e de madrugada: “eles atacam pessoas com pedaços de madeira, bomba de gás e todo tipo de violência física e psicológica para fazer com que saiam dali”.
Durante o tumulto desta quinta-feira, um usuário apanhou de GCMs e Guardas ambientais. Testemunhas afirmam que, além dele, uma outra mulher teria sido agredida e que ambos teriam sido detidos. Em nota a Polícia Militar de São Paulo afirmou que ninguém foi detido. Já a assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Segurança Urbana (SMSU) afirma que “a GCM apreendeu 74 pedras de crack e conduziu uma mulher ao Denarc, por tráfico de entorpecentes. Outro grave abuso relatado foi um tiro de borracha, de perto, que atingiu a orelha de um deficiente. A SMSU diz que não houveram feridos.
O ‘rapa’ de novo
Raphael Escobar, integrante da Craco Resiste, presente durante a ação desta quinta-feira conta que o caminhão de limpeza tem adotado uma prática de pegar cobertor, colchão e outros pertences de pessoas que, em decorrência do uso da droga, vivem em situação de rua. A prática, conhecida popularmente como “rapa”, viola uma portaria intersecretarial oficializada pela própria gestão Doria a partir de um decreto que havia sido criado pelo antecessor dele, Fernando Haddad. “O que aumentou foi a violência na hora da limpeza. É paulada, bomba, cacetete”, reiterou.
Para Glauber, que é funcionário do Caps, a forma violenta de atuar na região começou após a Virada Cultural do ano passado, quando a gestão tucana fez a primeira grande operação na região e o prefeito João Doria, na época, chegou a anunciar o “fim da cracolândia”. “Começou naquela ocasião, mas esse ano está quase diário. Os intervalos diminuíram para um, dois dias no máximo entre as ações. É treta quase todo dia”, apontou Glauber, profissional do Caps da região.
“Ontem eu tive uma reunião com o comando da GCM, mas a prática não muda e parece que tem um objetivo claro de dispersar as pessoas da região. Essa prática de voltar àquela linha de saturação. Eles não tem para onde mandar, não conseguem que as pessoas saiam, então eles ficam ameaçando, fazendo tudo que podem pra atormentar a pessoa até que ela não aguenta mais e começa a reagir”, completou padre Julio Lancellotti.
Outro lado
Questionada pela Ponte, a assessoria de imprensa da SSP-SP divulgou a seguinte nota: “A Polícia Militar esclarece que não participou de nenhuma ação, nesta quinta-feira (1º). A Polícia Civil informa que não houve usuários de drogas detidos no 1º Distrito Policial, responsável pelas áreas mencionadas”.
Já a assessoria da Secretaria Municipal de Segurança Urbana informou, em nota, que “a Guarda Civil Metropolitana, durante os serviços diários de zeladoria e limpeza do local, nesta manhã (01), foi atacada com pedras e rojões. O fato aconteceu quando os guardas tentaram remover as barracas montadas no local, para impedir a ação do tráfico, que usa a estrutura para disfarçar a venda de drogas. A GCM apreendeu 74 pedras de crack e conduziu uma mulher ao Denarc, por tráfico de entorpecentes. Não houve registro de feridos”.