Em Pacaraima, venezuelanos enfrentam falta de estrutura e discursos de ódio

    Cidade fronteiriça em Roraima vive toque de recolher informal e ataques aos imigrantes; para religioso, ‘sentimento de xenofobia’ tem origem na falta de atenção aos miseráveis

    “Fora esses imigrantes aí! Fora, fora… exército traidor da pátria”, gritava um dos motoristas participantes da carreata organizada por moradores da cidade de Pacaraima, na fronteira da Venezuela com o estado brasileiro de Roraima, para fiscalizar se não há imigrantes aglomerados nas ruas para dormir.

    Dias depois da expulsão de cerca de 1.200 venezuelanos que estavam acampados de modo improvisado às margens da BR-174, ocorrida no último sábado (18/8), a pequena cidade de 12.370 habitantes, segundo o IBGE, vive sob tensão e com um toque de recolher informal.

    Cena da carreata que veladamente é responsável por manter os venezuelanos fora de Pacaraima à noite | Foto: Gustavo Basso/Ponte Jornalismo

    “Eu não recomendaria alguém de fora dormir na rua em Pacaraima, a situação está tensa, o pessoal é traíra, [os imigrantes] não são confiáveis” comenta Wendel Silva, que participou da ação do final de semana, que culminou com barracas e objetos pessoas de imigrantes queimados no meio da estrada, após os venezuelanos serem “conduzidos” com paus e pedras até a linha que divide os dois países.

    Vindos de regiões venezuelanas mais distantes da fronteira, onde o acesso à saúde pública, alimentos, vacinas e medicamentos disponíveis no lado brasileiro alivia a crise financeira vivida pelos moradores do país, os expulsos tampouco foram bem recebidos em Santa Elena, única cidade próxima à divisa, só que no lado venezuelano.

    Em áudios divulgados em redes sociais, supostos moradores da cidade venezuelana apoiavam a ação dos brasileiros e afirmavam que aos migrantes tampouco seria permitido se instalar em Santa Elena de Uirén.

    Venezuelanos cambistas se espalham pelas ruas e estradas entre Pacaraima e Santa Elena, vendendo bolivares e a nova moeda bolivar soberano | Foto: Gustavo Basso/Ponte Jornalismo

    “O governo venezuelano disponibilizou ônibus para o pessoal que estava fugindo, mas logo percebi que não levavam para Santa Elena, mas para longe, para depois do km 90 da rodovia ou mesmo para suas cidades”, afirma o ambulante Juan Oliveira, que saiu há cinco meses de Maturin, a 780 km da fronteira brasileira.

    Muitos venezuelanos que moram e trabalham na cidade relatam medo de serem agredidos, sobretudo no período da noite, e pensam em voltar à Venezuela. “Chegaram a bater na porta da casa que eu alugo aqui, tentaram derrubar a porta”, afirma Richard Nogueira, ambulante que trabalhava fazendo chamadas para Venezuela. Nesta quinta-feira (23/8), Nogueira tomou um ônibus de volta a Valência, a 1.400 km da fronteira, para levar de volta seus dois filhos. “Me dá muito medo ficar com eles aqui depois. Um conterrâneo até me disse que prefere morrer de fome na Venezuela à ser morto ou humilhado aqui”, diz.

    “Xenofobia invertida”

    Os participantes das rondas e da expulsão dos imigrantes defendem as ações – da primeira expulsão ocorrida no sábado, bem como das constantes patrulhas nas noites e madrugadas que tem como objetivo impedir a permanência ou mesmo a chegada de novos venezuelanos. “Nós precisamos defender nossa cidade”, afirma o professor Fernando de Abreu, um dos organizadores da patrulha. Ele garante que não são xenófobos, mas sim vítimas de xenofobia invertida, e que dos 1.200 venezuelanos expulsos, 70% seriam criminosos, inclusive aqueles com filhos pequenos. “Eles usam as crianças para se beneficiarem, fazendo elas pedirem dinheiro; a legislação brasileira é contra o povo brasileiro ao não exigir vacinação e antecedentes criminais”.

    Fronteira seca: Pacaraima e Santa Elena quase não controlam a entrada e saída de turistas e imigrantes, o que é criticado pelos brasileiros que protestam contra o que chamam de fraca atuação do Estado | Foto: Gustavo Basso/Ponte Jornalismo

    A autônoma Jacilene Silva defende a ação da qual participou: “Nós estamos vivendo uma guerra, e no meio da guerra não morre só gente ruim, morre os bons também. Não podemos sair pra trabalhar, deixar a casa sozinha porque pode ser arrombada, não podemos sair pra correr porque somos atacados. Tudo isso acontece. Ao menos agora o governo federal, que nos deixou abandonado, está prestando atenção”, afirma.

    Nesta quinta-feira (23/8), uma nova onda de fake news divulgada em redes de mensagens de moradores atribuía a venezuelanos o arrombamento de um mercado na região central da cidade. Fernando de Abreu afirma que câmeras e vigilância mostram que imigrantes seriam os autores.

    Falta de estrutura

    Brasileiros e venezuelanos se queixam da falta de estrutura na cidade fronteiriça. Enquanto na capital Boa Vista a Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados) mantém 10 abrigos para venezuelanos recém-chegados, não há em Pacaraima nenhum local de refúgio. O único abrigo mantido na cidade é exclusivo para os indígenas da etnia Warao e guardado por militares brasileiros – os que eram xingados pelo motorista que abre esta reportagem.

    O auxílio se resume ao café da manhã servido pela paróquia da cidade, que antes da expulsão do último sábado chegou a servir 1.600 refeições. “Ao longo dos últimos dias, o fluxo de pessoas tem voltado; esta manhã já foram mais de mil cafés, o que mostra que a força da fome venceu a força do medo”, comenta o pároco de Pacaraima, o espanhol Jesus Bobadilla.

    Para ele, as instituições e o os governos municipal, estadual e federal e mesmo a Igreja Católica são responsáveis pelo “sentimento de xenofobia” crescente na população de Pacaraima, que teria sua origem na falta de atenção aos miseráveis brasileiros, enquanto os imigrantes recebiam cuidados. “Foi um pecado não termos prestado atenção a isso, pois acabou gerando uma insatisfação, e o povo estava farto; com isso, qualquer motivo virou desculpa para a explosão desse vulcão”, comenta.

    Operação Acolhida, comandada pelo Exército, é responsável por fornecer documentação e vacinas aos venezuelanos e ainda não retomou o fluxo normal de imigrantes atendidos após as agressões | Foto: Gustavo Basso/Ponte Jornalismo

    Moradores se queixam da falta de segurança e limpeza urbana depois da chegada em massa dos imigrantes. “A maioria das pessoas que a gente botou pra correr mesmo eram bandidos, porque engenheiro, advogado, juiz, eles mandam para Rio, São Paulo, Curitiba, e as pessoas sem emprego eles deixam aqui”, diz um adepto do movimento de expulsão do final de semana passado.

    As redes sociais têm tido papel importante no estopim da agressão do último sábado. Foi através dela que moradores, durante um protesto, receberam a notícia falsa de que Raimundo Nonato teria morrido no hospital em Boa Vista.

    Nonato foi agredido durante um assalto a sua família realizado na sexta-feira anterior. Recebeu 13 pontos em diferentes ferimentos na cabeça, além de ter R$ 23 mil e 500 dólares roubados, segundo ele, por venezuelanos. A investigação sobre o caso continua em curso.  À reportagem, Nonato afirmou que poderia ter tido um prejuízo maior, já que na mesma tarde entregou R$ 10 mil a um amigo para que comprasse frango em Boa Vista.

    “Não posso culpar todos os venezuelanos por causa de umas laranjas podres; o grande problema é a insegurança. Você viu alguma polícia aqui, quando veio?”, questiona o maranhense que viveu 15 anos na Venezuela, e diz conhecer bem a população do outro lado da fronteira. “Você sai na rua aqui e e não vê uma polícia”, reclama.

    Força nacional está na cidade desde os ataques aos venezuelanos | Foto: Gustavo Basso/Ponte Jornalismo

    Na Venezuela, Nonato viveu em Santa Elena Uiraen, única cidade próxima a Pacaraima em um raio de cerca de 60 km, e com a qual possui uma relação de simbiose. O único posto de gasolina de toda a região fica em Santa Elena, enquanto moradores da cidade venezuelana compram alimentos, artigos de higiene e outros produtos industrializados no comércio de Pacaraima.

    Considerada próspera dentro do panorama venezuelano, Santa Elena também vê com preocupação a imigração. Comerciantes ouvidos pela reportagem comentam que os imigrantes – todos vindos de outras regiões da Venezuela – deveriam ter prazo máximo para permanecer na cidade. Quando ocorreu a expulsão, os venezuelanos, mal vistos em ambos os lados da fronteira, ficaram sem opção além de acampar em abrigos improvisados às margens da estrada que liga os pontos de controle dos dois países.

    Nesta quinta-feira (23/8), o ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, visitou as instalações do Programa Acolhida, tocado pelos militares logo após a divisa Brasil e Venezuela. O espaço, que oferece apoio para vacinação, documentação e regularização dos venezuelanos no país, vem recebendo menos pessoas desde o ataque, segundo oficiais responsáveis pelo espaço.

    Em coletiva, Jungmann afirmou que o país não tem condição de absorver todo o fluxo migratório porque se recupera de uma crise econômica. “O governo federal não tem como impor que um determinado estado assuma um determinado grupo de imigrantes”, disse o ministro. “A economia brasileira está se recuperando, mas você ainda tem dificuldade em nível de emprego, então, não é uma questão fácil”.

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