Em Ermelino Matarazzo, alguns negam risco da Covid-19, outros se unem em ações solidárias

    Novo hospital deveria ter sido aberto há 5 anos, mas segue fechado no bairro onde 32 morreram de coronavírus; ocupação doa cestas básicas e kits de higiene

    Lambe-lambes são colocados em paredes de Ermelino Matarazzo, zona leste de SP | Foto: Reprodução Facebook

    O fim de um plantão de 12 horas deixa Valéria* esgotada física e mentalmente. Enfermeira no Hospital Ermelino Matarazzo, na zona leste de São Paulo, a profissional vive na pele a cada dois dias o agravamento do coronavírus na periferia. Quando chega ao trabalho, os itens de equipamento de proteção individual (EPI) são limitados e não dão conta da longa jornada. A alternativa é tirar dinheiro do próprio bolso para comprar materiais essenciais como óculos de proteção ou, com muita sorte, receber doação de amigos. 

    Ao que classifica como “terror constante”, Valéria tem atuado na linha de frente no combate à Covid-19 desde o início da pandemia. Ela calcula que, nas últimas semanas, recebe pelo menos uma pessoa por hora com suspeita da doença. Algumas demoram para serem atendidas, pois apenas 10% do total de 270 leitos foram destinados para o tratamento do vírus. Houve até o caso de uma pessoa que morreu em uma cadeira antes mesmo de entrar no hospital. “Chego [no plantão] animada e saio desesperançosa porque sei que muitos vão morrer ali. Eu mesmo acho que já fui contaminada”, declara.

    Até 17 de abril, a subprefeitura de Ermelino Matarazzo havia registrado 91 casos, com 32 óbitos confirmados. A região tem cerca de 208 mil habitantes, segundo o censo municipal de 2010. A Ponte solicitou números mais atualizados à Secretaria Municipal de Saúde (SMS), mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.

    A sobrecarga do único hospital público Ermelino Matarazzo poderia ser menor se a prefeitura tirasse do papel a abertura do hospital Menino Jesus. Em 2014, a gestão Fernando Haddad (PT) comprou o equipamento particular por R$ 2,5 milhões com a promessa de abrir no segundo semestre do ano seguinte um centro de especialidades e exames da Rede Hora Certa.

    A reportagem visitou o terreno no início da semana e encontrou mato alto e lixo por toda a parte. O imóvel recebe segurança 24 horas por dia há três anos e ganhou reforço extra com a chegada de uma cachorra vira-lata. A funcionária que estava de plantão no momento proibiu fotografias do espaço.

    Hospital Menino Jesus, comprado pela prefeitura por R$ 2,5 milhões, tem lixo e mato alto | Foto: Henrique Santiago

    Com apenas uma opção na região, os moradores de Ermelino Matarazzo devem desconhecer a recomendação adotada no hospital. A direção ordena a transferência dos pacientes para o Tide Setúbal, em São Miguel Paulista, mesmo que não haja melhora no quadro de coronavírus, revela Valéria. Embora o cenário seja preocupante, a enfermeira tem visto cada vez mais pessoas na rua sem necessidade. “Eu sinto dó porque sei que é uma pessoa que amanhã vai estar no hospital. A minha vontade é de falar: ‘me dá o seu telefone que daqui a 10, 15 dias eu quero ligar para saber como você vai estar’”, diz ela.

    Nós por nós

    A movimentação nas ruas também preocupa Gil Douglas, 34 anos, ativista cultural do Movimento Cultural Ermelino Matarazzo. As atividades na ocupação estão suspensas desde 14 de março, mas isso não significa que as portas estão fechadas para a comunidade.

    Juntamente com ele, os demais representantes do centro cultural iniciaram um trabalho de conscientização da população. Distribuíram lambe-lambes nos postes, 200 kits de higiene em pontos de ônibus, 300 máscaras de pano e projetaram frases no prédio do movimento pelo isolamento social. Talvez a atitude mais simbólica tenha sido a distribuição de 300 cestas básicas até o momento para aqueles em situação de vulnerabilidade social.

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    Diariamente, representantes da “Ocupa”, como Gil denomina, trabalham pela população do distrito da zona leste. Entre uma entrega de cesta e outra, procuram conversar com os moradores para entender o que eles pensam da quarentena. A maior resistência na aceitação de ficar dentro de casa e do uso de equipamento de proteção vem do público jovem. “Eu estou falando com você agora e tem um grupo de adolescentes andando de skate, aglomerados. Eles acham que estão imunes e nem refletem sobre esse lance”, diz em conversa ao telefone.

    Movimento Cultural de Ermelino entregou mais de 300 cestas básicas até o momento | Foto: Divulgação/Facebook

    Mesmo diante das dificuldades, Ermelino Matarazzo se destaca entre os bairros com maior participação no isolamento social na cidade de São Paulo. Em 24 de abril, o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) divulgou que 66% das pessoas contribuem com a recomendação dada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), considerada a mais eficaz para impedir o avanço do coronavírus. Marsilac e Parelheiros, na zona sul, lideram com 79% e 70%, respectivamente.

    A prefeitura distribuiu carros de som que passam em ruas e avenidas com mensagens de apoio ao isolamento em Ermelino. Gil, porém, acredita que o discurso não chega até a população por ser muito formal. “Aqui na quebrada você tem que ter uma comunicação muito boa. Na periferia, o que atinge Santa Inês não atinge o Buraco Quente”, diz, em referência a duas favelas da região.

    A voz que fala com a quebrada

    O Movimento Cultural começou na última semana um trabalho de comunicação direta com a periferia. Os ativistas se reuniram e decidiram gravar um áudio com vozes de homem e mulher para avisar os moradores da região sobre a importância do isolamento social em tempos de pandemia. Quem transmite a mensagem é Valdir Carvalho dos Santos, 50 anos, o Jamaica. Figura carimbada em Ermelino Matarazzo, o catador de materiais recicláveis tira da garagem sua TV Móvel, um carro construído com peças e carroceria de outros veículos, e percorre por horas a fio ruas, avenidas e favelas.

    Construa a Ponte

    É nas favelas, inclusive, que Jamaica encontra o maior fluxo de pessoas fora de casa. Elas conversam, brincam e até fazem churrasco na calçada. Ele entende que o problema vai muito além. “Já morei em favela, sei que é difícil ficar no barraco em época de calor. Ali tem barraco de dois cômodos para cinco pessoas, às vezes nem ventilador tem. Vi muita gente na rua ali perto da Caixa D’água e no Buraco Quente. Parecia um dia normal. Já fora das comunidades é diferente”, avalia.

    https://www.facebook.com/movimentoculturalermelinomatarazzo/videos/229605758145698/?type=1&theater

    É comum ver crianças e adolescentes empinarem pipa nas ruas de Ermelino Matarazzo. O isolamento social não impede que a atividade feita nas férias escolares de dezembro e junho seja realizada fora de época. Felipe*, 15 anos, e Bruno*, 13 anos, saem de casa todas as tardes com o carretel de linha de cerol em uma mão, cinco ou seis pipas na outra, e o celular com funk alto no bolso do short. Correm pelo asfalto quente e até pulam muro de igreja em busca de pipas “cortados”. Para eles, o divertimento é mais do que uma necessidade.

    Jamaica dirige a TV Móvel em Ermelino Matarazzo | Foto: Reprodução/Facebook

    “Mó tédio ficar em casa, não tem nada para fazer. Quase fico louco porque estou ‘preso’. Mas eu sei que é pro bem nós ficar em casa. Tem vez que a gente sai, tem vez que não. Mas tamo lavando a mão, passando álcool em gel”, diz Felipe, que é completado por Bruno: “Nós já chega da rua e vai tomar banho, coloca o chinelo na água sanitária. Minha mãe nem reclama mais.”

    Trabalhar ou trabalhar

    Jamaica é um entre os milhares de brasileiros que precisam sair de casa para trabalhar durante a pandemia. No entanto, ele relata que as ruas da cidade estão com menos recicláveis, assim como o preço dos materiais está mais baixo. Ele se sente mais encorajado em ficar dentro de casa quando recebe doações de cestas básicas de amigos, por exemplo. Outro obstáculo que ele encontra é no desencontro de informações promovido por Jair Bolsonaro.

    De acordo com ele, o presidente Jair Bolsonaro pode ser culpado pelo afrouxamento do isolamento ao dizer publicamente que a crise do coronavírus não é grave. “A mensagem do presidente traz uma grande irresponsabilidade, apesar de as atitudes dele não me surpreenderem. Talvez, com a gente falando diretamente com as pessoas, elas tenham mais consciência que o caso é sério”, acredita ele. Nos próximos dias, a TV Móvel de Jamaica iniciará um roteiro maior que vai além de Ermelino Matarazzo.

    Adílson, vendedor de bananas, é acompanhado pelo filho Denílson | Foto: Henrique Santiago

    O censo de 2010 da prefeitura aponta que 97% da população de Ermelino trabalha fora do distrito. Ironicamente, a região foi erguida pela família Matarazzo no início do século passado para empregar a população local e adjacências. Adílson Roque Moreira, 52 anos, faz parte dos 3% das pessoas que não precisam ir até outras localidades de São Paulo para trabalhar. Autônomo há 20 anos, o morador da Vila Cisper sustenta sua família de oito filhos com o dinheiro da venda de bananas. Só que a clientela diminuiu desde o início da pandemia.

    Ele puxa seu carrinho com cachos da fruta e, ultimamente, estendeu o horário de trabalho para tentar vender um pouco mais. Equipado com máscara de pano, ele, às vezes, conta com o auxílio do filho Denílson, 20 anos, para dar uma força no deslocamento entre bairros. Na sua visão, a Covid-19 foi trazida de fora, mas quem acaba sendo prejudicado é o pobre.

    “Infelizmente, as necessidades da gente são maiores do que qualquer medo. As contas não param de chegar. Quem mora em uma metrópole como São Paulo tem que trabalhar. E aí você tem que perseverar, ficar até mais tarde na rua. Vamos supor, às vezes, num dia comum, lá pelas 15h, 16h, esse carinho já está quase esvaziando. Agora não. Quando são 18h, 19h, eu ainda estou passando em algum lugar para vender mais”, conta ele, que ainda não tentou se cadastrar para receber o auxílio emergencial de R$ 600 do Governo Federal.

    Fé virtual

    O padre Antônio Luís Marchioni, o padre Ticão, 68 anos, teve de aprender um novo jeito de celebrar a fé depois de 40 anos de batina. Acostumado a reunir 300 fiéis na Igreja São Francisco de Assis, ele agora grava missas ao vivo que são transmitidas no Facebook e depois publicadas no canal da paróquia no YouTube. Ainda que considere a cerimônia a distância uma “experiência fria”, ele compreende que essa aproximação é necessária enquanto bispos neopentecostais insistem na abertura de tempos para cultos.

    Liderança social da comunidade, o pároco também conduz cursos online sobre cannabis medicinal e naturopatia. Falar sobre maconha, especificamente, trouxe a reprovação de grupos conservadores dentro da igreja católica em 2019. Agora, diante da pandemia, as aulas são assistidas por mais de duas mil pessoas no Brasil e no mundo. Para ele, parte da população de Ermelino Matarazzo que ele vê seguir a contramão do isolamento social está ancorada no discurso político conservador. “O conservadorismo em Ermelino não é aberto, de fazer confronto. É um pessoal que eu conheço e discordo, mas dá para dialogar”, afirma.

    Leia também: Enquanto governo não age, iniciativas buscam alimentar afetados pela Covid-19

    Ele também tem usado sua fala para pedir a empresários, políticos e secretários doações de cestas básicas para os moradores. Em um mês, Ticão conseguiu entregar mais de 1.500 caixas com alimentos para famílias necessitadas. As portas da paróquia foram abertas para frequentadores que querem rezar e se informar sobre o coronavírus. Essas ações são bem-vindas, mas ele acredita que a humanidade precisa abrir os olhos para o momento que vivemos.

    “Deus perdoa os homens e as mulheres, mas a natureza não perdoa. Estamos assistindo à destruição do planeta. É uma destruição de uma proporcionalidade que a população de maneira geral, na corrida diária, não percebe. E uma elite assassina quer o lucro a todo custo. Vejo leituras religiosas que dizem que Deus é culpado e que Deus vai resolver. Quem tem que resolver somos nós. É tudo ação humana”, conclui.

    *A reportagem utilizou nome fictício para preservar a identidade da entrevistada que temia represália

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