‘É muito comum a sociedade reviolentar as vítimas de violência sexual’

    Para advogadas especializadas em gênero, conduta de advogado no caso Mariana Ferrer não é isolada. “Sempre há uma narrativa de desconstrução da vítima”, aponta Laina Crisóstomo, da ONG Tamo Juntas

    Marcha pela vida das mulheres, o evento chamado de 8M, acontece todos os anos em vários locais do Brasil; imagem registrada na marcha de 2017, na avenida Paulista | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    A situação vivida pela influencer Mariana Ferrer, 23 anos, durante o julgamento do seu algoz, chocou o país nesta terça-feira (3/11), após vídeo divulgado pelo The Intercept Brasil. Por horas, a jovem foi colocada como responsável pelo estupro que lhe acontecera dois anos antes. Fotos suas, que nada tem a ver com o crime, foram expostas pelo advogado de defesa do acusado. Sua integridade foi questionada diversas vezes. Até seu choro foi criticado pelo sistema de justiça.

    Humilhação e culpablização de Mari Ferrer foram feitas pelo advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho, que defende André de Camargo Aranha das acusações de estupro, durante audiência em 9 de setembro de 2020.

    Após a repercussão do vídeo, a Comissão Permanente de Políticas de Prevenção às Vítimas de Violências, Testemunhas e de Vulneráveis, do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), por meio das conselheiras Maria Cristiana Simões Amorim Ziouva, Ivana Farina Navarrete Pena, e do conselheiro Marcos Vinícius Jardim Rodrigues, abriu uma apuração de conduta contra o juiz que presidia a audiência. O Conselho Nacional do Ministério Público também abriu uma investigação por “aparente omissão funcional” do promotor do caso.

    “As cenas são — sem qualquer superlativo — grotescas e demonstram a falha de nosso sistema de justiça e sua incapacidade estrutural de lidar com o respeito às vítimas, especialmente nos crimes praticados contra mulheres, cuja condição de vulnerabilidade mereceria a maior proteção e respeito por parte de todos os agentes públicos”, aponta o Conselho do Nacional do MP, em nota assinada pelos conselheiros Sandra Krieger, Luiz Fernando Bandeira de Mello, Otavio Luiz Rodrigues Jr. e Luciano Nunes Maia Freire.

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    Apesar de chocante, situações como essas são comuns em casos delicados como os crimes de violência sexual, em que as vítimas são historicamente culpadas pelos crimes e não os acusados. As roupas que estavam usando e os locais onde estavam são comumente questionados pelo sistema de Justiça.

    Laina Crisóstomo, advogada e fundadora da ONG Tamo Juntas, que tem atuação com mulheres em situação de violência, exemplifica: “Essa é a prática do sistema de justiça sempre. A gente faz audiências de violência sexual, de violência doméstica e familiar e feminicídio e sempre há uma narrativa de desconstrução da vítima”.

    “Em júris de feminicídio, por exemplo, a narrativa sempre é que: ela traía ele, ela não valia nada, ela fez um aborto, ela não presta, porque ela nunca denunciou. Quando é em relação à violência sexual é sempre a narrativa de que não há provas suficientes, de que ela fez com consentimento e agora quer mídia”, completa Crisóstomo.

    É a cultura do estupro, ou a normalização social da violência sexual, que explica essa situação, como conta a advogada Luanda Pires à Ponte. Ela, que também é secretária geral da Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil) e coordenadora do Me Too Brasil, afirma que “o termo [cultura do estupro] foi criado pelo movimento feminista norte americano e nasceu para descrever locais em que crimes sexuais e violências de gênero ocorrem constantemente, mas são normalizados pela mídia e sociedade em geral”.

    Laina Crisóstomo aponta que, em muitos casos de estupros, a falta de provas impacta na falta de condenação dos acusados. “Muitas mulheres sofrem a violência sexual e não conseguem denunciar de forma imediata. Quando elas não conseguem fazer isso, elas perdem provas: perdem o sêmen, perde a comprovação da penetração”.

    Nesses casos, explica Crisóstomo, a narrativa da vítima deve ser levada em consideração, além de “laudos psicológicos para fortalecer as mulheres, mostrando que a psicologia pode detectar, não é só o direito que dá conta de violência contra a mulher”. No caso de Mariana Ferrer, porém, haviam provas. “A grande dificuldade dessa condenação se dá em razão do machismo estrutural, que é uma perspectiva que não é de hoje. Além das várias nuances do caso: é um menino rico, é um menino que tem acessos”.

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    Para Luanda Pires, os crimes sexuais ainda são muito estigmatizados, daí vem a dificuldade do sistema de Justiça brasileiro realizar condenações para tais crimes. “Além de ser muito comum que a sociedade, em razão da manutenção de padrões sexistas, reviolente as vítimas de violência sexual, ainda existe aquela falsa ideia de que os agressores desses crimes são homens com cara de mau e visivelmente violentos”.

    Mas não é isso que acontece. No Brasil, foram registrados 66.041 casos de estupro somente em 2018, uma média de 180 por dia. Segundo um estudo do Instituto Patrícia Galvão, de 2019, 75,9% dos agressores são do convívio da vítima: pai, padrasto, namorado, amigo, marido.

    “Na maioria dos casos de crimes sexuais, por acontecerem em ambientes privados, as provas são fundamentalmente testemunhais. Ou seja, é a palavra da vítima contra a do agressor”, explica Luanda, que completa que, entre os fatores que dificultam as denúncias, está o medo “de retaliação por parte dos agressores, que se utilizam do poder econômico, da hierarquia, da influência, do poder e da admiração para ameaçar a vítima e silenciá-la”, além “do receio do julgamento e constrangimento sociais e a falta de confiança nas instituições, fatores que contribuem para que as vítimas sequer procurem o sistema de justiça. Quando muito, elas procuram o sistema de saúde”.

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    Laina Crisóstomo concorda e vai além: “Denunciar um caso de violência sexual é muito difícil”. “Tem a situação da própria violência, onde as mulheres querem tomar banho, se limpar, tirar tudo o que lembre essa situação, que é muito perversa. É uma violência que mexe não só com o controle da autonomia sexual dessa mulher, mas também com o psicológico e com o físico, porque é algo sem permissão”.

    “Existe um processo de revitimização: ela precisa falar na delegacia, na presença do Ministério Público, na frente do juiz. Em alguns casos é preciso falar mais de três vezes. O que temos feito é pensar em redes de apoio, em saúde mental para que essas mulheres consigam seguir a vida e o processo com equilíbrio psicológico”, completa.

    Esse trauma, explica Luanda Pires, impacta na recuperação dessa vítima. “Existem equipamentos públicos especializados, como as delegacias da mulher, criados para atender as vítimas de forma adequada. Mas vivemos em um país de dimensão continental, então não são todos os lugares que possuem esses equipamentos e, infelizmente, muitos dos que existem não possuem profissionais treinados para atender as vítimas de forma adequada”, lamenta.

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    Em relação à forma como Mariana Ferrer foi tratada pelo advogado de defesa do acusado, Luanda Pires declara seu completo repúdio. “A forma como ele age é antiética e completamente incompatível com o Código de Ética e o Estatuto da Advocacia. Ele questiona o comportamento e a vida da Mariana, inclusive apresentando fotos, como tentativa de atacar a honra dela e convencer o juiz que ela estaria ali em busca de dinheiro e projeção social. É absurdo”.

    Além do comportamento do advogado, Luanda destaca que as posturas do promotor Alexandre Piazza, do Ministério Público de Santa Catarina, e do juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, são reprováveis. pois ambos se “mantêm inertes enquanto o advogado violenta e humilha a Mariana. Tanto é que já foram abertos procedimentos para investigar a atitude de todos eles”.

    O fato de a sessão ter sido conduzida exclusivamente por homens, explica Luanda, impactou nas cenas de horror que Mariana Ferrer foi submetida. “Além de não demonstrarem o mínimo de empatia e comprometimento com a profissão, eles não têm nenhuma consciência ou entendimento sobre gênero e violência sexista. Muito pelo contrário, são atores dessa violência, isso foi fator determinante para o desfecho do caso”.

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    “Nós temos no Brasil excelentes profissionais, mulheres feministas advogadas, promotoras e juízas, que trabalham de forma muito responsável no combate à violência contra a mulher. Sem dúvida, se alguma delas estivesse envolvida, aquela audiência não teria ocorrido da forma que ocorreu”, aponta Luanda.

    Por isso, avalia, é preciso uma mudança estrutural na sociedade brasileira. “Ainda somos muito machistas, sexistas e misóginos. Nossos espaços ainda são compostos majoritariamente por homens cis, heterossexuais e brancos. Enquanto não houver modificação neste sentido, letramento dos homens, aumento de acesso por mulheres, crescente na representatividade dentro desses espaços, nós teremos dificuldade na proteção e aplicação das leis direcionadas às nossas meninas e mulheres”.

    Um caminho para proteger vítimas de violência sexual, explica Luanda Pires, é o movimento Me Too Brasil, braço independente inspirado e influenciado pelo movimento fundado por Tarana J. Burke nos Estados Unidos, idealizado no Brasil pela advogada Marina Ganzarolli, na busca pela visibilidade de denúncias de abuso sexual há muito silenciadas.

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    “Dentro desse contexto da violência sexual no Brasil, a plataforma tem o objetivo de amplificar a voz das vítimas, dar visibilidade às centenas de relatos de abuso sexual e dar suporte para que saibam que não estão sozinhas. O intuito é que sejamos um instrumento eficaz para reduzir o silêncio que leva à subnotificação dos crimes de violência sexual em todo o país”.

    “Ao contrário do que que é feito pela justiça criminal, que tem como objetivo a punição do agressor, o Me Too Brasil nasceu como espaço de escuta e acolhimento qualificados, centralizado na vítima, para que ela esteja protegida, se recupere e tenha condições de seguir a vida”, completa.

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