Das 11 pessoas que conversaram com a Ponte neste domingo, apenas um haitiano aceitou ir para um Centro Temporário de Acolhimento, mas teve de deixar seu colchão para trás; três pessoas morreram durante a onda de frio na cidade
O céu de inverno com raras nuvens e algumas estrelas aparentes sinalizam que a noite será outra vez das mais geladas em São Paulo. Enquanto alguns moradores de rua tomam goles de alguma bebida alcoólica para se esquentar, outros preferem se empacotar em cobertores e dormir.
As reações são vistas durante uma das ações da Prefeitura para combater o sofrimento causado pelo frio batizada de “Baixas Temperaturas”. Os trabalhos servem para um atendimento primário de acolhimento e abordagem sem problemas, mas é nos albergues, chamados de CTAs (Centro Temporário de Acolhimento), que o poder público esbarra no trato com a população vulnerável.
A reportagem da Ponte seguiu por quatro horas uma equipe da assistência social da Prefeitura de São Paulo que prestava atendimento na região do Ipiranga, na zona sul, na noite de domingo (7/7). O encontro se deu aleatoriamente, no momento em que a equipe de reportagem passava pela avenida Bosque da Saúde com a avenida do Cursino. No total, foram 11 abordagens com apenas uma pessoa em situação de rua encaminhada por vontade própria ao CTA Tancredo Neves, localizado no bairro do Sacomã.
Os atendimentos acontecem em um momento delicado. Desde sexta-feira (5/7), três moradores em situação de rua morreram nos bairros da Barra Funda, zona oeste, Canindé, área central, e Itaquera, zona leste. Os casos estão sendo investigados e há suspeita de que tenham acontecido em decorrência do frio, já que não havia em seus corpos marcas aparentes de violência. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, 5 pessoas morreram por causa do frio nas ruas paulistas, sendo quatro homens e uma mulher.
O povo de rua recua quando o assunto é levado para eles. Afinal, falam de um irmão que vive as mesmas dificuldades que eles e que se foi. Raros dão uma resposta mínima sobre o assunto. “O período é complicado, o frio assusta”, diz um deles. Os demais, nem isso. Preferem se calar, em um silêncio que diz muito mais do que palavras.
As acolhidas
Por volta das 22h, quando o termômetro marcava 10°C, a equipe da Prefeitura recebeu um chamado via 156 para a atendimento na rua Filipe Cardoso, no Jardim da Saúde. A mensagem na tela do celular dava conta de um homem dormindo na lateral da Escola Estadual Rubens do Amaral. De longe, para não atrapalhar o serviço do assistente social, a reportagem acompanhou a abordagem. Acordado com palmas, após alguns minutos de conversa, o homem aceitou ser encaminhado ao abrigo.
Ele é Guerrier Calixon, 22 anos, e está no Brasil há um ano, após chegar do Haiti, país que vive com graves problemas sociais. O jovem entende poucas palavras em português, mas compreende quando é ofertado para dormir num local quente, sob um teto, ao menos por uma noite.
O assistente social é paciente. Ajuda o haitiano a entrar na Kombi com alguns de seus pertences. Simples, o jovem estrangeiro pergunta se pode levar seu colchão. Quando é respondido que lá teria um para ele dormir, o deixa para trás, sem saber quando conseguirá outro, caso não obtenha uma vaga no centro nos próximos dias.
Em poucos minutos a Kombi chega à frente do CTA Tancredo Neves. Se a abordagem para o tirar das ruas é eficiente, é na entrada do albergue que os problemas começam. No portão, Guerrier é recebido por um funcionário que explica as regras de funcionamento do local. Mas não há assistentes sociais de plantão que o possam receber e transmitir informações importantes sobre como obter um documento ou como procurar um trabalho.
Como terá que deixar o centro impreterivelmente até 8h, antes do início da chegada de uma técnica, o haitiano terá que retornar ao local pela manhã ou tarde para conseguir ser atendido. “Vim para trabalhar. O que tem em São Paulo falta no Haiti”, diz, ao passar pelo portão para se juntar a outros moradores de rua que ali estão em busca de um banho quente, um prato de comida e uma cama.
O padre Julio Lancellotti, que integra a Pastoral do Povo de Rua, acompanha diariamente a saga de moradores em situação de rua e, por conta disso, é alvo de perseguições e ameaças. O religioso explica que a falta de funcionários nos Centros já é de seu conhecimento. “A noite não há mesmo, e no ferido prolongado, também não”, destaca.
A ronda pelo bairro não para. Aproximadamente 50 metros separam André Nunes de Brito de seu refúgio, sob a marquise de uma mecânica na Avenida Presidente Tancredo Neves, e o acolhimento no CTA. Mesmo querendo se aquecer no local, Brito não pode. Está classificado como “restrito” na unidade. Segundo contou à Ponte, uma confusão com um conhecido seu dentro do local o custou a punição de não poder mais frequentar o centro por um período. “Já até me entendi com o outro rapaz. Nos conhecemos. Me acertei com ele já. Quero ver como faço para voltar para o CTA”, explica André.
Quando se está restrito em um determinado local, a Prefeitura dá a opção para a pessoa procurar um outro abrigo. No entanto, muitos deles são distantes entre si. No caso de Brito, os outros CTAs na região seriam o Vila Mariana, cerca de cinco quilômetros do CTA Tancredo Neves ou o Jabaquara, ainda mais longe: a sete quilômetros.
As recusas
Os chamados via telefone 156 pipocam conforme a madrugada se aproxima. Por vezes a Kombi necessita voltar para um ponto que já havia passado já que pedestres ou moradores dos bairros avistaram a chegada de novas pessoas em situação de rua.
Na Avenida do Cursino, próximo a Nippon, uma famosa loja na região, três jovens conversam sobre a marquise do banco Itaú. De pronto agradecem ao funcionário da assistência social, mas recusam a carona até o centro de acolhida. Articulado, Welington Melo, 32 anos, montador de palco em eventos, conta inclusive já ter participado de um programa de televisão. Afirma ter feito cursos nas áreas de filosofia, física e fotografia, e que por “condições alheias está na rua”.
Ele narra que sua recusa em ir para o albergue na data (afirmou frequentar um CTA diariamente) é para curtir a noite com a namorada e um amigo, mas que para as outras pessoas na mesma situação que a sua falta muita informação. “Eu trabalhei a semana inteira. Juntei dinheiro, quero curtir também. Na porta dos albergues falta informação. Eu não sei a hora que eu entro e a hora que eu saio, o que eu posso levar… A falta desse tipo de informação é uma falha. Sem falar que nem todos nós somos alfabetizados. Morador de rua geralmente não tem documento, aí fica mais complicado ainda”, conclui.
De fato, em nenhum dos três CTAs (Tancredo Neves, Vila Mariana e Jabaquara) visitados pela Ponte havia quaisquer informações quanto a horário de funcionamento, regras, lotação máxima de homens ou mulheres, e afins.
A Kombi com um motorista e um assistente social ruma para a Avenida Brigadeiro Jordão, no coração do Ipiranga, zona sul de São Paulo. No local, sob a marquise de um prédio, está mais um homem. Arredio, ele deixa o local assim que uma moradora da região leva a ele um pouco de comida. Não dá atenção para a equipe da Prefeitura e toma rumo incerto, deixando pertences como roupas e uma manta.
Dentro do prédio, a moradora se junta ao porteiro Paulo, que conta que o homem chegou ali há três dias e se limita a pedir comida. “Levei comida porque fico comovida, mas ele deveria aceitar ir para o albergue”, diz Lurdes Cruzeiro. Assim que os veículos da reportagem e da assistência social dão partida no motor, o homem volta para seu abrigo.
Alguns quilômetros dali, na Rua Alencar Araripe, região de Heliópolis, ainda mais ao sul da capital paulista, mais um homem recusa atendimento. Ele alega não querer ir em virtude do trabalho. “Estou bem agasalhado, com cobertor. Amanhã vou fazer serviço de reciclagem pela região”, explica.
Do Ipiranga a reportagem segue para a Vila Mariana. Na avenida Jabaquara, a poucos metros do metrô Saúde, um grupo de 20 moradores em situação de rua reclama da ausência da Prefeitura, enquanto recebem moletons e cobertores que são distribuídos por jovens seguidores de uma igreja evangélica. Afirmam que a Defesa Civil passou pelo local, mas não havia assistência social.
“O problema dos albergues são a falta de vagas para mulheres e a distância. Enquanto para homens são 100 vagas, para nós são 20. E olha que na rua somos as mais vulneráveis”, conta Eva, 33 anos, gestante, que se ajusta no cobertor para mais uma noite fugindo do frio. “Estive no CTA Vila Mariana e tive reação alérgica devido aos percevejos. Tentei novamente ir para lá passar a noite e não tinha vaga. Se a Prefeitura me leva para um lugar muito longe, depois não tenho como voltar”, afirma.
‘Se houver lesão corporal, a PM deverá ser acionada’
Em nota, a assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo explicou que os assistentes trabalham 30 horas por semana das 8h às 22h, sem dizer se algum trabalha no período da madrugada. Sobre a perda de pertences por parte do povo de rua, dizem que os CTAs possuem bagageiros.
“Todo usuário deverá zelar pelos pertences pessoais, pelo material entregue pelo serviço para seu uso e pelos espaços utilizados durante o período de acolhimento no serviço. Manter todos os pertences no bagageiro, não podendo circular com bagagens pelas outras dependências do serviço, salvo em locais onde o serviço possui armários nos quartos”, explica a nota, dizendo que os materiais não recolhidos devem ser retirados em até 10 dias. Caso contrário, as roupas vão para doação e os documentos para a equipe técnica.
Ainda explicou que existe regimento interno que inclui algumas proibições, como a recebida por André. Isso acontece quando a pessoa “Provocar brigas e cometer agressões seja verbal ou física consideradas fora de controle; desenvolver condutas que configurem crime; comercializar drogas lícitas e ilícitas; portar armas brancas e/ou de fogo; e, por fim, destruição do espaço físico e de bens materiais”.
“Se houver lesão corporal em qualquer uma das pessoas presentes no serviço (funcionários e ou usuários) ou se os conflitos que estiverem ocorrendo fugirem do controle e se configurarem em risco para as próprias pessoas envolvidas e as outras que estão no serviço, o que inclui funcionários e/ou outros usuários, a Policia Militar deverá ser acionada e deverá ser registrado boletim de ocorrência na delegacia mais próxima”, explica a pasta.
A secretaria rebate a alegação de uma das pessoas quanto a reação alérgica que sofrera. “Os serviços da rede socioassistencial passam por dedetização, troca de colchões e travesseiro periodicamente, lençóis e fronhas diariamente”, diz, detalhando que as vagas para mulheres são divididas em CA (Centros de Acolhidas) mistos (691), uma república (20), um CA inteiro feminino (30) e oito CAE (Centro de Acolhida Especial) para mulheres (846).
[…] na zona leste de São Paulo, buscam assinaturas em um abaixo-assinado com a intenção de retirar do bairro um CTA (Centro Temporário de Acolhimento), também conhecido como albergue, localizado na rua João Soares, 81, na Água Rasa. O aparelho é voltado aos moradores em […]
[…] na zona leste de São Paulo, buscam assinaturas em um abaixo-assinado com a intenção de retirar do bairro um CTA (Centro Temporário de Acolhimento), também conhecido como albergue, localizado na rua João Soares, 81, na Água Rasa. O aparelho é voltado aos moradores em […]