Detenções por porte de máscara, cabeçada em ciclista e empurrão na imprensa foram algumas das ações da PM no primeiro ato após Doria assinar decreto de restrições em passeatas; parte da tropa estava com rosto coberto e sem o nome
Pelo menos duas pessoas foram detidas durante o terceiro ato contra o aumento da tarifa do transporte público em São Paulo, organizado pelo MPL (Movimento Passe Livre), nesta terça-feira (22/1). Além do reajuste da passagem de R$ 4 para R$ 4,30, militantes criticam o corte de linhas de ônibus, especialmente em regiões periféricas da cidade. A manifestação foi a primeira depois do decreto assinado pelo governador João Doria que impõe uma série de restrições em protestos, considerado por especialistas ouvidos pela Ponte inconstitucional. A Polícia Militar do estado seguiu à risca a lei: a reportagem acompanhou a passeata desde o início e testemunhou abordagens, algumas textualmente embasadas no decreto, além de pelo menos duas supostas agressões.
Mais uma vez, os policiais do Caep (Companhia de Ações Especiais) estavam mascarados e com tarjeta de identificação alfanumérica. Em recente entrevista à Ponte, Camila Marques, coordenadora do Centro de Referência Legal em Liberdade de Expressão e Acesso à Informação da Artigo 19, destacou que a prática, muito comum não apenas em São Paulo com em outros estado, vai contra o que exige a lei. “Existe a obrigação legal que todo o funcionário público exerça suas funções de forma transparente. É inconstitucional e irregular a prática de irem mascarados e sem identidade ou então com aquela identificação alfanumérica incompreensível. E uma incoerência, portanto, proibir a máscara em manifestantes”, pontua.
O ato ainda estava na Praça da Sé, onde foi marcada a concentração, quando o educador físico Gustavo Oliveira foi abordado por policiais militares, que exigiram fazer revista em sua mochila. Dentro dela havia uma máscara, usada para repelir o efeito do gás usado com certa frequência pela PM em manifestações. Por causa disso, ele foi conduzido até uma base móvel da corporação. Esta é uma proibição baseada no referido decreto de Doria. “Falaram que eu precisava vir para assinar um protocolo. Disse que, se fosse assim, eles poderiam ficar com a máscara, mas me levaram ainda assim”, relatou. Os policiais liberaram Oliveira após um tempo.
Um segundo elemento do decreto se fez presente nas conversas entre os representantes do MPL e os policiais mediadores, grupo colocado em ação neste ano para levar as mensagens dos manifestantes ao comando da operação e, então, apresentar o posicionamento do comandante aos manifestantes. O grupo apresentou o trajeto da manifestação para a Avenida Paulista com opções de seguir pela Avenida Brigadeiro Luís Antônio ou pela Avenida 9 de Julho. O mediador argumentou que o caminho deveria estar protocolado com um aviso prévio oficial feito com cinco dias de antecedência. Após impasse, a PM liberou a subida pela Brigadeiro.
“A luta não vai morrer com o decreto do Doria, que é inconstitucional. O governador está com medo pelo povo se revoltar com um aumento de passagem pelo dobro da inflação. Sabemos que o decreto é um risco, dá carta branca para a polícia fazer o que bem entender e segue o intuito de ter uma repressão mais forte. É uma base jurídica para o que já era feito”, argumenta um membro do MPL, em conversa com a Ponte. Antes do decreto, PMs ameaçaram prender pessoas que usavam máscaras anti-gás lacrimogêneo na manifestação do dia 16 de janeiro, na Praça do Ciclista – inclusive, jornalistas foram ameaçados de detenção caso usassem o equipamento de proteção.
No caminho até a esquina da Brigadeiro Luís Antônio com a Paulista, local programado para o encerramento do ato, alguns manifestantes usavam máscaras com o rosto do prefeito Bruno Covas (PSDB), outros cobriam parte do rosto com camisetas e boa parte tinha máscaras tapando a boca com a inscrição “4,30 não”. A marcha teve uma pausa embaixo do viaduto por onde passa a Rua Treze de Maio para a queima de uma catraca, enquanto manifestantes a pulavam. Neste instante, policiais do Olho de Águia, sistema que filma e armazena o rosto de quem participa de atos, focava um a um nos manifestantes, seja com a câmera oficial do Olho ou o celular próprio.
Em 2017, a Ponte revelou a norma sigilosa que autoriza PM a filmar protestos e armazenar informações sobre manifestantes. “Um banco de dados que não seria tão diferente de outros ‘sistemas inteligentes’ criados pela PM, como o Infocrim e o Fotocrim, que também são mencionado na diretriz, não fosse por uma diferença importante. Enquanto Infocrim e Fotocrim reúnem dados dos boletins de ocorrência, o que significa que só constam ali os dados de pessoas que de alguma forma se envolveram em alguma prática apontada como ilegal, o banco de dados do Olho de Águia pode incluir informações de qualquer pessoa, mesmo de quem nunca tenha se envolvido em nenhuma ação criminosa”, aponta a reportagem da época. Menos de um mês depois, a Ponte revelou que, após ato por moradia no centro de SP, duas mulheres tinham sido presas por reconhecimento facial a partir dessas gravações.
Oficialmente, o ato do MPL teve fim com a chegada na Paulista. Foram aproximadamente 30 minutos parados na esquina, conforme acertado na saída da Sé. Coros contra o aumento da passagem, pedindo o fim da Polícia Militar e “chega de tarifa e político babaca” eram entoados para as pessoas que passaram pelo cruzamento e os carros que iam no sentido bairro – a pista em direção à Avenida Consolação estava fechada. Com a demora para a dispersão, houve um tempo de apreensão da tropa: eles não sabiam o que fazer com o ato parado. Tropas do Caep (Companhia de Ações Especiais) se posicionaram para agir, mas a ordem não veio. Minutos depois, um grupo autônomo de manifestantes aproveitou uma brecha deixada para pedestres e furou o bloqueio dos policiais, dando inicio a um “after” do ato em direção ao centro da cidade.
O grupo desceu a Rua Augusta, entrou na Consolação e parou na Praça da República. Antes, de chegar ao destino, uma viatura sozinha da Tropa de Choque passou pelos manifestantes na Consolação e jogou uma bomba. Ninguém se feriu e o ato dissidente seguiu. Ali, as denúncias de violações aumentaram: uma manifestante estava sendo socorrida por outros dois em meio a um círculo feito pelas pessoas, apontando ter sido chutada na barriga por um PM.
Após dispersão do ato contra aumento da tarifa em SP, na Av. Paulista, um grupo seguiu pela Consolação sentido praça da República. Manifestantes afirmam que jovem, que está sendo amparada na foto, teria sofrido uma agressão na barriga por parte da PM. pic.twitter.com/AyHicAGTg2
— Ponte Jornalismo (@pontejornalismo) January 22, 2019
Logo depois, um ciclista virou alvo dos PMs. Ele recebeu uma cabeçada de um policial da Rocam (Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas). “Ele me abordou, ficou me segurando porque queria me deter e me deu uma cabeçada. Abordou porque estava gravando gente sendo detida. Ele não gostou que filmei a cara dele, dizendo ‘olha a repressão’ e vieram par cima de mim, me jogaram da bicicleta e me cercaram no canto da secretaria [sede da Secretaria Estadual da Educação)”, explicou Leon Ruda à Ponte. Ele relatou que estava no ato, mas saiu para buscar a namorada e depois voltou com ela, já de bicicleta. “Tomei um soco no peito e estou com dificuldade para respirar. Puxo o ar e o peito do lado direito dói muito”, conta o ciclista, que estava na Santa Casa de São Paulo recebendo atendimento médico.
Depois, duas pessoas foram detidas pela polícia na República. Uma representante do MPL explicou que uma ativista do grupo está presa no 2ºDP (Bom Retiro). A acusação é porte de máscara, justamente seguindo orientação do decreto do governador. Além dela, um adolescente também está na delegacia acusado de ter jogado objetos na direção de policiais. Até a publicação desta reportagem, não há informações atualizadas se os dois foram liberados ou não. A Ponte flagrou o momento em que a ativista estava na calçada quando um Rocam tentou passar onde ela estava e ela levantou os braços. Pessoas em volta apontaram que ela disse “Não vou sair”. Apesar de não ter feito resistência para a passagem da moto, os policiais a cercaram e levaram par a viatura.
No momento em que a manifestante era levada, membros do MPL questionaram os PMs sobre qual DP ela seria levada, prática comum do movimento. Um policial que fazia o cerco para a imprensa ter dificuldades de registrar a prisão resolveu brincar: “Vai para o 11 (Santo Amaro) ou o 111 (número que não existe). O cordão aumentou a área de restrição com a chegada de homens de escudo do Caep, que empurraram os jornalistas e gritavam “afasta”. Em vários momentos os policiais atuaram desta forma com quem estava próximo de abordagens, como a do ciclista, a do garoto e da ativista.
Um jovem que foi abordado por policiais da Rocam, já na Praça da República, teve supostamente pertences verificados pelos policiais. Na cena, registrada pela reportagem fotográfica da Ponte, o manifestante chora e o policial aponta para o que parece ser um bloco de anotações e um cordão de crachá escrito Cnova. No decreto de Doria, um dos artigos permite que a autoridade policial ligue para “familiares e até o empregador” de alguém detido.
A Ponte procurou a SSP e a PM, através de suas assessorias de imprensa, que responderam, em nota, que a PM agiu para garantir a segurança dos participantes. Na nota, confirmou a informação de que duas pessoas foram detidas: “um adolescente flagrado atirando pedras e garrafas nos policiais e uma jovem utilizando máscara, que mesmo advertida continuou encobrindo o rosto e proferiu ofensas aos agentes”, explica a pasta. “Importante ressaltar que todas abordagens e técnicas policiais utilizadas seguiram
os protocolos internacionais para o controle de multidões. No entanto, a Corregedoria da PM está à disposição para receber denúncias sobre a conduta dos policiais”, conclui.