Em tempos de coronavírus, população de rua relata aumento da repressão em SP

    Voluntários e moradores denunciam ações ilegais por parte da Guarda Civil Metropolitana e descaso público nas áreas da saúde e assistência social

    Felipa Drumossi, ex-moradora da Cracolândia, afirma que os agentes de segurança estão mais violentos | Foto: reprodução

    “Quem está passeando com o cachorrinho pode, mas morador de rua, nem com cachorrinho”. Em um vídeo publicado em suas redes sociais na tarde de ontem (19/3), o padre Julio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua, denuncia uma ação ilegal da GCM (Guarda Civil Metropolitana), que tentava impedir a presença de um grupo de homens em situação de rua em áreas públicas do Parque da Mooca, bairro da zona leste de São Paulo. 

    Em outro vídeo, do lado de fora de uma UBS (Unidade Básica de Saúde) na mesma região, o padre, que aparece ao lado de um idoso sentado no chão com um prato de comida, afirma: “A Prefeitura deu ordem de que eles não podem ficar aqui e agora mesmo eu estava aqui e a GCM veio e quase passou com a moto em cima dele, pressionando e aterrorizando para que ele saísse daqui.”

    À Ponte, Lancellotti conta que os policiais só interromperam a ação quando ele chegou ao local e questionou os agentes de segurança. “Fui até eles e comecei a fotografar, dizendo para eles ‘vocês não podem fazer isso’. Eu disse que ia colocar nas redes sociais e o inspetor disse pra mim ‘não coloque não, eu só vou conversar com eles’”, relata.

    O padre garante ainda que a ação desta quinta-feira (19/3) não foi um caso isolado e diz temer que a situação, diante da pandemia da COVID-19, só piore com o tempo. “Eles não têm pra onde ir, nem onde ficar. Nos centros de convivência não podem ficar por causa de aglomeração, não podem ficar no parque porque está fechado para eles, não podem vender bala porque não está tendo movimento, não podem pegar papelão porque os depósitos estão fechando. Eu temo muito uma convulsão social”, alerta.

    Segundo relatos de moradores e profissionais voluntários que convivem diariamente com pessoas em situação de rua em São Paulo, as ações policiais registradas por Lancellotti fazem parte da atual rotina de violência e descaso por parte do poder público municipal e estadual contra pessoas sem moradia que vivem em centros urbanos, em tempos de uma epidemia sem precedentes que atinge o país e, principalmente, a capital paulista.

    Morador em situação de rua no centro de SP mostra as feridas provocadas, segundo ele, por bombas lançadas pela GCM | Foto: reprodução

    “Eu tô vendo a polícia muito abusiva, muito mais agressiva”, relata Felipa Drumossi, ex-moradora da região da Luz, no centro de São Paulo, local conhecido pela alta concentração de pessoas em situação de rua e local de venda e consumo de drogas, em um vídeo filmado na semana passada e recebido nesta quinta-feira pela Ponte. Na gravação, ela alerta para o aumento da repressão policial dentro do “fluxo”, como é chamada a concentração de pessoas entre as ruas Helvétia e Dino Bueno, onde há venda e consumo de drogas, e onde ainda vivem alguns de seus amigos.

    “Hoje, eles vieram em comboio, num ônibus da Guarda Municipal, cheio de GCM. Já desceram tacando bomba dentro do fluxo. Eles não estão respeitando moradores, não estão respeitando trabalhadores, não estão respeitando pessoas que trabalham no local, eles não estão nem aí pra nada”, alega Drumossi, na gravação feita no último dia 12 de março.

    Vítimas diretas

    Outros dois vídeos recebidos ontem pela Ponte trazem relatos de homens feridos durante uma das ações policiais realizada na semana passada na mesma região. 

    “Eu fui apenas mais uma das vítimas que tá passando pela opressão dos GCM. Tava conseguindo manguear [pedir] dois marmitex pra mim. Tava com a minha bolsa nas costas, com as minhas roupas, quando fui atingido por uma bomba”, conta uma das vítimas, que aparece no vídeo com feridas expostas pelo corpo. 

    Trabalhador de um hotel na região da Luz, Jailson de Oliveira denuncia, em outro vídeo gravado no mesmo dia, uma abordagem violenta por parte de três guardas civis. “Me pegaram, me arrastaram, me bateram e trincaram a minha costela. Não consigo respirar direito e dói muito. E eles falaram que quem manda aqui é eles.” 

    Jailson de Oliveira afirma ter sido vítima de guardas civis | Foto: reprodução

    Em conversa com a Ponte, Oliveira conta que, após uma semana da agressão, ainda está se medicando todos os dias para amenizar as dores na costela.

    Coronavírus na região

    De acordo com Flávio Falcone, médico psiquiatra formado pela Universidade de São Paulo (USP), que trabalhou nos programas municipais Braços Abertos e Recomeço, e que hoje atua como voluntário na região, há pelo menos seis casos de pessoas suspeitas de contaminação pela COVID-19 vivendo em moradias populares do Complexo Júlio Prestes, também na Luz, em meio a outros casos suspeitos na região.

    Região da Luz onde ficam usuários de crack no centro de SP; aglomeração pode ser risco de proliferação de coronavírus | Foto: Maria Teresa Cruz/Ponte Jornalismo

    Nesse cenário, aponta Falcone, usuários de drogas, moradores e trabalhadores da Cracolândia estão vivendo uma “intensificação da violência”. Segundo ele, que atua na região desde 2012, as ações policiais que envolvem o disparo de bombas de efeito moral para dispersar pessoas nas ruas passaram a ser diárias desde a semana passada. 

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    “Existe uma tentativa de tirar essas pessoas da região e eu acho que o coronavírus está sendo uma justificativa para reprimir mais. Eles estão entrando dentro dos hotéis sem mandado, por exemplo, invadindo o quarto das pessoas sem mandado. E, hoje mesmo, que eu estava visitando um usuário, teve bomba. A resposta está sendo mais uma vez a violência, sempre com a justificativa de que está combatendo o tráfico, mas os traficantes não estão lá. Quem está lá são os usuários”, afirma o médico. 

    Enquanto a prefeitura e o estado de São Paulo investem em ações policiais para apreender drogas e dispersar seus usuários, moradores da região seguem sem a possibilidade de isolamento social e acesso à água, equipamentos de saúde e materiais de higiene para se proteger da nova epidemia. “Eles não têm nem como lavar as mãos. Nos albergues, continuam todos aglomerados, amontoados”, ressalta Falcone.

    O médico relata ainda que a atuação dos agentes de saúde também mudou com o início das suspeitas de pessoas contaminadas convivendo nas ruas da região. “O que os usuários estão me falando é que as equipes estão mais afastadas, que não estão chegando perto deles com medo de contrair o coronavírus. E o que eu ouvi de funcionários da equipe de saúde é que até pra eles está faltando álcool gel”.

    O dever do Estado

    Para Falcone, a população de rua da cidade depende hoje, em grande parte, de ações articuladas por organizações não governamentais que realizam campanhas de redução de danos para usuários de drogas em situação de rua e arrecadações de produtos de higiene. Uma dessas entidades que atuam na capital é o Centro de Convivência É de Lei, que realizará no próximo sábado (21/3) uma ação de prevenção a COVID-19 e distribuição de doações para os que vivem em situação vulnerável. 

    Em nota divulgada ontem, Maria Angélica Comis, coordenadora geral da organização, afirma que “é preciso cobrar do poder público a garantia dos direitos básicos das pessoas em situação de rua, como acesso à água.” Ela ressalta ainda que a ação de sábado busca “sensibilizar a sociedade de que todas as vidas importam e cobrar do poder público uma resposta rápida e eficaz para garantir a saúde dessas pessoas”.  

    A falta de ações públicas para acolher e proteger pessoas em situação de rua em tempos de pandemia, lembra Falcone, não impacta apenas os que se encontram em situação de vulnerabilidade extrema. “Essas pessoas pegam metrô pra pedir dinheiro, elas não vivem só na Cracolândia, elas estão nos faróis, elas usam os transportes públicos. É uma questão de todos, uma vez que eles também podem acelerar o processo de propagação da doença pela falta desses cuidados”, conclui.

    Segundo Rildo Marques de Oliveira, da Comissão de Direitos Humanos da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de SP e coordenador do Balcão de Direitos, que presta orientações e assistências jurídicas gratuitas à população de rua do centro de São Paulo, é preciso que os governos estadual e municipal tomem providências no sentido de “repensar a utilização de alguns equipamentos [públicos] e dobrar efetivamente o apoio da assistência social para essas pessoas [em situação de rua]”.

    “Essa orientação apenas de quarentena parece que é correta, mas parece que [a recomendação do Estado] só está nesse campo. A gente não tem percebido uma ação mais efetiva nas ruas, ou pelo menos não com a envergadura necessária”, comenta o advogado.

    Outro lado

    Questionada a respeito das denúncias e registros das ações policiais nas últimas semanas, a Secretaria Municipal de Segurança Urbana, responsável pela GCM, não se manifestou até a publicação desta reportagem. 

    Já a Secretaria Municipal de Saúde, em nota enviada à Ponte, afirma que “intensificou as abordagens” com orientação aos profissionais das equipes Consultório na Rua e Redenção na Rua, e notifica que, desde sábado (14/3), “todos os eventos agendados da rede socioassistencial foram cancelados e as visitas suspensas”.

    Sobre a falta de estrutura, ações públicas e materiais de higiene para a população e agentes de saúde a nota diz que “os serviços conveniados à pasta estão intensificando os cuidados com a higiene, como lavar bem as mãos com água e sabão, cobrir a boca e o nariz ao tossir e espirrar, evitar tocar os olhos, e orientações de não compartilharem objetos de uso pessoal”, sem mencionar a compra e distribuição de produtos ou a facilitação de acesso a abrigos e água limpa para moradores da região. 

    A SMS garante que ao identificar um caso suspeito, é realizada uma pesquisa de onde a pessoa em situação de rua dorme e circula para possíveis novos suspeitos, e “o doente é encaminhado à unidade de saúde para atendimento e diagnóstico.”

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    […] Além disso, durante a quarentena (entre março e maio de 2020), três em cada dez mortes no estado foram praticadas pela PM, ou seja, estima-se que a polícia tenha matado uma pessoa a cada 6 horas no estado. No período, a PM paulista matou 262 pessoas, nos registros definidos como “morte em decorrência de intervenção policial”, enquanto os homicídios dolosos comuns fizeram 774 vítimas. A mesma violência foi relatada pela população em situação de rua. […]

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