Em mais um caso, delegado não apreende armas de PMs que mataram jovem na Baixada

Matheus Souza Santos foi morto nesta sexta (22) em Santos (SP). Delegado disse que armas eram instrumento de trabalho e que perícia só indicaria uso. Perito avalia que ação descumpre Código de Processo Penal e pode levar a nulidade de provas

Matheus Souza Santos, 21,anos, morto em ação da policia militar na Baixada Santista | Foto: Arquivo pessoal

Matheus Souza Santos, 21 anos, foi morto na madrugada de sexta-feira (23/3) na comunidade do Saboó, em Santos, em meio à Operação Verão na Baixada Santista. Ao ser ferido, ele teria gritado: “Eu não sou da boca. Eu não sou bandido”. Os tiros contra o jovem foram disparados por dois policiais militares, Sidnei Marques da Silva e Danilo Rocha Mendes, que atiraram com fuzil e pistola, respectivamente. A apreensão dos armamentos foi dispensada pelo delegado que registrou o caso. Perito ouvido pela Ponte diz que a ação descumpre o Código de Processo Penal (CPP) e pode levar à nulidade de prova. Ouvidoria das Polícias promete apuração.

O delegado Luiz Fernando D. G. S. Salvador, do 5º DP, em Santos, determinou a apreensão da arma supostamente encontrada com Matheus. “O mesmo não aconteceu com a dos policiais militares, uma vez que se trata de instrumento fundamental ao trabalho diário e também seria apenas constatado que foram utilizadas recentemente, o que foi admitido por eles, mas foram devidamente identificadas acima, caso seja necessária alguma providência”, escreveu no boletim de ocorrência. 

A situação é “um pouco descabida”, diz Willy Hauffe, presidente da Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais (APCF). A apreensão das armas, explica, faz parte do exame de corpo de delito porque as armas foram apresentadas pelos policiais.

Os armamentos poderiam ser submetidos a exames de confronto balístico, por exemplo. Assim, seria possível, em conjunto com outras perícias, como exame microbalístico dos estojos (componentes dos cartuchos) e dos projéteis encontrados no corpo, chegar à comprovação da materialidade, ou seja, atestar que as armas dos PMs foram usadas para matar Matheus.

“Uma vez não apreendidas, podem até mesmo quebrar uma ‘cadeia de custódia’ da prova e dos vestígios”, diz Hauffe. Isso pode ser um motivo de nulidade, já que os exames não poderão ser feitos posteriormente. 

O não recolhimento das armas fere o que diz o artigo 158 do Código de Processo Penal (CPP). O texto, que trata de maneira geral sobre perícias, determina que o agente público tem a obrigação de preservar os vestígios relacionados a uma possível infração penal.

“A prova pericial não é só uma premissa legal, ela é um direito ao cidadão. É feita uma análise ali, com rigor e método científico, para analisar todas as circunstâncias”, defende o perito.

Hauffe fala ainda que a apreensão das armas não impediria o trabalho dos policiais. “Essa justificativa que vai ser usada no dia a dia não existe. Ainda mais em São Paulo, um estado que tem capacidade econômica e financeira diferenciada dos demais estados. Essa arma pode ser substituída a qualquer tempo”, diz. 

Para o Ouvidor das Polícias, Cláudio Silva, a atitude do delegado é grave. “Nós estamos avançando para uma quebra do Estado Democrático de Direito, em que os protocolos, as normas, as legislações não são seguidas nem cumpridas por quem deveria zelar para que elas fossem efetivamente cumpridas”, diz. 

A situação, diz Claudinho, coaduna com uma série de questões que a Ouvidoria tem levantado ao longo da Operação na Baixada Santista. São exemplos: boletins de ocorrência muito parecidos e com pouca informação, com apenas uma versão dos fatos.

Esse é o segundo caso de dispensa da apreensão denunciado pela Ponte. Após matar o pedreiro Alex Macedo de Paiva Almeida, 30 anos, na casa onde ele vivia também no Saboó, em Santos, em 20 de fevereiro, o sargento Júlio César Teixeira e o cabo Everton Kelvin Soares Damasceno foram dispensados de entregar as suas armas pelo delegado Leonardo José F. Piccirillo, que também atua no 5º DP.

Na decisão, o delegado permitiu que a dupla de policiais militares permanecesse com as armas utilizadas na ação, alegando que ambos apresentaram “versões incontroversas” sobre o caso e que os PMs necessitavam do armamento para o seu dia a dia.

“A Polícia Militar tem uma narrativa, a Polícia Civil a mesma narrativa e assim vai se sucedendo. Aparenta ser uma narrativa um pouco combinada, uma coisa meio organizada para poder efetivamente ludibriar o conteúdo probatório ou a autoridade que verificará o conteúdo probatório e dar consequência a ele”, afirma o ouvidor.

A Ouvidoria instaurará procedimento para apurar o caso. A Corregedoria também será provocada pelo órgão para apurar a conduta do delegado, assim como o Ministério Público do Estado de São Paulo, promete Silva. “Isso não pode virar um marco corriqueiro.”

Morto em viela

A família de Matheus diz que o jovem foi encurralado na viela onde foi morto. Um parente, que conversou com a Ponte em condição de anonimato, afirma que o jovem levou sete tiros — concentrados na região do abdômen, virilha e no braço. Para o familiar, Matheus estava “no lugar errado, na hora errada”. 

Era comum, segundo essa pessoa, que o jovem ficasse na rua de madrugada. “É coisa de comunidade. Eles ficam de madrugada na rua mesmo”, comenta. Ela diz que Matheus nasceu e cresceu no Saboó. No ano passado, ele concluiu o Ensino Médio e atualmente trabalhava fazendo bicos como segurança ou em bufês.

Na versão dos policiais militares Sidnei Marques da Silva e Danilo Rocha Mendes, relatada no BO, Matheus estava no local traficando e atirou contra eles. A família nega. “Tudo isso é mentira. O Matheus não sabia nem manusear uma arma, não sabia nem pegar, não tinha contato nenhum”, diz.

Os agentes contaram que o deslocamento até a comunidade foi motivado por uma denúncia anônima. Ao chegarem ao local, ouviram vozes masculinas e, apesar de declararem que a falta de iluminação não permitiu que enxergassem os rostos ou vestes, contaram que três pessoas estavam ali. Dois deles portando armas, segundo os PMs, e um deles teria apontado uma arma ao perceber a aproximação dos policiais, que reagiram atirando.

Matheus foi atingido e os outros dois fugiram, segundo o relatado pelos policiais no BO. O Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) levou Matheus até a Santa Casa, onde a morte foi confirmada.

Os PMs disseram ter encontrado ao lado do corpo ferido de Matheus uma arma, mochila, dinheiro, drogas e um rádio comunicador. Contudo, no BO, é atribuída ao jovem apenas a posse de R$ 939 e do revólver calibre 357 com cartuchos.

Ainda naquela madrugada, um jovem deu entrada ferido com um tiro na perna em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), em Santos. Após receber alta hospitalar, foi encaminhado ao 5º DP do município, onde contou traficar drogas no local. Ele afirmou que Matheus o acompanhava e, quando a polícia chegou, houve confronto com Matheus, mas que conseguiu fugir mesmo ferido.

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Um vídeo mostra o local em que Matheus foi morto pelos agentes. Nas imagens, é possível ver o chão ensanguentado. A pessoa que filma diz “eles jogaram água”. Segundo os familiares, os policiais teriam lavado o local após o crime. 

Após os tiros cessarem, uma testemunha teria ido até próximo dos policiais e questionado o que aconteceu. Matheus teria falado com ela e dito que estava baleado. “Eu não estou aguentando”, teria dito o jovem.

O que dizem as autoridades 

A Ponte procurou a SSP-SP e solicitou entrevistas com um porta-voz da pasta, com o delegado e os policiais militares envolvidos na ação. Também foi questionada a abordagem, o procedimento adotado pelo delegado e a possível lavagem do local do crime registrada no vídeo.

Por meio de nota, a SSP-SP respondeu que as circunstâncias do caso são apuradas. “Todas as circunstâncias relativas ao caso são rigorosamente investigadas pelas polícias Civil e Militar, com o acompanhamento das respectivas corregedorias, do Ministério Público e do Poder Judiciário. Na ocasião, os policiais intervieram após um suspeito apontar uma arma na direção dos agentes. O homem foi socorrido, mas não resistiu. Com ele foram apreendidos um revólver, rádios comunicadores, 610 porções de drogas e R$ 939 em espécie”, diz o texto. 

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