Mulher teve rompimento de tendão, desmaiou e teve que engessar a perna. Outra foi segurada como refém por policial, com a arma apontada para a cabeça
O dia estava quente e Emanuele Barboza Soares Castro, a Manu, de 41 anos, saiu para ir ao mercado comprar carne para um churrasco. Era o início da tarde da quarta-feira, 20 de novembro, primeiro feriado nacional do Dia da Consciência Negra.
Seu carro mal havia se afastado de casa quando Manu presenciou uma abordagem policial. Uma moto do 25º Batalhão da Polícia Militar do Interior estava jogada no chão, sobre outra moto — que ela reconheceu instantaneamente. Era de Walyson Costa, 25, seu filho. Pessoas se aglomeravam na rua gravando com seus celulares o rapaz negro ser agredido por um PM. A mãe, então, parou seu carro e se colocou entre o militar e o filho, segurando o braço do policial para que a agressão cessasse.
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Segundo conta a mãe, os policiais, João Carlos Pavim Sartori e Leiswladio Pereira Souza, já seriam conhecidos de Walyson. Egresso do sistema carcerário há menos de um mês, ela diz que o jovem havia se deparado com eles dias antes da agressão — e que teriam feito ameaças de forjar um flagrante de drogas contra ele e voltar a ser preso. O jovem então, quando os viu enquanto andava de moto no feriado, fugiu. E só parou próximo de casa, onde outras pessoas poderiam testemunhar a ação policial.
Mesmo com a presença de vizinhos, familiares relatam que os policiais derrubaram a tia de Walyson, Márcia Costa, aposentada de 49 anos, no chão. E que, caída e sem oferecer risco, ela teria sido chutada na perna e então desmaiado. A Ponte teve acesso a imagens de sua perna, com hematomas: Márcia sofreu rompimento do tendão e teve a perna engessada na Santa Casa do município. Um exame de delito foi solicitado para registrar a lesão.
Agarrada pelo pescoço
Com Márcia no chão, a gravação mostra o PM Leiswladio segurando Manu pelo pescoço, em uma posição que mimetiza como um refém é contido, e apontou sua arma para a cabeça dela. Manu conseguiu se desvencilhar em seguida, e saiu de perto dos policiais. Outro filho dela, Yuri Costa, 23, também teve uma arma apontada contra si — dessa vez, pelo PM Sartori.
O autor do vídeo fez questão de dizer aos militares que uma denúncia seria feita contra eles, e ficou também na mira da pistola de Sartori.
A ação terminou sem a detenção de ninguém. Um Boletim de Ocorrência foi registrado na delegacia seccional de Dracena pelos policiais militares, com os crimes de dano qualificado — à moto da polícia, patrimônio público —, lesão corporal agravada por ser contra agente de segurança e desobediência. O registro deu origem a um inquérito policial em que Manu, Márcia e seus dois filhos constam como investigados, e os policiais como vítimas.
Na versão apresentada pelos PMs, não é citado o chute que teria ferido Márcia e nem qualquer outra violência contra a família.
Versões diferentes
Em nota à imprensa, o 25º Batalhão de Polícia Militar do Interior diz que os policiais envolvidos na ação foram hostilizados pelos populares, que os teriam agredido com tijolos e também danificado as viaturas — algo que não aparece nas imagens. A nota afirma que “durante patrulhamento ostensivo preventivo se depararam com uma motocicleta Honda Titan de cor prata com dois ocupantes pelo bairro Jardim Brasilândia e devido a fundada suspeita na ação foi tentada a abordagem, porém os indivíduos empreenderam fuga e o passageiro veio a pular com a motocicleta ainda em movimento e fugir”.
O texto prossegue dizendo que, “na tentativa da contenção da parte abordada, diversos familiares deste e moradores do local, investiram contra os policiais militares no intuito de resgatar o abordado, sendo estes hostilizados com o arremesso de vários objetos, entre eles tijolos, que causaram lesões nos militares bem como avarias nas viaturas policiais”.
No BO, entretanto, os PMs dão outra versão: não citam que havia mais ninguém na moto com Walyson e afirmam que ele parecia “ter algo nos bolsos” e que é “conhecido nos meios policiais”.
O batalhão usou o ocorrido para a deflagração de uma Operação Escudo, com apoio das Forças Táticas da região e do BAEP (Batalhão de Operações Especiais). Esse tipo de operação foi criado no início da gestão Guilherme Derrite para cada vez que um policial fosse vítima de violência. A Escudo deflagrada pela PM na Baixada Santista em 2023 e 2024 resultou em mais de 50 mortes pela polícia.
“Intensificaremos o policiamento em todo o Jardim Brasilândia e em todo o município de Dracena. Agiremos de maneira preventiva, ostensiva e até mesmo repressiva até que haja a prisão das pessoas envolvidas nesse crime”, disse em vídeo no dia seguinte à ação o Major da PM Marcelo Cavalcante, comandante interino do batalhão.
Os militares do 25º Batalhão de Polícia Militar do Interior não usam câmeras corporais.
A versão policial deu fôlego a uma investida contra a família, que foi retratada em seção policial de um programa matinal da mídia local de Dracena como um grupo que “atacou a PM” e depois fugiu.
‘Estão nos colocando como delinquentes’
Manu questiona a posição do batalhão e relata que policiais civis foram até sua casa, e toda a família se apresentou espontaneamente na delegacia, inclusive indo em seu carro particular até o local. “Imagine sua integridade ser colocada à prova desse jeito perante uma cidade inteira”, desabafa ela.
“Nunca tive passagem na polícia, sempre trabalhei. O que me revolta é estarem nos colocando como delinquentes sem ao menos nos darem a oportunidade de defesa”, diz.
O mesmo programa jornalístico recebeu, na manhã de ontem, o comandante da PM Marcelo Cavalcante para uma entrevista. Ao relatar a ação policial contra a família de Manu, o comandante reiterou que os policiais envolvidos “sabiamente usaram toda a técnica” para evitar um “mal maior”, sem disparar nenhum tiro, e reforça a necessidade da deflagração da Operação Escudo para localização de Manu e seus filhos — mas admitiu, no fim, que todos foram à delegacia espontaneamente prestar depoimentos e liberados em seguida para aguardarem o trâmite investigatório e judicial.
A violência contra Márcia, que foi agredida pelos militares, e a ameaça realizada pelo PM Leiswladio, ao apontar sua arma contra a cabeça de Manu, não foram citadas pelo comandante. O PM foi parabenizado pelo apresentador pelo trabalho realizado.
O que dizem as autoridades
Questionamentos foram enviados à Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMESP) e à Polícia Civil do Estado de São Paulo sobre a atuação dos PMs envolvidos na ação e sobre o inquérito que investiga o caso. Em nota, a assessoria de imprensa respondeu que a investigação está em curso, com depoimentos já tendo sido coletados, e que análises das imagens da ocorrência estão sendo realizadas. Leia, abaixo, a íntegra da nota da Fator F, assessoria terceirizada da Secretaria da Segurança Pública (SSP):
Todas as circunstâncias do caso são investigadas pela Polícia Civil de Dracena, por meio de inquérito policial. A autoridade policial já coletou depoimentos de parte dos envolvidos e deve ouvir os policiais militares nos próximos dias. Além disso, analisa imagens da ocorrência e aguarda os resultados dos exames periciais e de corpo de delito para total esclarecimento dos fatos. Os vídeos do caso também são alvo de análise pela Polícia Militar que irá avaliar a conduta dos policiais e as medidas pertinentes a serem tomadas.