“É um terror imaginar que aquilo que eu vi também está dentro da gente”

    Entrevista foi interrompida por um telefonema do governador do Amazonas, manifestando solidariedade ao juiz Luis Carlos Valois, que, mesmo assim, não poupou críticas ao Estado

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    O juiz Luis Carlos Valois, titular da Vara de Execuções Penais de Manaus. Foto: Reprodução/Facebook

    Contundente e objetivo, mas esquivando-se de falar sobre o tema mais polêmico – a questão das facções que atuam dentro dos presídios -, o juiz Luis Carlos Valois, que negociou o fim da rebelião no presídio Anísio Jobim, em Manaus, atribui a falência do sistema prisional às falhas na Lei de Execução Penal e à política de proibição de drogas, e afirma que não dá cartaz para o crime organizado: “Focar o resultado dessa situação que estamos vivendo em brigas de facção do crime organizado é legitimar essas organizações e não atacar o real problema do encarceramento”, pontua.

    Cuidadoso ao criticar a atuação da polícia no caso, o juiz afirmou não ter entendido a ausência da figura de um delegado, por exemplo, no processo de negociação da rebelião que resultou na morte de mais de 60 presos, no último domingo (1). Apontado como suspeito de envolvimento com o crime organizado, Valois manifestou-se contra isso nas redes sociais e tem recebido críticas e ameaças desde então.

    Titular da Vara de Execuções Penais de Manaus, ele cuida de mais de 14 mil processos de pessoas que cumprem pena em todo o Estado. Isso inclui, além de fazer cumprir a lei, avaliar as condições das penitenciárias. E se o complexo Penitenciário Anísio Jobim tem situação crítica, com três vezes mais presos do que a capacidade, segundo o juiz, a situação no interior do estado é de abandono maior ainda.

    Formado em Direito em 1989 pelo Centro Universitário Metodista Bennett, já na década de 90 começou a se dedicar ao direito processual penal e trabalha há mais de duas décadas com execuções penais. Os dois trabalhos de stricto sensu foram feitos sobre temas correlatos: o mestrado, defendido em 2012, foi sobre o sistema penitenciário e os obstáculos da ressocialização. E o doutorado, concluído no ano passado, foi justamente sobre drogas.

    A Ponte Jornalismo conversou por telefone com Luis Carlos Valois, que volta do recesso de final de ano na próxima segunda-feira (9), e diz não ter medo. Ele tem sido muito procurado nos últimos dias, principalmente atendendo a telefonemas como o do governador do Amazonas, José Melo (PROS), que ligou para dizer que sente muito pelo que está acontecendo e que não compactua com as ameaças e críticas feitas a ele.

    Qual a sua avaliação sobre a situação do Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus, onde o segundo maior massacre da história do sistema penitenciário do Brasil aconteceu?

    Na verdade, na minha avaliação, foi pior do que o Carandiru, porque no Carandiru havia 10 mil presos e morreram 111. Nesse, tinham 1.200 e morreram 60. Os dois cenários são brutais, mas em proporção esse foi pior. E  também o nível de brutalidade, que foi absolutamente chocante.

    Como foi a negociação?

    Quando eu cheguei, a negociação já tinha começado e todas as mortes ja haviam ocorrido. Eu cheguei com duas preocupações: tirar os reféns, que naquele momento eram basicamente funcionários. Os presos reféns não existiam mais, porque os que estavam marcados pra morrer tinham morrido já. Era a última parte da negociação, quando eles estavam entregando os últimos reféns. Eu vi que uma boa parte dos corpos estavam carrados, ou seja, já tinham sido levados pelo carro do IML. Os próprios presos colocaram os restos do lado de fora. Eu vi uma coisa de terror dentro de mim quando olhei para aqueles pedaços de corpos. Isso é horrível.

    [a entrevista é interrompida por uma ligação do governador. Luis Carlos agradece e diz: “eu vou estar sempre à disposição do que for necessário para o serviço público. Agora o que acontece ali no dia a dia é tanto quanto a maldade que vimos lá”]

    O governador José Melo, mais cedo, disse que “lá não tinha santo”. O que o senhor acha?

    Disse isso, é?

    Sim…

    Santo não tem em canto nenhum. Dentro e fora da prisão, mas isso não pode ser justificativa para o que quer que seja.

    O que ele disse ao telefone?

    Ligou para prestar solidariedade. Disse que não compactuava com o que estava sendo feito comigo e que acompanha e confia no meu trabalho.

    Mas por que se chegou a tudo isso: facções, tráfico de drogas, a terceirização. De bate e pronto, qual o problema?

    Não tem como dizer um único motivo. São todos os fatores de caos e abandono do sistema penitenciário de Manaus, e do interior inclusive, onde é até pior. Eu atesto que as prisões do interior são muito piores. Os fatores da capital, ou seja, aqui em Manaus são os mesmos de todas as outras capitais do Brasil. Superlotação, abandono, tráfico de drogas, isso aí que a polícia chama de facção criminosa… Eu não gosto de legitimar quadrilha de presos. Para mim, preso é tudo igual. Quando a gente legitima isso, a gente está dando poder pra preso e não pode dar poder pra preso. Acontece que isso não é daqui. Em São Paulo tem também, no Rio de Janeiro também. E por fim, há um problema no descumprimento da lei de execução penal. O que mais me preocupa hoje, o que me deixou mal foi o nível de violência, o grau de terror. Esse extrapolar é um caldo disso tudo: de ignorância, ódio. Imagina um monte de gente entulhada, amontoada e  com ódio. Não dá pra dizer que tudo o que aconteceu foi uma causa específica. O negócio é que extrapolou um limite. Eu nem consigo fazer agora uma avaliação macro-estrutural. Vou ter que ainda esfriar a cabeça, parar para pensar. Eu sou uma pessoa que fez mestrado na USP sobre o sistema penitenciário. O tema é muito caro a mim.

    Sobre a lei de execuções penais, no site da Umanizzare, empresa gestora da penitenciária, há logo na home a seguinte frase: “temos como premissa a aplicabilidade dos preceitos elencados na Lei de Execução Penal, em consonância com a garantia dos Direitos Humanos, ressaltados nas Regras Mínimas para Tratamento do Preso e recomendados pela Organização das Nações Unidas”. O que acha disso?

    É obrigação do governo cobrar da Umanizzare o cumprimento desse contrato. A Lei de Execução Penal não dá poderes para o juiz para fazer cumprir a lei. O juiz não tem poder coercitivo, por exemplo, para fazer cumprir a lei de execuções penais para obrigar o estado a cumprir de forma correta. Você pensa: a única coisa que eu poderia fazer é soltar todo mundo, mas eu não posso fazer isso, entende? Ia ficar só eu preso no final das contas. Então quer dizer, o juiz de execução penal não tem poder coercitivo para obrigar o Estado a cumprir a lei de execuções, com direitos e deveres de quem está detido, diferenciações de regimes e penas, e a sociedade não está nem aí para o preso. Não é prioridade nunca do Estado a Lei de Execução Penal. Aí o Estado resolve terceirizar uma obrigação sua, pagando valores exorbitantes, resolve terceirizar esse serviço.

    Mas existe alguma irregularidade contratual da Umanizzare?

    Não sei mesmo dizer. Até porque esse descumprimento, se houver e o que houver, cabe a outras esferas, como ao Tribunal de Contas, não à Vara de Execuções Penais. A estrutura corrompida do Estado, essa complexidade de processos parece até proposital. As leis, em termos de coerção da corrupção, em termos de avaliação do que está errado, são muito equivocadas. Para prender um pobre que furtou uma lata de leite é fácil, mas para limitar um desvio de verba, um descumprimento de contrato do estado ou uma licitação, é muito mais complicado.

    Então o senhor é contra a privatização?

    Eu sou contra pelo direito do próprio trabalhador do sistema penitenciário. Por que o governo começar a terceirizar? Porque quer demitir esse cara é mais fácil, mais barato. Há quem possa dizer que o Estado terceiriza para levar alguma grana de licitação, desviar verba. Eu vou pelo trabalhador mesmo, que a terceirização é para baratear. A história é sempre a mesma: sobra para o pobre, para o trabalhador. Aquele cara que queria prestar um concurso, virar servidor, ter garantias, não tem nenhuma. Essa é a verdade.

    O que dizem da Umanizzare?

    Sobre o que dizem aqui em Manaus? A gerente, diretora da empresa, é uma excelente profissional. Eles não são bobos. Quem ganha dinheiro com isso não são os funcionários. Quem ganha dinheiro está lá em cima, não é quem está na linha de frente. Talvez até um testa de ferro. A diretora, pelo pouco que conheço, é competentíssima para o cargo que ocupa, tem currículo. Não lembro o nome dela, mas é uma pessoa capacitada.

    Mas você sabe de algo de errado?

    Não sei. Já me perguntaram isso. Não tenho como falar.

    E as facções, toda essa história de ser revanchismo de PCC e FDN…

    Dizem que a Família do Norte é derivação do Comando Vermelho, mas olha, eu não gosto de falar disso e de entrar nessa história. Eu não gosto de me aprofundar no assunto porque fica parecendo que estou legitimando. Quando a gente fala “ah, é o bandido que vive do crime organizado”. Para a gente ele é bandido, mas matar a massa carcerária, para muita gente, faz do cara um herói. Só que é uma lógica totalmente errada. Na verdade, é uma merda tudo isso, sabe? Ruim demais essa lógica.

    Eu queria voltar ao dia do massacre, após a negociação, o que sentiu quando viu a cena?

    Eu vi aquele monte de braços, pernas, tinham cabeças espalhadas, pedaços carbonizados. Um negócio assim que não tenho nem como definir, não tem palavras. O problema é assim: o recesso vai terminar e eu vou voltar pro meu posto de juiz da Vara de Execuções Penais e vou lidar com esses caras aí que cometeram o massacre. A polícia precisa investigar direito. A gente sabe que a polícia tem dificuldade de investigar, a gente sabe que tem câmera lá dentro e tal, enfim…

    Como assim?

    Olha, eu não quero criticar a polícia nesse momento, sabe? Mas, por exemplo, durante a negociação, não vi nenhum delegado lá. Não havia ninguém da Polícia Civil e era imprescindível que tivesse alguém lá. Voltando a trabalhar, eu vou ter que dar progressão de regime, avaliar condições carcerárias, essas coisas, para esses caras. Olha que terror! Imagina depois de eu passar por tudo isso, entendeu? Eu vou entrar naquela penitenciária para checar alguma violação de direitos, algo assim, vou ter que olhar nos olhos dos caras que cometeram o massacre. Não tem como apontar esse ou aquele. A maioria cometeu. Mas precisa ser investigado e coibido pela segurança pública.

    Você tem medo?

    Medo não é uma palavra correta. Não tenho medo. Sou uma pessoa que faz tudo com prazer, sentimento. O negócio de dinheiro, por exemplo, se eu trabalhasse diferente, me abstivesse de um monte de coisas, ganharia a mesma coisa no fim do mês. Mas eu me comprometo com a causa. Eu não acredito em juiz frio. O juiz tem que ter sentimento, o juiz na execução penal tem que acreditar no ser humano. Eu sempre acreditei no ser humano, mas estou com dificuldade de voltar a acreditar depois do que eu vi. Estou com dificuldade de acreditar em mim. Aqueles seres humanos que fizeram aquilo tudo, têm coisas deles na gente, você entende? Tem coisas deles em mim. Você entende o que eu quero dizer?

    Em entrevista à Ponte Jornalismo, a Pastoral Carcerária culpa o Judiciário também pelo cenário atual. A integrante diz que “se o Judiciário cumprisse seu papel, não haveria tantas mortes, porque as cadeias não estariam tão lotadas. A Lei de Execução Penal não é seguida. Há muitas pessoas que poderiam estar cumprindo pena em liberdade, mas continuam presas” . O que o senhor acha disso?

    Na reivindicação dos presos não houve reivindicação para adiantar processo, rever processo. Eu nunca vi uma rebelião em que os presos não pedem para agilizar processo. Não houve qualquer reivindicação. Ela tem razão com relação às penas provisórias. Tem mesmo muita gente que não deveria estar preso, que ainda nem foi julgado, tem gente presa que estava com duas ou três trouxinhas (de drogas), essas pessoas deveriam estar na rua. Mas aquele local onde aconteceu o massacre era só de condenados. Precisa ser feita essa diferença.

    Lei de execuções, completo abandono do sistema prisional e política de encarceramento. Mas, afinal, a culpa é de quem?

    A culpa é do Estado. E também da sociedade que finge que não vê, que não cobra.

    Além dessa situação de Manaus, há pouco mais de um ano aconteceu o massacre no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, onde também houve acerto de contas entre facções e assassinatos com decapitações. Quais outras penitenciárias são bomba-relógio?

    Eu não tenho conhecimento pra responder isso. A situação em Porto Alegre também não é boa. Eu acho que todas as penitenciárias do Brasil são bombas relógio. Muita gente atribui ao tráfico de drogas, por exemplo, até mesmo a manutenção desse tal crime organizado. A culpa não é do tráfico de drogas, a culpa é da falta de regulamentação das drogas.

    Mas é a favor da legalização?

    Sou a favor da regulamentação de todos os tipos de drogas. Todos. Inclusive o Estado ganharia com isso.

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