É antinegritude, não racismo, diz antropóloga sobre causa do extermínio da juventude periférica

    Luciane Rocha foi uma das convidadas do debate sobre efeitos psicossociais para vítimas da violência do Estado, organizado pelo Ibccrim, Núcleo de Diversidade e Igualdade Racial da OAB e Defensoria Pública de SP; também participaram a educadora e antropóloga Milena Mateuzi e a advogada e militante Priscila Pamela dos Santos

    Milena Mateuzi, Priscila Pamela dos Santos, Luciane Rocha e Lorraine Carvalho | Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte Jornalismo

    A partir da premissa de que existe uma política de Estado que promove a violência com o objetivo de exterminar a população negra, pobre e periférica, o auditório da Defensoria Pública de São Paulo recebeu convidadas da área jurídica e da antropologia para discutir os efeitos psicossomáticos nas vítimas: os que sobrevivem à violência direta e os que ficam após terem a experiência da morte de alguém da família.

    Os principais temas tratados foram as doenças físicas e psicológicas que atingem os familiares das vítimas da violência policial – em sua maioria, as mães -, as dificuldades e ao mesmo tempo a importância do fortalecimento das redes de apoio, o recorte racial dessas violações e a espera por uma justiça que, muitas vezes, não dá uma resposta que conforta.

    Participaram do debate “Os efeitos psicossociais do extermínio da juventude negra”, nesta terça-feira (21/5), as antropólogas Luciane Rocha e a advogada e militante negra Priscila Pamela dos Santos. A medição foi feita por Lorraine Carvalho, do Ibccrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), uma das entidades que idealizou o encontro, junto à Defensoria e o Núcleo de Igualdade Racial da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). Débora Maria da Silva, fundadora das Mães de Maio, estava entre as convidadas, mas não pode comparecer.

    Luciane Rocha, doutora em Antropologia Social com especialização em Estudos da Diáspora Africana e Estudos de Gênero e da Mulher pela Universidade do Texas em Austin, EUA, usou como exemplo o Rio de Janeiro para discorrer sobre o tema e alertou para o alinhamento da política de extermínio em todas as esferas: governo federal, na figura de Jair Bolsonaro, estadual, com Wilson Witzel, e municipal, com Marcelo Crivela. Ela dedicou a apresentação a Jozelita, uma das mães dos meninos mortos na Chacina de Costa Barros, quando a PM atirou 111 vezes contra um carro.

    “Ela morreu de tristeza. Assim como a Verinha [Vera Lucia Gonzaga, das Mães de Maio]. Se a Débora estivesse aqui, ela dedicaria a fala a Verinha”, disse Luciane. Para ela, a violência sofrida pelos corpos negros acontecem em três esferas: estrutural, gratuita e esperada.

    A antropóloga ressaltou a importância de mudar o conceito de racismo para antinegritude e trabalhou com o público alguns termos como abjeção, que é tratar a população negra como inferior, e fungibilidade, que é um resquício da escravidão do conceito de mercadoria dos corpos negros, que permanece até hoje.

    “A antinegritude contempla os ataques pessoais, culturais, sociais, legais e estruturais que as pessoas negras sofrem diariamente. Racismo é muito geral e maleável. Quando a gente fala em racismo, não é apenas a população negra. A gente está falando de raças. Por isso a gente precisa falar em antinegritude e não em racismo”, pontuou. “O privilégio branco impede que o branco seja baleado da mesma forma que um negro”.

    Por fim, destacou a importância da representatividade e como a raiva pode impulsionar uma luta. “Nós não nos vemos nas instituições, no Congresso, no Judiciário. Nas audiências do caso de Costa Barros, a todo momento tentou-se criminalizar as vítimas com perguntas como ‘você já namorou bandido?’ ou ‘se vocês tinham passado a tarde no parque, por que não lancharam lá? por que sair depois de voltar do parque?'”, relatou Luciane Rocha.

    A educadora e antropóloga Milena Mateuzi, que atua junto à Pastoral Carcerária Nacional e à T.ar Raízes, organização que trabalha junto a coletivos e instituições da zona sul de São Paulo, falou sobre a importância do fortalecimento de redes de apoio e o espaço de autocuidado baseado na sua vivência no Comitê Juventude Viva, que criava espaços de discussão e acolhida em territórios vulneráveis.

    Milena destacou a força do feminino nos movimentos de luta. “Trabalhando na zona sul de São Paulo ficou evidente que eram as mulheres à frente de todos os serviços, eram elas ali pelos seus filhos. E é preciso destacar o efeito sobre os corpos dessas mulheres, mães, em sua maioria”, explica a antropóloga, que, sem expor os nomes dessas mulheres com quem conviveu, partilhou alguns relatos. Todos eles mostravam vidas atravessadas por recorrentes violências, como o caso de uma mulher do Capão Redondo que teve os dois filhos assassinados: um pela polícia, o outro por dívida de droga.

    Ela explicou que toda vez que uma mãe volta a falar da morte de seu filho todos os traumas voltam e é como se ela tivesse experimentando a sensação da perda novamente. “[Essas redes de apoio] São um lugar seguro para que elas possam falar da morte dos seus filhos, porque muitas delas não tem essa militância aceita dentro da casa delas, não conseguem encontrar abertura em seus territórios, com os parentes. Por isso que os encontros, esses espaços de confiança, precisam ser fortalecidos para que essas mulheres, que estão adoecendo, possam falar. Possam fazer o autocuidado”, concluiu.

    Priscila Pamela Cesario dos Santos, advogada criminal, militante negra e feminista com foco em igualdade de gênero e raça, falou sobre a necessidade de representatividade nas instituições. Para isso, usou exemplos reais que aconteceram durante audiências de custódia (dispositivo regulamentado pelo Conselho Nacional de Justiça que exige que a pessoa presa seja apresentada a um juiz em 24 horas, que vai decidir pela prisão ou liberdade provisória) de como um jovem branco com 200 compridos de ecstasy foi libertado e uma mulher negra com 2 gramas de maconha foi para o cárcere. “Precisaria de um juiz que olhe para o menino negro e se reconheça nele, assim como hoje acontece com um juiz branco”, provocou.

    Priscila definiu o sistema prisional como uma política de extermínio da população negra, pobre e periférica. “O encarceramento é uma forma de extermínio. As famílias adoecem. Esse projeto de extermínio que começou lá atrás, com os navios negreiros trazendo nossos irmãos e irmãs, tira a sanidade e o tempo de vida de quem está do lado de dentro, preso, e de quem ficou do lado de fora. E a tendência é que isso continue e até piore”, afirmou Priscila para um público majoritariamente negro.

    A advogada e militante fez duras críticas ao processo de privatização de 4 unidades prisionais de São Paulo. “É um projeto devastador. Projeto não, uma realidade, porque sequer fomos ouvidos. A audiência pública que aconteceu sobre o tema foi apenas para o governo anunciar que iria ser feito e discutir alguns pontos de como fazer. Serão corpos escravizados como mercadoria”, criticou.

    Priscila destacou dois pontos preocupantes: o que exige um mínimo de 90% de ocupação das unidades, ou seja, “desencarceramento zero”, alertou a advogada, e sobre o plano para saúde. “Há falta de médico porque a alegação é que mesmo quando abrem concurso, as vagas não são preenchidas porque tem profissional que reclama do salário, tem gente que não quer trabalhar no presídio. O sistema privado promete pagar salários maiores. A pergunta é: como vão pagar? Na audiência houve esse questionamento e eles disseram que não sabem. O projeto orçamentário não existe e isso é muito preocupante”, denunciou Priscila Pamela dos Santos.

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