A vida da mineira Ivany Reichardt foi atravessada pela violência: primeiro do marido; depois, do irmão. Hoje, a lavradora integra rede que combate a violência contra a mulher
Atenção: a reportagem contém descrição e relato de situações de violência.
A expressão “em briga de marido e mulher não se mete a colher” foi uma constante na vida da lavradora Ivany Schultz Reichardt. Dos seus 52 anos, 32 foram marcados pela violência doméstica: primeiro do marido; depois, do próprio irmão.
Natural de Novo Cruzeiro, cidade a quase 500 km da capital Belo Horizonte, Ivany se casou aos 17 anos, em 1986. “Tive minha primeira filha muito nova, saí da casa dos meus pais e como morava na zona rural não tinha a quem recorrer. Foi a partir daí que começaram os espancamentos. Não tinha motivo. Parece que conheci uma pessoa e me casei com outra”, lamenta.
Mãe de três filhos, a lavradora lembra que mesmo na gravidez sofria agressões, humilhações e ameaças. “Ele me batia, me jogava no mato, me puxava pelos cabelos. Ali era uma terra sem lei, os vizinhos não se metiam e se você tentava chamar a polícia, poucas horas depois ele [marido] era liberado, voltava para casa e fazia pior”, afirma.
Uma das lembranças que ainda leva Ivany às lágrimas é de quando seu terceiro filho havia nascido. “Eu estava com o bebê nos braços com 18 dias, ele [marido] havia chegado à noite bêbado em casa, pegou um pedaço de pau e tentou me bater. Eu tentei desviar, ele atingiu a cabeça do meu filho”, conta. “Eu entrei em desespero querendo levá-lo para o hospital e ele não deixou, me trancou no quarto. Eu tive que sair pela janela, ir para a casa de uma vizinha e esperar por um ônibus até 6h da manhã para Teófilo Otoni para conseguir socorro”, prossegue. A cidade fica a aproximadamente duas horas de viagem de Novo Cruzeiro. “Graças a Deus, meu filho sobreviveu, mas ele me ameaçou que se eu contasse para a polícia, ia me matar. Eu não tinha para onde ir, sem emprego, com as crianças pequenas”.
A família acabou se mudando para Teófilo Otoni pouco tempo depois. “Eu achei que por estar mais perto de uma cidade urbanizada ia ser melhor, mas várias vezes ele me puxava pelos cabelos no meio da rua e ninguém fazia nada”, recorda. Além disso, como o marido gastava o dinheiro com bebidas alcoólicas, Ivany conta que tinha que trabalhar dobrado. “Os serviços que ele tinha que fazer na roça, eu fazia para conseguir dinheiro. Catava café, derrubava madeira para fazer carvão”.
Em 2001, quando os filhos já estavam com 15, 14 e 12 anos, Ivany começou a tentar se separar do marido. “Eles já estavam maiores e conseguiam entender o que eu estava passando. O meu medo era que ele me matasse. E meus filhos, como iam ficar? Muitas vezes eles foram meu escudo quando ele tentava me bater. Era do nada, ele pegava cela de cavalo para bater, jogava comida na minha cara, foi muito difícil”, lembra.
Foram diversas tentativas para expulsá-lo de casa e conseguir se separar. Mas o ex-marido não aceitou. “Ele entrava dentro de casa e destruía as coisas”. Em 2005, o marido de Ivany acabou falecendo. Mesmo assim, ela não ficou livre da violência.
Ela passou a conviver mais com os pais e passou a presenciar o irmão dela agredindo a mãe. Não demorou para ela própria passar a ser vítima. “Ele trabalhava em fazenda, ficava um tempo e depois voltava e, quando voltava, era muito agressivo”, afirma. Ivany sofreu com a violência até 2018, quando conheceu o Projeto Mulher Livre de Violência, coordenado pela policial militar e pesquisadora da Universidade Federal Fluminense cabo Juliana Lemes da Cruz, que atua na comunidade rural do Cedro, no Vale do Mucuri, cujo princípio é empoderar mulheres por meio da autonomia financeira. A Ponte contou sobre o projeto na primeira reportagem da série Um Vírus e Duas Guerras. “Eu conheci história de gente que eu achava que era um exemplo de casal, mas a mulher sofria que nem eu em casa”, revela Ivany.
Nas reuniões, momento em que contava sobre a situação que vivia, passou a ser encorajada a denunciar o caso. “O maior medo que eu tinha era minha família ficar contra mim, porque minha mãe também sofria, mas por ser filho, ela não queria ver ele sendo preso. A Juliana falava que a gente não tinha que ser obrigada a passar por isso”, conta. “Eu me senti muito fortalecida. Eu nunca tinha recebido apoio assim de um policial”, prossegue.
Em uma das discussões com o irmão, a lavradora lembra que ele chegou bêbado em casa e tentou atingi-la. Ela chamou a polícia e ele acabou preso. “Só que na delegacia, na época, eu me senti humilhada porque me trataram com desdém, ficava uma delegada tentando passar o caso para outra e eu ali”, disse. “A minha família também não me apoiou no começo”.
Ela conseguiu a medida protetiva e o irmão chegou a ficar 15 dias preso. Após ser solto, ele viajou para outro estado. Ivany conta que, agora, as coisas estão melhores, os filhos casaram, ela restabeleceu os laços com a família e, o principal, passou a enxergar o que viveu de forma diferente.
“Eu não me calo mais. A sociedade precisa ouvir mais as mulheres, principalmente aqui no campo, porque é muito difícil ter coragem para denunciar”, desabafa. “Eu estou aqui de peito aberto, abrindo meu coração, para outras mulheres criarem coragem também. Eu passei por muito sofrimento e a gente tem que se unir”.
Em 2020, por causa da pandemia, o projeto Mulher Livre de Violência teve os encontros interrompidos, mas Ivany conta que ainda assim mantém contato com as participantes do grupo para que o vínculo de apoio não se quebre. “A gente sempre manda mensagem, perguntando como está”, conta.
Ivany é pensionista e tem conseguido se manter com a ajuda dos filhos, mas nem todas as mulheres do campo têm o mesmo suporte. De acordo com Alaíde Lúcia Bageto Moraes, coordenadora da região sudeste da Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) e da Fetaemg (Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Minas Gerais), “a pandemia mostrou como a mulher das comunidades rurais é invisibilizada”.
Cidades menores, mais violência
Em 2020, em todo o estado de Minas Gerais, foram notificados 149.347 casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, segundo a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública. Ou seja, a cada hora, 17 mulheres foram vítimas de violência. Na comparação com 2019, os dados ficaram praticamente estáveis, indicando uma redução de menos de 1%.
Os dados oficiais não dimensionam os registros por zonas rurais e urbanas, mas, sim, por 19 regiões. A reportagem calculou os casos por município em 2020, destacando as 25 cidades que mais notificaram ocorrências de violência doméstica. Elas representam 44% das denúncias e 29% dos municípios mineiros. A capital Belo Horizonte é a única cidade que dispõe de uma Delegacia de Plantão de Atendimento à Mulher que funciona 24 horas e lidera o ranking em números absolutos com 18 mil casos.
No entanto, há um padrão que mostra relação diretamente proporcional entre cidades menores e mais registros de violência. A menor cidade do ranking, Unaí, por exemplo, é a que tem maior taxa de violência doméstica: foram 1.299 casos por 100 mil habitantes. A título de comparação, a taxa de BH, a maior, é 717 registros.
Para Alaíde Lúcia, a questão do deslocamento para mulheres que moram em comunidades rurais se agravou na pandemia. “Para se locomover no campo, é muito usado o transporte individual. Muitas mulheres acabam recorrendo ao transporte escolar que passa nas casas, mas como as aulas foram suspensas, o transporte também foi e ela acaba ficando sem meios de tentar buscar uma delegacia mais próxima”, explica.
Além disso, o confinamento dificultou ainda mais a busca por ajuda. “Antes, a mulher ainda poderia tentar denunciar quando saía para vender sua produção na cidade. Com o isolamento, ela fica presa com o agressor e tem o trabalho dobrado. É o cuidado das crianças que estão sem ir para escola, é o cultivo da horta. Muitas conseguiram fazer suas vendas por delivery, mas outras não e, sem o auxílio [emergencial], além de não conseguir manter o sustento, ela fica mais dependente do marido”, exemplifica.
Em 2015, a Contag fez uma pesquisa sobre violência doméstica contra mulheres que vivem no meio rural nas cinco regiões do país. De acordo com o levantamento, no qual foram ouvidas 529 mulheres, 55,2% relataram ter sofrido algum tipo violência. Dentre elas, destacam-se a psicológica (73,4%), a física (51,9%), a moral (51,1%), sexual (27,3%) e patrimonial (20,4%). Além disso, em 63,6% dos casos, o agressor era o marido ou companheiro.
“A violência praticada muitas vezes pelo marido é por qualquer motivo: se a comida não está boa, se a roupa não foi lavada, atividades que são delegadas culturalmente às mulheres”, prossegue Alaíde.
O levantamento da época também apontou que apenas 6,3% das mulheres ouvidas procuraram a delegacia e 2,8% ligaram para o 180 para denunciar os casos. A maioria (33,6%) desabafou com amigas ou enfrentou o agressor (25,2%). De acordo com Alaíde, um novo levantamento está em processo de desenvolvimento, dessa vez sobre os casos durante a pandemia, ainda sem data para lançamento.
“Uma pandemia dentro de outra pandemia”
O número de feminicídios no estado também reduziu: foram 123, em 2020, e 143 no ano anterior. Contudo, a promotora Patrícia Habkouk, coordenadora do CAOVD (Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher), lembra que a redução dos números não indica que houve necessariamente uma diminuição da violência. “O que nós temos de dados são relativos, porque mostram as mulheres que registraram esses casos. Minas Gerais é quase um país, são 853 municípios e 297 comarcas [divisão do estado para administração da justiça em primeira instância]. O que temos de notificações ainda é muito limitado”, pontua.
De acordo com Habkouk, um ponto positivo foi a implementação do boletim de ocorrência digital, em julho de 2020, que permite o registro de ocorrências como lesão corporal, ameaça, vias de fato (agressões que não deixam marcas, como empurrão e puxão de cabelo) e comunicação de descumprimento de medida protetiva, mas ainda é pouco. “É um desafio muito grande para garantir acesso para essas mulheres, porque são muitas vulnerabilidades e elas se interseccionam: são mulheres negras, mulheres do campo, mulheres pobres e muitas não sabem quem procurar, o que fazer num caso de violência”, explica a promotora.
“Desde quando a OMS (Organização Mundial da Saúde) definiu a questão da violência doméstica como um problema de saúde pública [em 2013], a gente vê que essa questão permanece. Estamos em uma pandemia dentro de outra pandemia”, complementa. O próprio CAOVD foi criado dentro do Ministério Público em 2019 para prestar apoio aos promotores que atuam com violência doméstica. No ano passado, uma pesquisa realizada pelo órgão identificou que a maioria dos municípios não conta com serviços especializados no tema.
Foram ouvidos 166 entrevistados que atuam em promotorias de 149 comarcas do estado, o que representa aproximadamente 50% das comarcas. Segundo o levantamento, os equipamentos mais presentes são os CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) e CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social), que representaram, respectivamente, 81% e 73% das respostas. No entanto, ambos não são especializados no atendimento de vítimas de violência doméstica.
Com relação ao atendimento de mulheres em zonas rurais, a promotora explica que está estudando uma parceria com entidades que atuam nessas áreas. “Estamos vendo com essas federações que atuam com trabalhadores como ampliar e garantir o acesso da mulher às redes de enfrentamento à violência. A gente precisa ter esse olhar especializado diante das realidades que elas vivem”, garantiu.
Para Alaíde Lúcia, coordenadora da Contag, uma das políticas públicas que poderiam ser ampliadas são as unidades móveis de enfrentamento à violência contra as mulheres do campo, das águas e das florestas, que haviam sido implantadas pelo governo federal em 2011, no âmbito da Secretaria Nacional de Políticas paras as Mulheres, após pressão de movimentos de mulheres do campo, durante a Marcha das Margaridas.
O projeto disponibiliza ônibus que levam profissionais para atendimento psicológico, jurídico e social. Na época, foram entregues 54 unidades móveis para o país. Minas Gerais contava com três ônibus doados pelo Executivo federal. Segundo Alaíde, o estado continua com apenas três veículos. “Minas Gerais é um estado muito grande. A gente até tenta fazer videoconferências, tentar dialogar com essas mulheres de forma online na pandemia, mas nem todas têm acesso à internet”, pondera.
A promotora Patrícia Habkouk reforça que, se não houver atendimento especializado de violência contra a mulher, as vítimas devem procurar os CREAS e CRAS do município, além da Polícia Militar pelo 190, Disque Denúncia pelo 180, delegacias mais próximas ou Promotorias de Justiça e Cidadania e Defensoria Pública. O link para realização de boletim de ocorrência pela internet é https://delegaciavirtual.sids.mg.gov.br/sxgn/
Outro lado
A reportagem procurou o Tribunal de Justiça de Minas Gerais sobre o caso do irmão de Ivany. A assessoria informou que “pedidos de medida protetiva correm em segredo de Justiça” e, por isso, não seria possível “fazer a pesquisa com o nome da parte”.
Também questionamos o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, que é responsável pela Secretaria Nacional de Políticas paras as Mulheres, e a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social de Minas Gerais a respeito da ampliação das unidades móveis e perguntamos quais têm sido as ações para garantir os direitos das mulheres no campo. Até a publicação da reportagem, não havia uma resposta.
Análise de dados: Maria Elisa Muntaner
Gráficos e ilustrações: Antonio Junião
Sofre ou conhece alguém que sofre de violência doméstica? Pelo número 180 é possível registrar a denúncia e receber orientações sobre locais de atendimento mais próximos. A ligação é gratuita e o serviço funciona 24 horas por dia, todos os dias da semana.
Esta reportagem faz parte da série Um vírus e duas guerras, que monitora a violência doméstica e o feminicídio no país durante a pandemia. O trabalho tem como base as estatísticas das Secretarias Estaduais da Segurança Pública e é realizado pela parceria de sete mídias independentes: Amazônia Real; AzMina; #Colabora; Eco Nordeste; Marco Zero Conteúdo; Ponte e Portal Catarinas.
[…] “É difícil a mulher do campo ter coragem de denunciar”, afirma vítima de violência doméstic… […]
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