Doria promete usar farinha de sobras para combater a fome. Só não sabe de quem

    Prefeito e arcebispo de SP se unem para defender farinha feita de sobras de alimentos,  mas não conseguem explicar quem receberá o alimento; “talvez nem seja usada em SP”, disse fabricante

    Consagração: à imagem de Cristo, Doria divide o pão feito de Farinata com convidados | Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte

    A prefeitura de São Paulo se uniu à alta cúpula da Arquidiocese paulistana para apresentar mais  uma vez a Farinata, um produto patenteado pela empresa Plataforma Sinergia, uma espécie de farinha feita a partir de alimentos que seriam jogados fora ou que estejam perto da data de vencimento. A iniciativa ganhou força no último dia 9 de outubro, quando o prefeito João Doria sancionou a lei que determina diretrizes para o Programa Municipal de Erradicação da Fome e de Promoção da Função Social dos Alimentos, o PMEFSA, destacando o potencial inovador do projeto. O texto é de autoria de diversos vereadores entre eles o ex-secretário do Verde, Gilberto Natalini (PV), e Mario Covas Neto (PSDB), que estavam presentes na coletiva de imprensa realizada na Cúria Metropolitana, nesta quarta-feira. O evento não deixou claro a destinação do produto.

    Houve momentos em que as autoridades presentes falaram em usar a farinha de sobras para complementar a alimentação de crianças em idade escolar. Em outros, disseram que o alimento seria voltado à população em situação de rua. E a fabricante ainda levantou a hipótese de que a farinata pode nem vir a ser usada em São Paulo. Ninguém apresentou dados sobre custos e logística — o prefeito se recusou a responder uma pergunta da Ponte sobre isso.

    No dia da assinatura da lei, a administração municipal foi muito questionada, porque o tipo do produto apresentado, em formato granulado e coloração cinza, foi chamado de ração por quem é contrário ao projeto. “Eu fico ofendido quando chamam de ração. Desprezo ao pobre é negar comida”, diz o arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Scherer, que reiteradas vezes disse que a Igreja Católica apoia a iniciativa e acusou os críticos de politizarem a questão.

    A lei regulamenta, por exemplo, a doação de alimentos, até então com várias barreiras do ponto de vista de quem doa. “A legislação brasileira não favorece a doação de alimentos de restaurantes. Esses estabelecimentos não podem, por exemplo, aproveitar alimentos postos a mesa ou colocados no bufê. Eles são descartados, mesmo estando em perfeita condição de uso. Isso acontece, porque, caso o manuseio não seja feito corretamente, e cause uma infecção intestinal, quem responde nesse caso é quem doou os alimentos. Essa lei nova corrige isso”, disse Dom Odilo Scherer.

    A fundadora da empresa Plataforma Sinergia, Rosana Perroti, evocou a fé, citou trechos bíblicos e atribuiu a um milagre de Nossa Senhora Aparecida a implementação da Farinata no município. “Dom Odilo é o pai desse projeto e a mãe é Nossa Senhora. Eu tinha tanta certeza que Nossa Senhora Aparecida ia realizar o desejo de alimentar os filhos tão amados dando prioridade àqueles que não têm nenhum alimento. Por isso, eu não estou tão surpresa que com a festa de 300 anos de Nossa Senhora Aparecida tudo esteja se materializando”, afirmou, emocionada. “Um dia, Jesus ordenou aos seus discípulos que eles recolhessem todas as sobras. Mas ele fez isso depois que toda a multidão estava saciada”, explicou Rosana, trazendo números de escala global, sem, contudo, citar se há carestia na cidade de São Paulo. “Podem questionar se tem fome em São Paulo. Não estou preocupada com isso”, ao alegar que o importante é a redução do desperdício de alimentos e da emissão dos gases de efeito estufa.

    Santa Ceia à paulista

    Aproveitando a atmosfera sacrossanta, o prefeito João Doria disse aos jornalistas que o pão que foi servido antes do início da coletiva de imprensa e que todos haviam comido tinha sido feito com farinata. “Vocês não comeram ração. Comeram pão”, disse. Em seguida, pediu licença para realizar “um gesto de solidariedade”. Levantou um pratinho descartável com pedaços de pão. “O mesmo pão que vocês comeram, eu vou compartilhar com o cardeal”. Na sequência, partiu o pão, levantou na altura dos olhos e saboreou, passando para D. Odilo, depois para a secretária de Direitos Humanos e Cidadania, Eloisa Arruda, e assim sucessivamente para os outros integrantes da mesa, simulando uma Santa Ceia à paulista.

    Prefeito João Doria nega que empresas terão isenção fiscal | Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte

    A Ponte questionou o prefeito João Doria e a proprietária da empresa responsável pela fabricação do produto sobre os custos para processar o alimento que será doado por supermercados e restaurantes e, por consequência, o aporte do município para isso. Doria não respondeu e passou o microfone para a empresária Rosana Perroti, que também não conseguiu responder. “Eu comentei que o custo de descarte de alimentos é da ordem de 750 bilhões de dólares para a economia global. Nós vamos reduzir os custos deles ao operacionalizar a farinata. A Prefeitura não vai colocar nenhum recurso. A prefeitura vai reduzir custos na saúde e educação. Como se paga essa conta? Cada empresa vai ter que decidir se quer gastar no descarte ou na doação”, disse Rosana. Ela firmou que tem “amizades” com a indústria alimentícia, gerando reação entre os jornalistas, que questionaram onde ficaria o maquinário e mão de obra para fazer a farinata, mas as questões ficaram sem resposta.

    Em entrevista à Ponte, padre Julio Lancellotti salientou o desconhecimento do processo por parte da administração. “Secretário nenhum sabe como e onde será feito esse produto. Faltam dizer com clareza essas questões. Apoio o discurso de não partidarização feito por Dom Odilo, mas destaco que a fome é uma questão politica sim, porque não está na Noruega, Espanha, França. Está na Africa e em países do hemisfério sul, latinos”, provocou Lancellotti. Criticou também a destinação da Farinata para escolas municipais. “Pergunte a uma criança se ela quer farinha ou arroz, legumes, carne? É a segunda opção com certeza. Como disse, a farinata é para quem não tem opção”, concluiu.

    Para o padre, que trabalha há décadas com população em situação de rua,  o projeto não é uma ideia da atual gestão, vem sendo estudado há muitos anos e não é solução para a fome. “Não é o tipo de coisa para São Paulo, que é uma cidade que não tem casos emergenciais de situações famélicas. É um projeto para quem não tem escolha, que está em uma situação emergencial, não tem o que comer, beber”, criticou Lancellotti. Além disso, destacou a falta de informações sobre como o programa vai funcionar na prática “Não se diz como vai incluir a farinha na alimentação, a logística, a operação. Só diz que vai começar em outubro e mais nada. A discussão está basicamente no campo das ideias”, afirmou à Ponte.

    Questionada sobre a utilização da farinata em escolas municipais, a secretária de Direitos Humanos, Eloisa Arruda, disse que ainda não está definido. “É possível, sim, que alimentos que já são fornecidos para creches, como uma bolacha ou um macarrão, possam ser feitos de farinata. Mas vamos ainda produzir um estudo diagnóstico sobre carência nutricional”, explicou. O discurso, no entanto, diverge da criadora do produto. “Muito provavelmente a Farinata não será consumida aqui, porque a lei já é suficiente”, diz Rosana Perroti, da Plataforma Sinergia.

    Secretária Eloisa Arruda comendo o pão de Farinata | Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte

    No artigo 9º da lei sancionada por Doria, está previsto isenção de ISS e IPTU para empresas, estabelecimentos doadores de alimentos para o Programa de Erradicação da Fome. Quando questionado, contudo, Doria negou que irá acontecer. “Não tem isenção nenhuma. Não sei de onde surgiu. A prefeitura não vai conceder nenhuma isenção. Prever é uma coisa, agir é outra. A lei autoriza, mas não há nenhum tipo de custo, nem investimento nem de renúncia fiscal, embora a lei faculte quando for necessário. A lei não obriga, a lei faculta”, afirmou Doria.

     

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