Após reportagem da Ponte, motorista negro é absolvido por mandar mensagem sem querer

Para juíza, reconhecimento não poderia ser a única prova para condenar Luiz Maurício, que ficou preso por seis meses acusado de sequestro. “É uma história de racismo”, diz jovem

Luiz Maurício do Nascimento Rosa França, 25 anos | Foto: Arquivo pessoal

Parte do tormento de Luiz Maurício do Nascimento Rosa França, 25 anos, acabou na última sexta-feira (17/5), quando ele foi absolvido de uma denúncia de sequestro. O motorista ficou preso por 11 meses, a maioria deles, no Centro de Detenção Provisória de Itapecerica da Serra, em São Paulo. Para a juíza Juliana Trajano de Freitas Barão, da 1ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), não havia provas suficientes para condenar Maurício, que passou a ser suspeito após mandar sem querer uma mensagem para uma loja de roupas. 

Em abril a Ponte mostou a aflição pela qual passava à família do motorista. Ele foi preso em casa, diante da filha de cinco anos. Maurício conta que só teve clareza sobre do que era acusado meses após a prisão. “Nunca imaginei que pararia naquele lugar”, diz. 

O crime do qual Maurício se tornou suspeito aconteceu em fevereiro de 2023. A vítima foi abordada no local onde havia marcado um encontro com uma pessoa que conheceu on-line. Ela foi levada a um cativeiro, onde ficou por mais de 24 horas e teve cerca de R$ 30 mil roubados. 

Quatro dias depois, a vítima recebeu um áudio via WhatsApp de um número desconhecido. Era Maurício, que tinha localizado o número no perfil em uma rede social de uma loja de roupas, fato relatado pela defesa à juíza. Na foto do contato, o motorista, para ela, seria um de seus sequestradores. A mensagem foi enviada sem querer, diz o jovem.

Na decisão, a magistrada escreveu que, como Maurício foi reconhecido, por meio da foto do WhatsApp, não pode ser o único ponto para condenar o motorista. “Apesar da segurança demonstrada pela vítima, fato é que tal prova, embora de suma importância, não pode ser analisada de forma isolada, desconsiderando todos os demais elementos de informação carreados aos autos”, disse.

Ela ponderou que Maurício justificou o envio da mensagem – afirmando ter interesses comerciais e mandou o texto sem querer e por isso apagou – mostrando depois que o número da vítima constava na página da loja que ela mantinha no Instagram. Assim, havia de fato um caminho para o motorista chegar até aquele contato.

A localização de Maurício, juntada a partir do histórico do celular, também mostrou que ele esteve longe do local do crime naquele dia. No horário do sequestro, a localização do aparelho marcava que o motorista estava a uma distância de, no mínimo, 40 a 50 minutos. 

Em um dos pedidos de habeas corpus feitos pela defesa, a promotora Ana Marie Lourenco Karsten chegou a dizer que o histórico poderia ter sido forjado. “O registro de histórico do Google Maps pode ser feito mediante o cadastro do aplicativo em qualquer aparelho celular e também não confirma que quem segurava o aparelho naquele momento seria o réu, em outras palavras, terceiro pode ter feito esse mesmo trajeto”, afirmou. 

Contudo, uma testemunha corroborou a versão de Maurício quanto à sua localização. Em juízo, ela confirmou ter se encontrado com o motorista no horário em que o crime ocorreu. Um comprovante de compra de telhas – material que tinha como destino a madeireira da família de Maurício, onde ele trabalhava – também foi apresentado para confirmar a história. 

“Embora a acusação tenha trazido justificativas possíveis para os registros do GPS, fato que reconhecimento ser ato passível de falhas e, por isso, não pode, isoladamente, embasar a condenação, quando se somam elementos que indicam que o acusado estava em outro local”, escreveu a juíza na decisão.

Ela também destacou uma dissonância no reconhecimento pessoal. Na época do crime, Maurício ostentava um cabelo platinado, o que não bate com a descrição feita pela vítima do sequestrador de cabelo preto. 

“Com efeito, ainda que a vítima tenha sido categórica no reconhecimento realizado em face do réu, equívocos são possíveis, principalmente em crimes que geram traumas complexos, cabendo, portando, ao julgado analisar todos os elementos de prova com cautela”, pontuou. 

O inquérito policial foi conduzido pelo delegado Gerson Edson Bojczuk, da Delegacia Seccional de Franco da Rocha. A apuração identificou quatro outros suspeitos que receberam os valores transferidos da conta da vítima. Dona de uma máquina de cartão, uma das pessoas disse que passou uma compra no valor de R$ 1 mil a pedido de um homem chamado pelo apelido de “Neguinho”. Apresentado a uma foto de Maurício, ele negou que se tratasse da mesma pessoa.

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Já a denúncia contra Maurício foi apresentada pelo promotor Joaquim Portela Dias do Nascimento Neto em 12 de julho do ano passado. O motorista tinha sido denunciado por extorsão mediante sequestro.

“Essa é uma história de racismo”

A ficha ainda não caiu. “Até agora estou meio zonzo. Ainda não acredito que estou em casa”, disse Maurício à Ponte. Ele entende que foi preso por ser negro. Se fosse branco, diz, a investigação teria sido melhor executada. “Essa é uma história de racismo.”

Reverbera na cabeça do motorista o dia da prisão. Ele diz ter sido jogado no chão e recebido chutes na barriga. Foi uma humilhação, define. Na prisão, passou a tomar remédios para tratar sintomas depressivos que ainda persistem. Maurício está com medo de sair de casa. 

O plano, quando melhorar, é voltar a trabalhar na madeireira da família, local em que ajuda nos serviços desde os oito anos. “Quero continuar minha vida”, diz.

O que dizem as autoridades 

A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública (SSP-SP) e o Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP), solicitando entrevistas com os agentes públicos envolvidos na investigação e também pedindo uma posição sobre o caso.

Em nota, a SSP-SP respondeu apenas que o inquérito foi conduzido pela Delegacia Seccional de Franco da Rocha. “A Polícia Civil esclarece que o caso mencionado na reportagem foi investigado pelo Setor de Investigações Gerais (SIG) da Delegacia Seccional de Franco da Rocha, cujo inquérito policial já foi relatado e encaminhado à Justiça em julho de 2023. Demais questionados devem ser direcionados ao Poder Judiciário”, diz a nota.

*Matéria atualizada às 10h do dia 23 de maio de 2024 para incluir a nota da SSP-SP.

Correções

  • A primeira versão da matéria informava que Maurício ficou preso por seis meses. O correto é que foram 11. O texto foi atualizado às 10h do dia 23 de maio de 2024.

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