Negros são principal alvo de prisões por tráfico sem investigação em SP

Minoria na população paulista, negros são 56% dos presos por tráfico em “enquadros” pela polícia e 52% dos detidos a partir de denúncias anônimas. Em prisões que demandam investigação prévia, 63% são brancos. Dados são da pesquisa ‘Liberdade Negra sob Suspeita’ de Iniciativa Negra e Rede Reforma

Presos aglomerados em presídio de Lucélia, no estado de São Paulo, após rebelião, em 2018 | Foto: Ponte Jornalismo

Mesmo sendo minoria no estado de São Paulo, os negros representam a maior parte dos presos e condenados por tráfico de drogas, não porque cometam mais crimes, mas simplesmente porque são os mais abordados pela polícia em ações que dispensam investigação.

Segundo os dados da pesquisa Liberdade Negra Sob Suspeita: Pacto da Guerra às Drogas no Estado de São Paulo, pretos e pardos correspondem a 56% das pessoas detidas por tráfico pela polícia em patrulhamento — ou seja, em “enquadros” — e a 52% daqueles presos pelo mesmo crime a partir de denúncias anônimas. Já no caso de detidos em operações policiais, que demandam investigação prévia e autorização da Justiça por meio de mandados judiciais, 63% são brancos. Isso apesar de as pessoas negras representarem apenas 34,8% da população paulista, segundo dados do Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

O estudo, divulgado nesta quinta-feira (23/11), foi realizado por uma parceria entre Iniciativa Negra por Uma Nova Política Sobre Drogas e Rede Reforma, com apoio do Núcleo Especializado de Situação Carcerária (Nesc) da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. O objetivo foi traçar o perfil dos presos por tráfico de drogas com base na lei 11.343, sancionada no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em 2006.

Os dados da pesquisa desmentem o secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, Guilherme Derrite, que, em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em abril, negou que a polícia faça abordagens baseada na cor da pele e sugeriu que negros são o principal alvo de ações policiais porque cometem mais crimes. “Se, dentro do número de criminosos detidos pela polícia ou que acabam, lamentavelmente, entrando em confronto com a polícia, a maior parte deles pertence a um… não sei se posso falar… determinado grupo, como maneira correta de falar, isso foge da alçada da polícia”, afirmou na época.

A pesquisa analisou os números e as motivações alegadas para o encarceramento em 114 processos judiciais extraídos da base de dados do Tribunal de Justiça de São Paulo. Com base em depoimentos de policiais militares, foi possível traçar quatro principais motivações alegadas: 1) atitude suspeita; 2) pessoa já conhecida dos meios policiais; 3) local da prisão conhecido como ponto de venda de drogas; 4) denúncia anônima.

“Em patrulhamento, avistaram uma pessoa em atitude suspeita num motociclo, vindo a ser abordado e revistado”, relatou um policial militar em depoimento. “Estava em patrulhamento pelo local dos fatos, avistou o indivíduo D. que caminhava pela via que esboçou nervosismo ao avistar a viatura; que seu parceiro SD [soldado] abordou o indivíduo”, disse outro PM sobre uma abordagem. 

A coordenadora da Rede Reforma, Gabriella Arima, explica que a diferença entre os presos nas abordagens ajuda a descortinar um racismo presente na atuação policial. Ela aponta que as operações policiais, que prendem mais brancos, se baseiam em um mínimo de aparato investigativo, o que não ocorre nos patrulhamentos ostensivos. 

“Estamos falando de prisões feitas em sua maioria a partir do patrulhamento preventivo-ostensivo de rotina. Basicamente, os policiais, nesse modelo punitivista e ostensivo que nós temos nas polícias do Brasil, ficam na rua caçando quem prender”, comenta Gabriella. 

Para a pesquisadora, a análise dos depoimentos expõe territórios alvo, com pessoas que também são vistas assim. “Dentro dessa lógica o racismo se sobrepõe e sempre se destaca. Esses patrulhamentos têm como objetivo prender pessoas negras em territórios periféricos e já criminalizados”, afirma. 

O levantamento mostra que 51% dos presos nos processos analisados não tinham antecedentes criminais, e que 71% foram abordados em via pública. 

O levantamento revela que, em muitos casos analisados, após a prisão em via pública houve conclusão da apreensão na casa das pessoas. Para os pesquisadores, há nisso indício de subnotificação nos registros policiais e também descumprimento de decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). O tribunal define que só é permitida a entrada de policiais sem mandado em domicílios em casos em que há situação de flagrante de delito, consentimento do morador ou prestação de socorro, por exemplo. 

Perfil dos presos 

A pesquisa identificou que 54% dos condenados por tráfico de drogas em São Paulo são negros (autodeclarados pretos e pardos) enquanto brancos são 45%.

A maior parte dos presos é jovem: 58% tinham entre 18 e 22 anos no momento da prisão. A maioria tinha renda inferior a um salário mínimo  — apenas 28 recebiam mais do que R$ 1.500. 

Um cruzamento do perfil socioeconômico das pessoas acusadas com base na lei de drogas mostrou que a maioria dos que completaram o ensino médio são brancos (63%), sendo que havia apenas 39% de negros com a mesma escolaridade. 

Guerra às drogas 

Em vigor desde 2006, a lei de drogas se mostrou ineficaz no combate ao tráfico e contribuiu para o encerramento em massa, segundo os autores da pesquisa. Gabriella Arima, da Rede Reforma, chama de “falida” a atual política em vigor e defende que uma nova legislação sobre o tema seja discutida com urgência. 

“Mudar a política de drogas é extremamente fundamental e é urgente que isso aconteça. A política de drogas nunca foi tratada de uma forma racional e lógica no país. Nós fazemos essa crítica na pesquisa, porque seja um governo de esquerda ou direita, a política de drogas sempre foi tratada como uma moeda de troca com outras pautas”, diz.

Suspenso após pedido de vista do ministro André Mendonça, o julgamento sobre descriminalização do porte de drogas é visto como um caminho, segundo Gabriella. A pesquisadora, no entanto, considera problemática a atual posição do STF ser centrada apenas na maconha. 

“Está mais do que na hora de tratarmos a política de drogas pelo viés científico e não através de preconceitos pessoais”, afirma. 

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Gabriella vê como fundamental também a responsabilização de juízes e promotores ao legitimarem violências. Segundo ela, há uma relação entre prisões arbitrárias e condenações que chancelam práticas à margem da lei. 

“É um ciclo vicioso. A polícia comete ilegalidades, abusos, e isso é legitimado pela promotoria e pelos juízes, o que só dá mais força para que as polícias continuem cometendo atos que são contrários à nossa Constituição Federal”, pontua. 

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