Nicolas Silva, 19, foi baleado por policial de folga enquanto participava de um roubo em uma avenida movimentada na capital paulista, em abril; pessoas filmam rapaz se contorcendo no chão sob gritos de “raça do caralho”
Nicolas Gualberto Silva, 19, está caído no chão da Avenida Salim Farah Maluf, no bairro do Tatuapé, na zona leste da capital paulista. Enquanto se contorce após ter recebido quatro disparos por um policial militar, testemunhas o registram. Em dois vídeos que a reportagem acessou, aparecem carros passando pelo local enquanto os ocupantes buzinam e comemoram: “aê, caralho, mandou para o inferno essa porra!”.
O homem que filma se aproxima do rapaz e também fala em direção ao PM: “tá de parabéns, irmão, é isso mesmo, filho da puta! Raça do caralho! Olha aqui, assim você aprende!”. Outra testemunha prossegue: “tá certo, né, vacilão?” e parece chutar Nicolas, que não faz nenhum gesto de resistência. “Vai roubar de novo? Vai roubar no inferno agora, filha da puta!”
As imagens foram gravadas em 10 de abril deste ano, quando Nicolas, junto com outro homem em uma motocicleta, roubavam um casal em outra moto. Nicolas conduzia o veículo enquanto o comparsa armado abordava as vítimas na avenida. Em determinado momento, o casal relatou à Polícia Civil que ouviu alguém dizer “polícia, para!” e viu o rapaz apontar a arma para o cabo Esequiel Souza dos Santos, que estava à paisana no trânsito e viu o assalto.
Esse rapaz armado teria disparado e fugido a pé, largando o revólver no caminho, após os tiros. Já Nicolas, que estava na motocicleta, em dos vídeos gravados no local, parece tentar fugir e não é possível ver com clareza se ele faz algum tipo de movimento direcionado ao próprio corpo.
O cabo declarou que Nicolas “colocou a mão na cintura, simulando que também estava armado”, e, por isso, atirou acreditando que poderia ser baleado e que agiu no cumprimento da lei. Nicolas não estava armado e foi atingido com dois tiros na altura da cintura, um na lombar e outro em uma das pernas. Ele foi levado ao Hospital do Tatuapé, mas não resistiu. O outro rapaz não foi encontrado.
A professora Andreia Santana Gualberto Silva, 44, não conseguiu ver os vídeos. Ela soube da morte do filho quando a namorada de Nicolas ligou dizendo que viu as imagens em redes sociais. “Meu filho realmente estava fazendo coisa errada, o outro fugiu, mas meu filho não reagiu, não estava armado, não era para ele ter sido morto com tantos tiros”, lamentou, às lágrimas. “Ele deveria ter sido preso porque nenhum ser humano merece morrer da maneira como meu filho morreu”.
Para Paulo Malvezi, advogado da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio e que acompanha a família, “Nicolas aparece o tempo todo [no vídeo] com as mãos no guidão e o policial efetua vários disparos pelas costas dele quando estava tentando fugir, não se identificou como policial nem deu a possibilidade de rendição do rapaz”. O defensor acredita que houve “um excesso por parte do policial que poderia ter adotado outras formas de contenção daqueles rapazes”.
Ele também criticou o comportamento das pessoas que registraram o jovem caído no chão e comemoravam. “Ele estava dando os últimos respiros ali e não houve um mínimo de decência em volta, por mais que ele estivesse cometendo um erro, praticando um assalto. É uma postura de barbárie das pessoas”.
Presidente do Grupo Tortura Nunca Mais e membro do Movimento Nacional de Direitos Humanos, Ariel de Castro Alves concorda. “Foi uma verdadeira execução pública, com a presença e torcida de alguns populares sádicos, que promoveram incitação e apologia ao crime de homicídio”, declarou.
No local, a perícia apreendeu 12 cartuchos de munição .40, que é compatível com a pistola usada pelo cabo e de uso exclusivo da Polícia Militar, e dois cartuchos de revólver calibre 22. O rapaz que fugiu já foi identificado e, segundo o relatório final da delegada Daurita Martins Donaire, do Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP), da Polícia Civil, está sendo apurada a participação dele no assalto.
Foram ouvidos o casal vítima do roubo, um frentista de um posto de gasolina próximo ao local do crime, além de Andreia e a namorada de Nicolas. As imagens do momento dos disparos contra Nicolas constam no inquérito, mas não foram periciadas nem descritas se comprovam ou não a versão do policial.
A movimentação mais recente do caso data de segunda-feira (5/9), quando o promotor Neudival Mascarenhas Filho solicitou que o Comando da PM encaminhasse a íntegra do procedimento administrativo que apura a conduta do cabo e que o Tribunal de Justiça Militar envie o inquérito instaurado sobre a mesma ação.
Perguntamos ao Ministério Público Estadual se o promotor tinha conhecimento das demais imagens feitas por testemunhas e se solicitaria perícia sobre os registros, mas a assessoria disse que o MPSP apenas se manifesta nos autos.
Também procuramos a Secretaria da Segurança Pública sobre a apuração do caso. A assessoria não respondeu aos questionamentos e encaminhou a seguinte nota:
O caso foi investigado por meio de inquérito policial instaurado pela Divisão de Homicídios do DHPP, o qual foi relatado para apreciação da Justiça em 16 de agosto deste ano.
Reportagem atualizada às 10h24, de 13/9/2022, para incluir resposta da SSP.