‘Encarceramento é a expressão do racismo institucional do Estado’

    Pedro Rocha, diretor de ‘Corpo Delito’, acredita que é urgente discutir sistema prisional no país e responsabiliza programas policialescos por propagar discurso de ódio

    Ivan está em liberdade condicional. Mas a tornozeleira eletrônica, que o monitora 24h por dia, faz com que ele se sinta preso ainda. É essa e outras inquietações com relação ao sistema prisional brasileiro que “Corpo delito” busca discutir. Ivan é o retrato desse sistema: negro, pobre e periférico.

    Em entrevista à Ponte, o cineasta cearense Pedro Rocha, diretor do filme “Corpo Delito”, explicou algumas decisões sobre o roteiro e direcionamento do documentário, como, por exemplo, não mencionar o crime cometido pelo protagonista, Ivan. “O filme tenta se contrapor aos programas policiais televisivos, que reduzem as questões e as pessoas ao crime praticados, inclusive quando elas ainda estão na condição de suspeitos. Falar o crime dele jogaria contra a proposta do filme de gerar empatia”, disse.

    “Corpo Delito” foi lançado pela Sessão Vitrine Petrobras e já passou por alguns festivais, como no alemão Dok Leipzig, uma dos mais antigas mostras de documentários do mundo, na 20ª Mostra de Cinema de Tiradentes e no Forumdoc.BH, em novembro do ano passado.

    Confira o trailer e a entrevista completa com o diretor Pedro Rocha:

    Ponte: Como surgiu a ideia de produzir um filme sobre regime semiaberto? Qual a importância de discutir este tema no Brasil hoje?
    Pedro Rocha: A ideia do filme não surgiu para discutir regime semiaberto especificamente, mas para discutir segurança pública, violência e criminalidade, que é um dos principais problemas do Brasil hoje, com um alto número de homicídios. Há uma política de encarceramento em massa que faz com que tenhamos a terceira maior população carcerária do mundo, em condições desumanas. O filme nasce para discutir as políticas de encarceramento como uma expressão do racismo institucional do Estado brasileiro e boa parte da sociedade. A ideia era fazer um retrato diferente de uma pessoa que tivesse cometido crimes e sido preso. Um retrato diferente daquele que já é feito diariamente nos programas policiais na TV, que são os principais propagadores do discurso de ódio que promove esse tipo de política, esse genocídio da população negra, pobre, de periferia. É um filme para contar a história de uma pessoa, para tentar gerar alguma empatia entre o público e o protagonista (Ivan) e, a partir daí, discutir o tema com mais humanidade, vendo os aspectos sociais e individuais que envolvem esse tipo de questão.

     

    Quais foram as maiores dificuldades de produzir o filme?
    A maior dificuldade do filme foi criar uma reação de confiança entre a equipe do filme e os personagens devido às grandes diferenças sociais e culturais. Foi um processo de aproximação, de imersão na cultura e contexto deles. Não só para contar a história mas também para conseguirmos nos desvencilhar dos preconceitos. Por mais que sejamos bem-intencionados, só conseguimos superar preconceitos com uma experiência de envolvimento com o outro e com essas diferenças.

     

    Você já havia ido a uma prisão ou a uma Fábrica-Escola antes da produção do filme? O que você sentiu ao ir à Fábrica-Escola?
    Nunca entrei em uma prisão e o filme não passa fisicamente pela prisão. Fui a uma Fábrica Escola e o que me impressionou lá foi a repetição do modelo prisional naquele espaço. Uma série de medidas, um ambiente todo monitorado por câmeras, as pessoas revistadas a cada vez que entram, o almoço anunciado por uma sirene alta, a natureza do trabalho de máquina, que acaba com a subjetividade do indivíduo. Esses trabalhos não são indignos, mas não oferecem perspectivas, não geram novas experiências, não trabalham outras capacidades da pessoa. Além de ser sub-remunerado, a legislação brasileira permite que um presidiário, mesmo em regime semi-aberto, trabalhe para receber dois terços do salário mínimo. Esse era um dos sinais que nos mostravam que essa política de ressocialização não funciona, seja executada pela esfera pública ou privada. Tanto que depois o Ivan voltou para a cadeia, outros dois personagens que havíamos cogitado para o filme foram assassinados no período e muitos outros tiveram destinos iguais durante a realização do filme.

     

    Como foi feita a seleção da história que você mostraria no filme? Por que escolheu a de Ivan? 
    Para encontrar os personagens, aplicamos questionários na Fábrica Escola, depois fizemos entrevistas gravadas e, por fim, testes de câmeras com três potenciais personagens (Cícero, Ivan e Franklin). Escolhemos o Ivan pela personalidade dele, pela atitude na frente da câmera, muito franca. Ele se orgulha de ser um cara direto, transparente. Ele também é um cara explosivo, o que nos permitia ter acesso à sua personalidade, sem que ele quisesse controlar muito a imagem que estava sendo passada dele. Ele não queria parecer um cara que estava cumprindo as regras apenas ou que reproduzia o discurso da própria Fábrica Escola. A partir do envolvimento com o Ivan, descobrimos o Neto, a Gleice (outros personagens do filme) que eram um universo de pessoas muito incríveis, fortes e de personalidades bonitas. Aí embarcamos nessa. Isso nos deu uma dimensão do que estava acontecendo. De que estávamos no caminho certo para denunciar e mostrar que essa política não funciona – desde a iniciativa privada até o papel do Poder Judiciário nessa situação toda.

     

    Por que o filme não diz qual crime Ivan cometeu?
    Decidimos não comentar o crime do Ivan para que isso não banhasse todo o filme com uma série de interpretações e envolvimentos emocionais que iam provavelmente desviar um processo que estávamos querendo, que era de construir empatia do público com o Ivan. Porque, sem essa empatia, rapidamente se consegue advogar pelo braço forte da lei e, em último caso, pelo desejo de morte dessas pessoas. O filme tenta se contrapor aos programas policiais televisivos, que reduzem as questões e as pessoas ao crime praticados, inclusive quando elas ainda estão na condição de suspeitos. Falar o crime dele jogaria contra a proposta do filme de gerar empatia.

     

    Em entrevistas, você disse que houve tensões entre você e Ivan devido às suas diferentes biografias. Que tensões foram essas e como elas impactaram o filme final?
    As tensões das diferenças culturais no começo do filme. No começo, eu não entendia a impaciência do Ivan com a tornozeleira. Na minha cabeça, depois de ter passado tanto tempo na prisão, a tornozeleira era muito melhor. Faltava um mês para ele tirar a tornozeleira, ele tentava quebrá-la e eu não entendia essa impaciência. Essa foi uma primeira tensão. Depois, eu fui entendendo melhor por conta de toda a história do Ivan, de todos os anos de encarceramento, das violências sofridas dentro da cadeia, dos baculejos (revestidas policiais). De como não era  uma questão só de um mês, mas de uma vida toda nessa lógica. Outra tensão básica era entrar com equipamento de vídeo e de som em uma comunidade que é vigiada o tempo todo pela polícia especialmente, mas também pelo resto da sociedade e das instituições do Estado quando se aventuram em outras áreas da cidade. E de como isso era um elemento de risco e ameaçados a eles. Isso teve de ser superado ao longo do tempo com muita calma e com a construção de uma relação de confiança. Mas acredito que as principais dificuldades são as diferenças culturais, de vivências. Quem não vive essa realidade não sabe julgar, principalmente a classe média e os operadores do direito (juízes, advogados, promotores até defensores públicos). Ao todo, foram dois anos de convivências e seis meses de gravações, mas você pode, no máximo, triscar essa realidade e pode criar ambientes de diálogo, mas entender mesmo o que essas pessoas passam só estando na pele delas. Eu acho que se deve ter no Brasil mais experiência e maior empatia com essas realidades, para criar espaços de diálogo que não são tão acirrados como os que a gente vê hoje.

     

    O que mais te surpreendeu ao fazer o filme e acompanhar a trajetória de Ivan?
    O que mais me surpreendeu é como essas diferenças culturais são mal dimensionadas no Brasil. Como não conseguimos entender essa realidade sem ter uma aproximação mais intensa. Muita gente no Direito, nas Ciências Sociais, no Cinema faz esse diálogo, mas ainda não temos espaços de diálogo na televisão, nas rádios, nas escolas, por exemplo. Esses Brasis que se ignora e que se mata são uma dimensão triste e dramática do país.
    Cena do filme em que Ivan, o protagonista, está na casa dele | Foto: reprodução
    Em algumas entrevistas sobre o filme, você disse que Ivan vivia uma liberdade ”vigiada” (e não “assistida”). Por quê? Quem, como e em que espaços não-institucionais Ivan era vigiado?
    O Ivan é bem vigiado também por conta da tornozeleira eletrônica. Como parte dessa população que é criminalizada – jovens negros e pobres de periferia – a vigilância é constante pelo Estado e por parte da sociedade que se sente ameaçada. Um elemento básico que inspirou o filme é a experiência do baculejo (revista policial). Se jovens de periferia transitam por outros espaços da cidade – em um shopping, uma área mais turística ou de bairro nobre, mesmo que esteja vestido com roupas de marca, vão ser parados pela polícia, sofrer esse constrangimento – e, muitas vezes, mais do que um constrangimento: levam tapas por falarem palavras que os policiais consideram ofensas, por exemplo. Então o que a gente vive no Brasil é um estado de exceção e e segregação. Diz-se que o baculejo política de prevenção, muitos policiais e militares entendem que sua função é revistar pessoas nas ruas mas, por trás disso, a função real é segregar a circulação dessas pessoas nas áreas mais ricas das cidades, onde elas são indesejadas.

     

    Qual a importância do cinema nordestino no Brasil de hoje?
    Não sei se há a importância do cinema nordestina no Brasil, mas do cinema de forma geral, especialmente o que traz uma pluralidade de olhares sobre o Brasil em suas diferentes regiões, culturas e realidades sociais. Como temos um cenário da comunicação pública muito fraca, altamente concentrado e monopolizado, o cinema é uma das saídas para produzir leituras que gerem empatia, que façam a população brasileira conhecer suas diferenças e dialogar com elas. Com isso, o Nordeste e Norte tem um papel importante porque são as regiões mais pobres e violentas, onde muitos dos problemas do Brasil se expressam de forma mais exacerbada e dramática.

     

    Por que contar a história de vida de uma pessoa para tratar essa temática? Como você vê a relação entre jornalismo e cinema?
    Minha formação como jornalista ajudou contribuiu muito para isso. Fui jornalista cultural, trabalhei como repórter de cultura em um jornal diário em Fortaleza e sempre me preocupei com as questões sociais e as narrativas dessas questões. Acho que a minha principal influência é o jornalismo narrativo e figuras como Joel Silveira, José Hamilton Ribeiro, de uma linha do jornalismo de contar histórias e não necessariamente reportar um fato. Sempre quis levar minha produção jornalística para esse lado narrativo. Mas o jornalismo também possui uma série de amarras estéticas e éticas próprias e confesso que foi a partir do cinema documental que me descobri mais livre para criar, contar essas histórias e aproveitar o potencial que elas tem. Minha história foi no jornalismo e o jornalismo narrativo que eu mais admiro trisca nas potências do cinema documental.

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