Jovem manda mensagem para loja de roupas e acaba preso por sequestro em SP

Há nove meses, Luiz Maurício espera por uma decisão que o inocente. Família diz que, no momento do crime, jovem trabalhava a 30 quilômetros do local

Luiz Maurício do Nascimento Rosa França, 25 anos | Foto: Arquivo pessoal

Uma mensagem de áudio enviada a um número ligado a uma loja de roupas levou Luiz Maurício do Nascimento Rosa França, 25 anos, à prisão. O motorista, que está há nove meses encarcerado, é considerado suspeito de participar de uma extorsão mediante sequestro. A família nega o envolvimento. No dia do crime, relatam parentes, Maurício estava trabalhando em Itapevi, município paulista distante mais de 30 quilômetros do local onde a vítima foi abordada, no Jaraguá, bairro na zona oeste da capital.

“[A prisão] é você enterrar vivo uma pessoa com planos, família e toda uma vida pela frente”, diz a esposa de Maurício, Letícia Cruz, 26 anos. Juntos, o casal tem uma filha de cinco anos. A criança viu o motorista sendo preso em casa, em junho do ano passado. Segundo familiares, o jovem só foi informado sobre o motivo da prisão na audiência de custódia.

“Se tivesse mesmo um país sério, esses policiais iam pagar pelos 190 dias que meu filho está preso. Pelo vexame que ele passou, por tudo que fizeram contra ele. Algemaram meu filho na frente da filha dele, jogaram ele no chão, pisaram na cabeça dele como um bandido sem ter tido um minuto de investigação”, lamenta Eliel Rosa França, 67 anos, pai de Maurício.

O crime aconteceu em fevereiro de 2023. A vítima foi abordada no local onde havia marcado um encontro com uma pessoa que conheceu on-line e foi levada a um cativeiro, onde ficou por mais de 24 horas e teve cerca de R$ 30 mil roubados. Quatro dias depois, ela recebeu um áudio via WhatsApp de um número desconhecido. Na foto do contato, Maurício. A família diz que a mensagem foi enviada sem querer. O motorista teria encontrado o número em um perfil de uma loja de roupas no Instagram. Ao entrar em contato, abriu uma conversa com o número que ali constava e um áudio de poucos segundos foi enviado.

A vítima, no entanto, procurou a Delegacia Seccional de Franco da Rocha, mesmo local em que registrou o sequestro, afirmando que a pessoa na foto era um dos algozes. Maurício teria participado da abordagem inicial e também da liberação. Ele foi o único identificado em reconhecimento pessoal e fotográfico pelo crime. 

Apesar disso, o inquérito conduzido pelo delegado Gerson Edson Bojczuk Fermino identificou quatro pessoas que receberam os valores transferidos da conta da vítima. Dona de uma máquina de cartão, uma das pessoas disse que passou uma compra no valor de R$ 1 mil a pedido de um homem chamado pelo apelido de “Neguinho”. Apresentado a uma foto de Maurício, ele negou que se tratasse da mesma pessoa.

Para o pai de Maurício, o filho está preso por ser negro. Eliel diz que o álibi do motorista, apresentado pela defesa ao Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) e ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), não foi considerado em pedidos de habeas corpus. A cor da pele, acredita Eliel, pesou mais que as provas reunidas por eles. “Agora quer dizer que todo negro é bandido?”, diz.

Álibi de Maurício

O dia 1º de fevereiro de 2023 foi normal na empresa Eliel Rosa França Madeiras, em Itapevi. O local é o trabalho de Maurício desde os oito anos, quando começou a auxiliar nos negócios da família. Já adulto, passou a fazer entregas para a empresa em um caminhão. O único dinheiro que tinha na conta, diz o pai, eram as duas parcelas do salário. 

“Nunca foi preso, tem residência fixa, carteira assinada, casado, com filha. É empregado nosso, mas é dono aqui da madeireira com a gente. Cresceu aqui dentro, trabalhando, lutando”, conta Eliel. 

Na data do crime, segundo familiares, Maurício trabalhou normalmente. Por volta das 12h30min, próximo do horário em que a vítima foi abordada em Jaraguá, Maurício estava em Itapevi. Naquele dia ele teria trabalho em entregas para a a família. A irmã teria pedido que ele passasse em uma loja e comprasse telhas. O pagamento, feito via Pix, é considerado pela família uma prova da inocência do jovem.

Localização de celular que estaria com Maurício mostra distância do local do crime | Foto: reprodução

Somam-se a ela os vendedores da loja de telhas como testemunhas e a localização do celular, que mostrou um trajeto bem distante do local da abordagem. 

Nada disso foi suficiente para que Maurício conseguisse a liberdade. Até aqui, três pedidos de habeas corpus foram negados. A esperança da família é que o motorista seja absolvido em julgamento — que não tem data ainda indefinida.

A programação dos fins de semana da família França tem sido visitar o Centro de Detenção Provisória de Itapecerica da Serra, onde Maurício está preso. Eliel diz que o filho está forte, apesar de temer uma condenação injusta. “Ele não perdeu a esperança”, fala.

Reconhecimento irregular 

Após ver a foto de Maurício pela mensagem recebida, a vítima procurou a Polícia Civil. A investigação partiu daí e foi o único elemento que colocou Maurício entre os suspeitos. Ainda na fase de inquérito, ele foi reconhecido em procedimento fotográfico e também pessoal. 

O advogado criminalista Damazio Gomes analisou o processo a pedido da Ponte. Para ele, existem inconsistências no reconhecimento. O procedimento tem de seguir o que pede o artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP). A pessoa que vai fazer o reconhecimento precisa primeiro descrever as características de quem vai ser reconhecido e depois vê-lo presencialmente. 

Outro passo é que a pessoa a ser reconhecida deve ser colocada com outras que com ela tenham semelhança no momento da identificação.

Damazio Gomes defende que o reconhecimento fotográfico não pode ser usado como único meio de prova. “A fotografia, em muitos casos, vai induzir a pessoa na qualidade de vítima, levada na emoção. Ali ela está fora, inclusive, da própria razão”, afirma. 

O criminalista diz ainda que não fica claro no inquérito se o reconhecimento pessoal seguiu o CPP. “Isso não está claro em nenhum momento. Não é dito ali que ele foi colocado em uma sala com mais pessoas para poder ser realizado esse procedimento. É uma falha grave”, diz. 

Para Gomes, esse é o único elo entre Maurício e o sequestro. “Em nenhum momento a investigação conseguiu demonstrar a participação efetiva de Maurício no crime de extorsão.”

“Verifica-se que a condução da investigação, da forma utilizada até o momento, coloca em risco a existência do Estado Democrático de Direito, principalmente porque qualquer pessoa, independentemente de ser inocente ou culpada, poderia estar sendo acusada de uma situação tão grave como a que o Maurício está enfrentando”, afirma Damazio. 

A denúncia contra Maurício foi apresentada pelo promotor Joaquim Portela Dias do Nascimento Neto em 12 de julho do ano passado. O motorista foi denunciado por extorsão mediante sequestro. Outras quatro pessoas também foram denunciadas pelo crime. Elas foram identificadas por meio das transferências feitas das contas das vítimas.

A denúncia não cita a ligação (única prova que liga Maurício ao caso), mas bota Maurício na cena do crime e se limita a dizer que a vítima reconheceu o jovem. O encaminhamento foi aceito pelo juiz Luís Gustavo Esteves Ferreira, da 1ª Vara Criminal. A decisão também ignorou como o motorista se tornou suspeito.

No dia 11 de dezembro de 2023, a juíza Juliana Trajano de Freitas Barão, da 1ª Vara Criminal, concedeu liberdade para todos os réus, menos Maurício. A magistrada considerou que os demais tiveram “conduta de auxiliar no cometimento do crime” como beneficiários de transações financeiras realizadas com o celular e cartão bancário da vítima”. Assim, a prisão era desnecessária. Com a decisão, o sequestro foi atribuído apenas a Maurício .

O julgamento do caso já foi adiado por três vezes. Em todas as situações, por ausência de testemunhas. Na última audiência, que ocorreu em janeiro deste ano e que também foi adiada pelo não comparecimento, a vítima foi ouvida. Ela disse que Maurício estava armado e que chegou a bater na cabeça dele com o armamento. Essa arma não foi localizada ou alvo de buscas pela polícia durante o inquérito.

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Ela contou que a primeira abordagem foi feita por três homens. Em um primeiro momento, falou que o grupo estava com máscaras cirúrgicas, mas depois afirmou que Maurício estava sem o item. Ao ser questionado sobre o cabelo do motorista, que segundo a família estava platinado, a vítima não disse não lembrar da cor, apesar de dar detalhes sobre a altura do cabelo.

O que dizem as autoridades

A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP), o Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) e o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) para comentar os pontos trazidos pela reportagem. Também foram solicitadas entrevistas com os agentes públicos citados.

Em nota, o MP-SP informou que a ação penal está em andamento e em segredo de justiça. Já o TJ-SP, também pontou que o processo está em segredo judicial e não respondeu aos questionamentos.

Já a SSP-SP, escreveu que o inquérito foi finalizado e relatado à Justiça em julho de 2023. “O suspeito foi indiciado após ser reconhecido pessoalmente pela vítima”, disse.

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