Agrupamentos de segurança informais, que reúnem de lutadores de artes marciais a policiais de folga contratados irregularmente, são ‘terreno fértil para o surgimento de milícias’
O desastre climático que atingiu o Rio Grande do Sul, deixando mais de 140 mortos e 538 mil desalojados, dos quais 80 mil instalados em abrigos, tem levado moradores a se organizarem por conta própria em grupos armados, alguns com a presença de policiais de folga contratados irregularmente, com o objetivo declarado de combater “vagabundos”. Para especialistas ouvidos pela Ponte, a iniciativa é “um terreno fértil para o surgimento de milícias”.
Um policial, que terá a identidade preservada por uma questão de segurança, contou à reportagem que colegas da Polícia Civil e Militar têm recebido entre R$30 e R$40 por hora para fazer “bicos”, em seus horários de folga, cuidando da segurança de ruas, condomínios e comércios desocupados por conta das chuvas. As vagas circulam em grupos de policiais no WhatsApp. “Os colegas avisam no grupo que tem alguém oferecendo dinheiro pela vigilância. E daí faz o recrutamento”, explica.
Mas não são apenas policiais contratados irregularmente que têm feito a segurança nas regiões alagadas. Em vários bairros da cidade e também da região metropolitana de Porto Alegre, há relatos de grupos formados por civis para defender residências e comércios de criminosos que agem embarcados. A reportagem teve acesso a fotos e vídeos gravados num desses locais, na zona norte da capital.
Nas imagens, a enchente e a falta de luz transformam a paisagem num imenso e silencioso breu e impedem o funcionamento de qualquer sistema de segurança. Para evitar a aproximação de criminosos, na entrada de um dos condomínios, um homem vestido com roupa camuflada de inspiração militar vigia, de cima da carroceria de uma caminhonete, a entrada do prédio. Com os faróis do carro ligados e uma arma de cano longo, tenta intimidar qualquer aproximação. Outro homem, esse sem fardamento, o acompanha em rondas na vizinhança com um revólver em punho.
Em outro condomínio, formado por 16 prédios no bairro Humaitá, próximo à Arena do Grêmio, apenas dez dos mais de mil moradores continuavam até o último sábado (11/5) no local, alagado e sem luz. Ali também um grupo de moradores se mobilizou para evitar a aproximação de saqueadores. Um morador, que pediu para não ser identificado, relatou à Ponte que as imediações passaram a receber o movimento constante de barcos de criminosos durante a noite, depois que os socorristas cessam os resgates na região.
“Eles passam de meia em meia hora gritando: ‘Vocês não vão sair? Vão embora!’. Se o pessoal for embora, eles invadem e levam tudo”, afirma. No escuro, com medo e sem conseguir dormir, o morador conta que viu embarcações carregadas de eletrodomésticos, engradados de bebidas e outros produtos, possivelmente resultados de furto de prédios e comércios abandonados devido às enchentes. A segurança do condomínio é feita por dez vizinhos e “um pessoal lá contratado”, segundo ele. Mas o morador disse que não está autorizado a dar detalhes sobre quem são as pessoas que estão reforçando a vigilância, e se há policiais entre eles.
Saque ou fome?
Um vídeo que circulou nas redes sociais, no início de maio, flagra o que parece ser um saque realizado no Hipermercado Atacadão, na avenida Assis Brasil, tomado pela enchente. Com água pela cintura, um homem sai do estabelecimento carregando uma mochila nas costas. Ele é abordado aos gritos por um homem com identificação de policial civil, que está em um barco.
O policial tem uma arma de cano longo em uma das mãos e berra para o homem que se aproxima lentamente caminhando na água barrenta: ”Larga essa mochila aqui, velho filho da puta. Tá no caos e tá assaltando o bagulho? Desgraçado!”. Neste momento, o policial atira em direção ao homem e acerta a água, a aproximadamente meio metro do corpo dele. Enquanto o policial segue gritando, dá para ouvir outra voz que aconselha: “Calma, cara. Calma, calma! Menos!”. E assim a gravação acaba.
Em outro vídeo, revelado pelo Jornal Razão, um policial civil aparece já do lado de dentro do supermercado vazio. Na gravação, o homem carrega um fuzil numa posição que parece pronto para atirar, faz uma verificação corredor a corredor e afirma que o local foi saqueado. Nos dois vídeos, não fica claro se o policial estava no horário de serviço ou de folga.
Procurado pela Ponte, o deputado estadual Leonel Radde (PT), que é escrivão da Polícia Civil, criticou veemente o comportamento do policial que atirou em direção ao saqueador. Para Radde, faltou sensibilidade ao policial para avaliar o contexto de dificuldade, inclusive de acesso aos alimentos, enfrentado por parte da população devido às enchentes. Ele interpreta o caso como furto famélico (praticado por uma pessoa sem recursos com o objetivo de saciar a fome).
“Nas atuais condições, dentro de um hipermercado, que tem seguro nas suas cargas, e com produtos que já estão perdidos por conta dos alagamentos, é super compreensível que, numa situação de necessidade, as pessoas possam acessar os alimentos”, defende.
“Não somos justiceiros”
Até domingo (12/5), havia cerca de 15 mil desalojados das enchentes vivendo em abrigos montados pela prefeitura de Porto Alegre em prédios, ginásios e escolas. São adultos, crianças e animais domésticos que vivem temporariamente nesses locais enquanto as águas não baixam. Com o objetivo declarado de garantir a segurança desses abrigos, lutadores de artes marciais e outras pessoas resolveram criar agrupamentos de segurança informais.
O empresário e lutador de jiu-jitsu Deivison Vieira, 39 anos, conta que decidiu agir após tomar conhecimento de notícias sobre violências nos abrigos. Ele iniciou uma mobilização convidando lutadores do seu círculo de relações para reforçar a segurança desses locais. Ele não imaginava que o alcance da iniciativa fosse tão grande e o retorno, tão imediato. Afirma que, hoje, tem um grupo de Whatsapp com aproximadamente 300 candidatos a “vigilantes voluntários”. Ele pede um cadastro dos interessados, com documento de identificação e endereço, e monta uma escala de trabalho.
O lutador garante que a demanda por segurança vem das lideranças de cada abrigo. Na noite de sexta-feira (10/5), os voluntários fizeram segurança em quatro locais durante toda a madrugada. Ele considerou o trabalho tranquilo. “O propósito é manter a ordem, evitar abusos, garantir que pessoas estranhas não entrem e chamar a polícia caso haja a necessidade. É um serviço de vigilância para aqueles que estão mais vulneráveis no momento. Não somos e não queremos ser confundidos com justiceiros”, salienta.
Na semana passada, quatro homens foram presos acusados de abusos sexuais dentro dos abrigos de Porto Alegre. Dificilmente os grupamentos de lutadores teriam sido capazes de evitar esses crimes, contudo, já que foram todos cometidos pelos próprios familiares das vítimas, que já praticavam os abusos antes de serem levados aos abrigos, conforme a delegada Adriana da Costa declarou ao Uol.
Maurício Telles, que também está à frente da mobilização do grupo de lutadores, diz que ele e os colegas já fazem a vigilância em mais de 15 abrigos e que o objetivo é “trazer mais conforto e segurança principalmente para mulheres e crianças, sabendo que tem alguém ali acordando durante a noite observando tudo”.
Ele usou as redes sociais para convidar outros lutadores para a iniciativa. “Pessoal do muai thay, lutador, pessoal que quiser fazer segurança nos abrigos e pegar esses vagabundos que estão pegando o pessoal que tão sem nada e abusando de mulher e de criança. Então, lutador, manda mensagem pra mim aí”, afirmou numa postagem. Quando perguntado sobre o tom da mensagem, se não poderia permitir um entendimento errado daquilo que pretendiam, disse: “usei o meu marketing para atrair o pessoal que vai fazer segurança”. E não quis mais falar sobre o assunto.
Para o tenente-coronel da reserva da Polícia Militar Dagoberto Albuquerque da Costa, um dos fundadores do Movimento dos Policiais Antirracistas, os grupos podem até ter boas intenções, mas o perigo está na falta de preparo, técnica e controle para intervir em situações de risco. Além disso, Dagoberto demonstrou preocupação com o crescimento desses grupos num cenário de muitas demandas para as forças policiais. “Estamos num terreno fértil para o surgimento de milícias, de grupos minimamente organizados e armados que cobram por segurança”, diz.
A reportagem conversou com a professora de direito penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Vanessa Chiari. Ela fez questão de ponderar que o estado vive uma situação de calamidade, na qual a análise precisa considerar e contexto e, por isso, fica mais complexa.
Ela relata, por exemplo, ter feito um atendimento jurídico na semana passada a um homem trans que foi vítima de violência em um abrigo no bairro do Sarandi, na zona norte da capital. Segundo ela, um grupo que aparentemente era formado por lutadores de artes marciais agrediu a vítima pelo fato dela estar vestindo uma camiseta com o símbolo do Partido dos Trabalhadores. “A justificativa dos agressores é que o voluntário se aproveitou da situação para fazer política. E daí cerca de trinta pessoas foram para cima dele. Dá pra imaginar o que fariam com alguém acusado de um crime, por exemplo”, questiona.
Sobre os grupos de civis armados que fazem a segurança de ruas, condomínios e comércios, a professora diz que seria preciso uma análise mais detalhada para identificar se há crime de porte ilegal –pelo fato de envolver um armamento longo e estar fora de casa – e também de associação criminosa – o que exigiria o conhecimento sobre os envolvidos e a sua relação com os moradores.
Por fim, no que diz respeito ao trabalho desempenhado pelos policiais fora do horário de serviço, ela explica que se trata de ato ilegal passível de sanção administrativa, mas não constitui um delito. Porém, salienta que já há um projeto de lei que objetiva legalizar a conduta para que não seja passível nem mesmo de sanção administrativa.
O que dizem as autoridades
A Prefeitura de Porto Alegre informou que 103 dos 163 abrigos emergenciais contam com segurança privada, 19 deles com suporte 24 horas por dia. Outras 84 unidades têm vigilância profissional das 19h até às 7h. A intenção é ampliar o serviço a todos os espaços nos próximos dias. Vinte desses locais, aqueles com maior número de abrigados, contarão ainda com videomonitoramento, dos quais 7 já tiveram as câmeras instaladas. Falta ainda a conexão com o Centro Integrado de Comando (Ceic), ponto de gestão da crise pelo poder público. A sede anterior foi invadida pelas águas no dia 7 de maio.
A Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul informa que cancelou férias dos servidores e colocou na rua até aqueles que desempenhavam funções administrativas. Assim, está com 100% do efetivo de policiais militares, civis e bombeiros em operação. Além disso, está chamando mil policiais da reserva para o policiamento exclusivo dos abrigos que acolhem desalojados. Ainda há o reforço de policiais dos estados de Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. A Força Nacional de Segurança também dá apoio às operações de salvamento e de policiamento nas ruas. Em Porto Alegre, os abrigos de responsabilidade da Prefeitura também contam com segurança de uma empresa privada de vigilância.
Sobre os grupos armados organizados para evitar saques, o chefe da Polícia Civil do Rio Grande do Sul, delegado Fernando Sodré, diz que as forças policiais tem feito patrulhamento em áreas secas e também nas alagadas e, até agora, não foi registrada nenhuma atividade ilegal. “Tem uma parte disso que é legítimo, que é a pessoa cuidar do seu patrimônio, e tem outra parte que a gente tem que ver até que ponto isso pode ser organizado de forma legal. O problema é quando parte para a cobrança ou para organização de grupos paramilitares, fora de casa, sem porte. Não podemos criminalizar uma situação que acontece por necessidade de defender o próprio patrimônio”
Depois de assistir ao vídeo no qual um policial civil aparece disparando na direção de uma pessoa desarmada dentro da água, o Chefe de Polícia disse que vai pedir uma apuração preliminar sobre a autoria e as circunstâncias, embora tenha, de pronto, encontrado uma justificativa para a ação: “Eu acho que o policial quis dar um tiro de advertência e pode ser que tenha errado e dado um tiro meio perto do sujeito. Mas o objetivo dele era evitar o crime que estava acontecendo”. Mesmo não havendo resistência nenhuma do homem à abordagem, pergunto. “Acho que deve ter sido uma avaliação meio equivocada. A gente vai ter que olhar agora e ouvir o rapaz [policial] para ver quais são as razões dele”, explica.
Sobre o vídeo no qual um homem aparece fazendo a segurança de um condomínio com um armamento longo, Sodré explica que vai pedir à inteligência uma análise da gravação para, então, decidir o que fazer. “Aquela arma parece fake. Tá muito escuro, tá editado, não sei se é crível. Fica difícil dar uma posição, mas nós vamos apurar”, diz.