Em busca de suas raízes subversivas, hardcore brasileiro combate Bolsonaro

    Bandas e público da cena underground resistem à onda conservadora que assola o país – e invade o universo do rock – com diálogo, reflexão e, principalmente, música

    Evento “Hardcore contra o fascismo” foi realizado em São Paulo no último dia 6 de janeiro | Foto: Juliana Santoros/Ponte

    “No hardcore não tem espaço para machismo, racismo e homofobia. E se você acha que deve ter, pau no seu cu”. O grito do vocalista Lucas Ferreira, vulgo Jota, aconteceu durante um show da banda Escombro, grupo de hardcore paulistano, parte da terceira edição do Hardcore contra o fascismo que aconteceu no dia 6 de janeiro, no Largo da Batata, zona oeste de São Paulo. A frase veio em um momento em que o rock, apesar de originário do blues, jazz e R&B, gêneros musicais genuinamente negros, têm se mostrado contraditoriamente elitista e conservador. Mais: a fala de Jota ecoa em meio a um movimento de união do hardcore para buscar suas origens e focar no combate ao fascismo e ao presidente Jair Bolsonaro (PSL).

    O que um dia foi um movimento de contracultura, postura rebelde e de embate político vem desafinando mais e mais. Os roqueiros que um dia usavam as guitarras ensurdecedoras e vozes para dizer letras críticas aos governos, agora aceitam fazer coro e reproduzir discursos que ferem os direitos humanos. Personalidades como Roger Moreira (Ultraje a Rigor), Digão (Raimundos), Lobão e, até mesmo, Sukata, ex-baixista da banda punk Garotos Podres, lembrada por suas músicas “à esquerda”, se renderam à multidão a favor de Jair Bolsonaro. Até usaram as redes sociais para mostrar parceria.

    A banda Garotos Podres protagoniza tal cenário de contradição político-ideológica vivido pelo mundo do rock brasileiro na Justiça. Fundado por Mao, vocalista e doutor em História Econômica pela USP (Universidade de São Paulo), o grupo se encontra polarizado à esquerda e à direita, como parte da sociedade verde, amarela e – também – vermelha. Integrante mais antigo da banda e autor da maioria de suas composições, Mao disputa o uso do nome “Garotos Podres” com seus ex-colegas de música e, até então, de posicionamento anarquista. Hoje, eles são bolsonaristas.

    A plateia ouve atentamente as palavras de ordem de Inti Queiroz em evento em SP no início de janeiro | Foto: Juliana Santoros/Ponte

    Não é à toa que Jota relembra o público, em seu brado raivoso no início do texto, sobre o quanto o rock, especificamente o hardcore, não se relaciona – ou não deveria – às posturas de preconceito. Ao contrário: possui, em sua essência, uma veia política intensa e subversiva vinda o punk, propagado na década de 1970 e até hoje em dúvida se nasceu com bandas como Sex Pistols, na Inglaterra, ou grupos feito Ramones, nos Estados unidos. A métrica do punk quebrou os solos gigantescos de guitarras, técnicas profissionais elaboradíssimas e letras fantasiosas sobre o espaço sideral. A ideia era ser simples em tudo: formato, som e, principalmente, mensagem.

    O punk rock trouxe o rock de volta ao básico, inspirados nas bandas de garagem dos anos 1960. A música tinha melodia simplória, com no máximo quatro acordes de guitarras, e as letras abordavam assuntos reais, como lutas de classes, injustiças sociais em um futuro distópico e sem esperanças, que desencadeava o consumo desenfreado de drogas. Exemplos: Richard Hell e o seu grupo The Voidoids cantava “Eu pertenço a geração vazia”, em 1977, virando uma ode à desesperança, os Ramones faziam uma crítica áspera ao presidente Ronald Regan (EUA), que visitou em 1985 o cemitério militar de Bitburg, na Alemanha e prestou condolências a soldados nazistas, como cantam em “Bonzo Goes To Bitburg”.

    Se o punk já era um estilo “largado”, o hardcore eleva esta versão a uma vertente mais radical ainda. Em termos estéticos musicais, o hardcore era mais veloz e agressivo. Em questões sociais, combatia as grandes corporações. Algumas bandas norte-americanas, como o Black Flag, Dead Kennedys e o Minor Threat, tinham as suas próprias gravadoras. Isso sem mencionar que as letras do hardcore eram ainda mais politizadas, como é o caso de Police Story, canção da banda californiana Black Flag, lançada em 1981, que narrava a violência policial sofrida por adolescentes na época: “Essa porra de cidade / É controlada por porcos / Eles tiram os direitos / De todos os meninos / Entenda / Nós estamos lutando em uma guerra que não podemos vencer / Eles nos odeiam, nós os odiamos / Não podemos ganhar de jeito nenhum”.

    Alinne Santos comanda a banda santista Mar Morto | Foto: Juliana Santoros/Ponte

    Dentro da ideologia do punk/hardcore, sempre teve espaço para a luta dos direitos humanos, seja no combate ao racismo, com a banda Bad Brains, formada apenas por negros, seja com o movimento punk feminista Riot Grrrl, encabeçado pelas bandas Bikini Kill e Bratmobile, ou a luta pelos direitos LGBT, sendo a banda Pansy Division a principal divulgadora da causa. Mas, afinal, música e política se misturam? Esse foi o questionamento implantado e respondido com sucesso por um movimento de roqueiros paulistas, chamado de Hardcore contra o Fascismo.

    A ideia era combater uma crescente onda de ataques violentos desferidos à comunidade LGBT e demais minorias em meio à campanha eleitoral de 2018, em que Jair Bolsonaro saiu vitorioso. O ato foi organizado por nomes da cena underground do hardcore como o ativista cultural e integrante do Coletivo Sapopemba, Edi Silva Prates, e os músicos Fausto Oi (Direction, Good Intentions e ex-Dance Of Days), Nicolas (88 Não) e Rodrigo Lima, vocalista da banda Dead Fish.

    “A gente vem fazendo isso desde antes da eleição. Eu acho que é uma questão de aglutinar, na rua, as pessoas que querem fazer alguma diferença e que querem lutar contra esse mar de bosta neocolonialista ou ‘protocata-caipira-fascista’ que seja”, explica Rodrigo.  Segundo Carol Folha, fotógrafa, produtora de shows e uma das organizadoras do ato, hardcore e política não só se misturam, como tem um lado definido: “Para mim, o hardcore é de esquerda. Não existe o hardcore de direita”, afirma.

    Em todas as edições a entrada é franca, as bandas não recebem cachê e o repertório do show é formado por, no máximo, quatro músicas. O intuito não é realizar um show, mas sim um ato político contra o fascismo, tendo a música como meio de mensagem. É a volta às origens. Para tal, debates têm sido feitos em meio aos show para deixar a mensagem ainda mais clara.

    Mateus, Mariana Araújo e André Vieland no bate-papo sobre veganismo | Foto: Juliana Santoros/Ponte

    “No ato de hoje a gente teve a flexibilidade de colocar rodas de conversas, mas o atrativo em si acaba sendo a música, porque muita gente acaba vindo pelo show e pelo entretenimento, e de certa forma não é ruim, é um chamariz pra essa galera que sai de um ato desse com outra perspectiva pra coisa, expande mais a cabeça pra ver que não é só entretenimento, é sim posicionamento político, que é lutar pelo o que acredita, pelos ideais”, explica Carol. Mas sãos os músicos os protagonistas.

    “O fascismo brasileiro é como o Curupira, ele quer andar para uma direção, mas vai para outra”, discursou o professor de geografia Felipe Saluti, mais conhecido na cena underground como Blossom, da banda Good Intentions.  Na sua fala, a vocalista do Havana Super Rock, Inti Queiroz, deu um alerta à juventude. “Nós, mais velhos, já estamos cansados, essa é a hora da juventude mostrar o seu protagonismo na militância. Precisamos nos unir com o pessoal do Rap, que também é uma música que aborda problemas e questões sociais e que também está à margem da sociedade, assim como o hardcore. Vamos unir forças”, bradou Inti. Já o vocalista da banda Desalmado, Caio Augusttus, fez questão de frisar a importância de atrair nesses atos musicais pessoas curiosas “que estejam dispostas a dialogar, para mostrar pra elas que existe um caminho diferente”.

    Professor Felipe Saluti (o “Blossom”) dando uma aula sobre fascismo | Foto: Juliana Santoros/Ponte

    Fim do ‘politicamente correto’

    Durante o seu discurso de posse, Jair Messias Bolsonaro disse: “É com humildade e honra que me dirijo a todos vocês como presidente do Brasil. E me coloco diante de toda a nação, neste dia, como o dia em que o povo começou a se libertar do socialismo, da inversão de valores, do gigantismo estatal e do politicamente correto”. Para Rodrigo Lima, a voz do Dead Fish, acabar com o chamado politicamente correto é avançar ainda mais com o fascismo no país.

    “Bolsonaro quer respaldar o discurso racista, homofóbico, misógino e todas essas coisas que a gente tem no Brasil há mais de 500 anos, além de desautorizar as pessoas que querem andar para frente. Classificar de politicamente correto uma pessoa que luta contra o racismo ou que é feminista, é de uma estupidez ridícula”, afirma o músico.

    Blackjaw traz o seu hardcore melódico para o ato contra o fascismo no dia 6 de janeiro, na zona oeste de SP | Foto: Juliana Santoros/Ponte

    Daniela Gumiero, da banda Blackjaw, segue a mesma lógica: “O problema é que ele está dando voz para uma série de pensamentos que acabam invadindo o espaço do próximo e, quando acaba o seu espaço, começa o direito do outro. Infringir isso, pelo motivo que for, eu acho que é um risco e que só gera confronto, ódio e segregação. E é a última coisa que a gente precisa nesse momento”, argumenta.

    Para Fausto Oi, fica um questionamento: “Quem é o politicamente correto?”, diz. “Para mim, o hardcore/punk underground sempre foi o politicamente incorreto em relação à política vigente no congresso nacional, a gente sempre esteve contestando melhorias, contestando posturas do governo, então a gente sempre esteve do lado de combater”, ressalta. Ele afirma também que nem mesmo os mandatos petistas escaparam das cobranças da cena punk/hardcore.

    Dinamite Club apresentando a sua nova formação | Foto: Juliana Santoros/Ponte

    “Mesmo quando teve um governo dito mais à esquerda, que foi o PT (2003 – 2016), a comunidade do hardcore não passou a mão e sempre demonstrou descontentamento com as políticas vigentes”, diz o músico. Fausto ainda completa: “Às vezes o politicamente correto parece ser mais o cara certinho de direita que se contentava com tudo. E no nosso caso, muitas surpresas vão aparecer nesse governo e a gente tem que tá na verdade preparado pra questionar e não engolir”.

    Caio Augusttus encerra a rodada de palestras do “Hardcore contra o fascismo”, em SP | Foto: Juliana Santoros/Ponte

    No mesmo dia que ocorria o terceiro ato em São Paulo, as capitais brasileiras Fortaleza (CE), Teresina (PI) e Rio de Janeiro (RJ) também sediaram o Hardcore contra o fascismo, com apresentações de bandas locais. A intenção é que mais capitais e estados do país adiram ao movimento, mesmo que ele seja voltado para um público específico, conforme relembrou Fausto Oi. “É meio difícil dizer se a gente aqui vai estar batendo de frente com o governo. Trata-se de uma coisa de nicho, é uma coisa pequena. Para muitos pode ser considerado irrisória a quantidade de pessoas que tem aqui em relação ao número de eleitores que o Bolsonaro teve, por exemplo”.

    Entretanto, o mesmo reforça a importância do ato: “Só que dentro da nossa comunidade, que é o nosso nicho, se a gente se mostrar unido, mostrar que está aqui se posicionando, se você posta na sua rede social que você está aqui no Hardcore contra o fascismo e alguém ler aquilo, se a sua mãe ler, se o seu pai ler, e ele questionar aquilo, trocar uma ideia contigo e ver que muitas vezes essas pessoas que votaram no Bolsonaro são pais, são tios, são amigos de pessoas que estão aqui e elas conseguem ter a opinião de quem está aqui e questiona, ‘por que a pessoa está lá? por que ela está chamando aquilo de fascismo?’, aí você consegue explicar de onde vêm as ideias do presidente que foi eleito, as ideias que excluem pessoas, ideias racistas, ideia de governar para uma certa classe da população. Então se gerar um diálogo, já vai ser super válido”, finaliza.

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