‘É uma condenação que eu vou ter para o resto da vida’, diz fotógrafo cegado pela PM

    Alex Silveira foi baleado no olho durante manifestação em SP, em maio de 2000, e processo será usado como parâmetro para todos os casos após o dele, com julgamento previsto para 2020: ‘deixou de ser eu há muito tempo, é algo que vai afetar todo mundo’

    Alex perdeu 80% da visão do olho esquerdo ao ser baleado pela PM | Foto: Sérgio Silva/Ponte Jornalismo

    “Fui chamado de The Flash burro, né?! Não tem lógica”. O fotógrafo Alexandro Wagner Oliveira da Silveira define de modo cômico a tentativa do Estado de São Paulo em culpá-lo pela tragédia em que perdeu a visão do olho esquerdo em maio de 2000. Então profissional do jornal Agora São Paulo, do Grupo Folha, Alex cobria uma manifestação na Avenida Paulista, quando foi atingido por uma bala de borracha da PM. Perdeu 80% da visão. Passados 19 anos, o STF (Superior Tribunal Federal) decidiu que analisará seu caso. E mais: passará a considerá-lo parâmetro para situações similares que aconteceram depois disso.

    O Estado de São Paulo tentou a todo custo recorrer e evitar ser considerado culpado pela lesão. O principal argumento utilizado foi de que foi o fotógrafo havia se colocado em risco ao cobrir uma manifestação, seu ofício na época como fotojornalista. Para o Estado, a culpa era dele, não do policial que atirou. A Justiça, em um primeiro momento, considerou que havia culpa do governo, sim. O juiz Emerson Norio Chinen acatou dois dos pedidos de Alex: danos morais no valor de cem salários mínimos da época e ressarcimento dos gastos médicos. O fotógrafo pleiteava também pensão vitalícia e valor para reparação dos danos estéticos, mas esses dois pedidos foram negados.

    Em 2ª instância, houve a confirmação de que só poderia ser uma bala de borracha a causar tais danos. Ainda assim, os desembargadores Vicente de Abreu Amadei, Sérgio Godoy Rodrigues de Aguiar e Maurício Fiorito, além de não considerarem válidos os dois pedidos negados na 1ª instância ainda retiraram as suas duas conquistas já ganhas. Para tal, usaram a cláusula de exclusão, em que transfere a culpa do Estado para a vítima. Ou seja: o TJ (Tribunal de Justiça) de São Paulo considerou que só uma bala de borracha poderia causar tais danos, mas retirou qualquer tipo de culpa e obrigação de o Estado reparar os danos causados a Alex. Assim, sua defesa partiu para o STF.

    No dia 21 de junho de 2019, o Tribunal considerou que havia “repercussão geral” no recurso extraordinário feito pelos seus advogados. Significa dizer que, além de avaliar o caso específico de Alex e avaliar os pedidos feitos pelos advogados desde a 1ª instância, o Supremo passará a validar tal decisão para os casos similares que sucederam a violência sofrida pelo profissional. Seja decidindo a favor, seja decidindo contra.

    “Agora, o STF vai analisar o entendimento do TJ, de afastar a indenização e que o Estado responde por atos de seus agentes, independentemente de culpa ou dolo, é irrelevante para essa configuração”, explica a advogada do fotógrafo, Virgínia Garcia. ” O tribunal coloca a responsabilidade no Alex, que estava com uma câmera, não uma arma ou pedra. O próprio acórdão reconhece que ele estava na Paulista como repórter. Quando [os desembargadores] dizem que ele se coloca em uma situação de risco em uma manifestação, de certa forma estão cerceando a liberdade de imprensa. Isso, para um jornalista, é o mínimo de resguardo que precisa”, argumenta.

    Um caminho bastante parecido – sobre ser considerado culpado pelo dano cometido pelo Estado – seguiu o caso do fotógrafo Sérgio Silva, baleado também no olho esquerdo durante as manifestações de junho de 2013. A última decisão de um recurso movido por Sérgio, aliás, foi desfavorável a ele: em junho, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) ratificou o que já havia sido decidido em outras instâncias, considerando não haver provas de que a bala de borracha que deixou o fotógrafo cego partiu de uma arma da PM.

    Sérgio Silva, também cegado pela PM, conversa com Alex Silveira, em julho de 2014

    Uma resposta definitiva para o caso de Alex, já em última instância, demorará. No melhor dos cenários, o STF analisará a questão apenas no primeiro semestre de 2020, isso porque toda a agenda do Supremo em 2019 já está preenchida. Virgínia sustenta que será sorte se o caso de Alex entrar no próximo semestre aberto de análises dos ministros.

    “Nossa chance é que seja julgado no primeiro semestre, o que acho difícil. Não tem como saber a data, infelizmente não tem prazo. É aguardar”, lamenta. “Depende do relator, que vai proferindo os votos. Não sei quantos processos ele tem, se são ordenados por relevância, por tempo… Depende muito, é um critério de distribuição dentro do próprio gabinete [do ministro]”, explica. O relator do caso é o ministro Marco Aurélio Mello.

    Confira a entrevista concedida à Ponte pelo fotógrafo Alex Silveira:

    Ponte – Como reagiu à decisão de o STF analisar o seu caso após quase duas décadas?
    Alex Silveira –
    Vamos ser práticos: são 20 anos praticamente, um ano a mais ou a menos, isso é o de menos. Eu já estou muito feliz da coisa estar sendo votada. O fato é que, também, não significa que terá uma votação favorável. Já se foi 40% da minha vida cego. Se parar para pensar, teria feito um puta investimento de vida indo estudar fotografia, crescer com isso. Não tem grana no mundo que vai cobrir. Olhando por outro lado, uma coisa bem maior, afeta todo mundo. Não os processos, todo mundo. Você está na rua uma hora e pode tomar um tiro. É uma coisa complexa. Se eu ficar sentado, chorando, tinha perdido minha vida. Não existe nada mais precioso na vida da gente do que o tempo e 40% da minha vida foi desse jeito. Querendo ou não, é uma condenação que eu vou ter para o resto da minha vida. Não enxergar, ter as dificuldades que eu tenho. Enfim, vamos tocar, acontece. Cada um carrega o peso que pode, que lhe é devido.

    Ponte – Quais investimentos fez à época?
    Alex Silveira –
    Estudei cinema e fotografia em Nova York, nos Estados Unidos. É como uma graduação de cinema, mas fiz o tecnológico. Independente de quanto for dado para o caso, se eu ganhar nunca vai cobrir o valor se pensar o tempo de vida. É um tempo que se foi e ainda se vai. Fotojornalismo? Esquece, nunca mais. Não tem como. Vou dar um exemplo prático: já mandei portfólio para muitos lugares de trabalho onde muita gente estava mandando, fui chamado para a entrevista e, quando chego, a pessoa sabe da sua situação e te bota para baixo. Entendeu qual é? Não falo que isso justifica tudo que aconteceu na vida, graças a Deus estou em um lado que tem muita gente legal também, mas pode ter certeza que atrapalha – e muito.

    Ponte – Cogitou se aposentar por invalidez?
    Alex Silveira –
    Já me foi perguntado. Cara, não me sinto inválido. Sou um deficiente, é um fato. Inválido eu não sou. Quando me dá vontade de fazer trabalhos, faço ótimos trabalhos de fotografia. Não tenho motivo para me sentir um inválido. Agora, prejudica muito. Estou fazendo minha faculdade sem enxergar o quadro, para se ter uma ideia. Você ouve o professor e recebe os slides para ver em casa, ótimo, legal. Mas na hora que vejo o material, não tem um professor falando comigo. Não tiro dúvida no ato. Tem alguns assuntos que você consegue enxergar, como movimentos de vida. Morei na Amazônia muito tempo. Tenta imaginar tendo essa aula de cálculo. Nem Einstein consegue! Não tem a ver com capacidade de inteligência, tem a ver com a capacidade de enxergar. Enfim, vamos ver no que dá. Eu só não me aposentei porque não me acho inválido. E nesse dilema de hoje em dia da Previdência, estou até orgulhoso de falar que prefiro não me aposentar.

    Ponte – Por quê?
    Alex Silveira –
    Não vou me encostar no Estado. Acho que mereço o que me é devido. Foi feito uma sacanagem? Foi. Tenho que ser de alguma forma restituído, apesar que não ter como acontecer isso, eu quero, é direito. Se me for negado, aí que está o ponto: não será negado para mim, será para todos. Não é para quem levou o tiro, apenas, é para você, o motorista de táxi, qualquer um. Se não fosse polícia, fosse um professor me dando uma pedrada, tenho certeza que a coisa seria diferente. Se entenderem dessa forma, que eu sou culpado, é a tese de que ninguém mais pode chegar perto quando começou tiro. O que é isso? Não pode mais existir imprensa? Isso é pior do que qualquer outra coisa. O recado é esse.

    Ponte – Como lidou com a lesão nesse tempo?
    Alex Silveira –
    Basicamente, mudou totalmente a minha vida em todos os aspectos. Se eu fosse ficar sentado e chorando… Eu preciso tocar minha vida. Falo que o dano foi na visão, mas me afetou em várias coisas. Pare para pensar: por causa da visão ser ruim, eu estou fazendo uma faculdade sem enxergar a lousa. Sabe? É foda. Muda tudo. Pensa para um fotógrafo… Fica uma dependência fodida. Sempre tive carro, a vida inteira me deslocava de carro, isso vai dificultando muita coisa. Estou tocando a minha vida, vou continuar, vou estudar oceanografia, vou trabalhar com oceano, mas nunca abandonar o que faço. Eu aprendi 3D depois do que aconteceu, imaginava que precisava migrar de situação de trampo, enfim. Ainda fotografo uma coisa ou outra, mas trabalho nessa área, mesmo, difícil e faz um tempo. Eu sei que tá para todo mundo, não estou reclamando. Já que está tão ruim, vou estudar. E é isso que estou fazendo. Eu tenho ideia de trabalhar com divulgação científica, entre outras coisas. Quero muito. Estou estudando e aprendendo a criação de camarão. Estou abrindo a mente. Faço 49 anos em setembro. Óbvio que ainda estou 20% bem da visão, agora para frente só vai piorar. Espero passar boa parte da minha vida do jeito que Deus me deu, mas fazer o que.

    Ponte – Como se sustenta desde a perda da visão?
    Alex Silveira –
    Eu sou fotógrafo, tenho equipamento, mas desde quando me mudei para cá [Rio Grande, a 370 km da capital do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, e próximo à divisa com o Uruguai], eu trabalho com 3D, design gráfico. Não vou mentir, às vezes meus pais têm que me dar um auxílio, porque também não está fácil. Eu saí da Amazônia e larguei o trabalho lá. Hoje em dia, não vou mentir, faço um trampo aqui, outro ali, vou levando. Ainda é com fotografia, mas nunca mais com fotojornalismo. Já fiz assessoria, natureza, ambiente, coisa e tal, outra coisa totalmente diferente.

    Ponte – Dá saudade de ser fotojornalista?
    Alex Silveira –
    Ah, bastante saudade. A adrenalina é outra coisa. Eu trabalhava no Agora, correria.

    Ponte – Está otimista quanto à decisão no Supremo?
    Alex Silveira –
    Eu não sou otimista em relação a pessoas em maneira geral. Eu conheço espécimes fantásticos, maravilhosos, mas também conheço de péssima qualidade. Se olhar, é um assunto que para qualquer um que se conta, e não sou eu contando, a pessoa pensa: “Como a pessoa é culpada de levar um tiro na cara?”. Pare para pensar: não é uma questão moral, de direito, é uma questão de física. Para eu colocar minha cara na frente da bala, ela tinha que ter saído do cano, eu olhar a bala, sair correndo e enfiar meu olho bom na frente dela. Fui chamado de The Flash burro, né?! Não tem lógica. Se tivesse, aquele câmera da Bandeirantes também era culpado [Santiago Andrade, morto ao ser atingido um rojão durante manifestação no RJ em 2014]. É a mesma lógica. Se tivesse, aquela juíza do Rio de Janeiro que foi assassinada por investigar policiais da milícia [Patrícia Acioli, morta fuzilada em seu carro em 2011], ela teria se colocado em risco também. Dispensou a segurança, estava ameaçando gente perigosa… E também eram policiais. Então, pare para pensar. E não são culpados, de forma alguma.

    Ponte – Como analisa o seu processo?
    Alex Silveira –
    Aquela decisão [do TJ, em 2ª instância], na minha opinião, é totalmente política. Nunca, até agora, acenou o fato do meu caso. Outra coisa: li ao longo das respostas e apelações que, por parte do governo, eu por acaso levei o tiro enquanto estava agachado, fotografando. Não estava! Estava em pé, ao lado de uma repórter do Diário Popular. Se estivesse abaixado fotografando e acertaram o olho que eu trabalhava, teria acertado na máquina, não em mim. Não faz sentido o que alegaram. Como eu não abri a boca na Justiça, uma coisa que acho absurdo, ninguém nunca me perguntou literalmente nada, entro quieto e saio calado do processo, falo através do advogado, mas não é a mesma coisa.

    Ponte – Não imagina nenhum desfecho?
    Alex Silveira –
    Só o fato de aceitaram ou não, você pode imaginar o que vai acontecer. Tem as abstenções, que foram três. O Alexandre de Morais era do governo de São Paulo em 2014, óbvio que votou contra. Não sei os demais. Tem três que não sabemos a opinião. Quanto a isso, entrego a Deus, não tem mais o que fazer. Tudo aconteceu naquele dia [18 de maio de 2000], então pronto. Não tem muito o que fazer. Quando chega nessa instância, uma decisão política tendo repercussão geral, agora a bola rola para todo mundo. Quando fiquei sabendo disso, um ou dois dias antes o presidente [Jair Bolsonaro, do PSL] estava falando que queria baixar uma medida em que o policial não deve se responsabilizar pelo tiro que dá. Que merda é essa? Se não vai responsabilizar pelo tiro que dá, vou ter eu a arma, então. O nível da história é outro. Quando estava na Terra do Meio, no Pará, com desmatamento, área de reserva, um deputado foi em uma entrevista e falou: “O povo fica preocupado com passarinho, abelinha”. Porra, irmão, se acabar passarinho e abelinha, nós não comemos mais. Entende? O povo parece que enxerga como se o mundo fosse acabar daqui a cinco anos, não para para pensar daqui a 10 anos. Eu já entreguei para Deus, o que acho ou deixo de achar… Agora, vai piorar muito a situação para todo mundo se for negado. Deixou de ser eu há muito tempo, eu sou um nada nessa história. O que acontecer comigo, muda para todo mundo, não só quem levou tiro.

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