Chacinas policiais no RJ favorecem a expansão das milícias, defende especialista

Para Daniel Veloso Hirata, da UFF, direcionamento do aparato repressivo prioritário para as áreas dominadas pelo Comando Vermelho tem como efeito o favorecimento de uma possível extensão territorial por parte dos grupos milicianos

Policiais durante invasão da comunidade do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, em 19 de maio de 2021 | Foto: Bruno Itan / Voz das Comunidades

Marcada pelas operações policiais altamente letais em comunidades que estariam sob o controle da principal facção criminosa do estado do Rio de Janeiro, caso da chacina na Penha nesta quarta-feira (24/5), a política de segurança pública do governo Cláudio Castro (PL) não usa da mesma força em áreas dominadas por grupos milicianos. O Cidade Integrada, programa lançado no início do ano para implantar o controle policial em locais controlados por grupos armados, mostra bem a diferença de tratamento.

No Jacarezinho, palco da maior chacina policial da história do Rio de Janeiro com 28 mortos, são frequentes as denúncias de truculência e violações de direitos cometidas pelos policiais que ocuparam a área. Já na Muzema, onde prédios construídos por milicianos desabaram vitimando moradores, a ocupação se dá sem maiores atritos entre as forças de seguranças e os grupos criminosos.

Para o coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF), Daniel Veloso Hirata, as operações policiais do governo Cláudio Castro estão, de certa forma, auxiliando na expansão territorial da milícia. “O direcionamento do aparato repressivo prioritário para um grupo em detrimento do outro, produze como efeito o favorecimento de um deles”, justifica.

Ponte – Como você analisa a letalidade policial pelo atual governo do Rio de Janeiro?

Daniel Hirata – Temos o governador Cláudio Castro como responsável pelas duas maiores chacinas da história do Rio de Janeiro: a chacina do Jacarezinho e a chacina da Vila Cruzeiro. Isso é mais uma sinalização clara da falta de compromisso dessa gestão com a questão pública mais importante na área de segurança aqui no Rio de Janeiro, a letalidade policial. No final de 2020, houve um plano de segurança pública, por meio de um decreto editado em dezembro, que não faz menção especial à questão da letalidade policial. O projeto Cidade Integrada, que é a principal vitrine desse governo na área de segurança, também não trata, nos documentos disponíveis até agora, da questão da letalidade policial. Quando foi imposto ao governador a elaboração de um plano de redução da letalidade policial pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o que foi enviado pelo governo do do Rio foi um plano absolutamente protocolar, que de forma alguma pode ser considerado uma iniciativa que visa resolver a questão da letalidade policial. 

Ponte – Quanto a letalidade policial afeta a população do Rio de Janeiro?

Daniel Hirata – A letalidade policial é um problema que vem se agravando nos últimos anos. No ano de 2021, tivemos mais de um terço do total de homicídios feitos pela pelas forças policiais, o que é uma coisa inaceitável. Ou seja, se a polícia não matasse tanto, nós poderíamos ter uma redução de mais de 30% nos homicídios que ocorrem no estado. Então, infelizmente, a chacina que aconteceu na Vila Cruzeiro é mais um episódio que demonstra essa falta de compromisso do governo com essa questão que é tão importante, tão vital para o estado do Rio de Janeiro.

Ponte – No lançamento do Cidade Integrada o governo escolheu uma comunidade dominada pelo Comando Vermelho (Jacarezinho) e outra pela milícia (Muzema). Passados os primeiros meses do programa, quais as diferenças das ocupações nestes dois locais?

Daniel Hirata – A escolha desses dois lugares para receber o Cidade Integrada foi justificada pelo próprio governador como uma escolha de cunho mais comunicacional do que técnica. Nós fizemos um levantamento e, nem a Muzema, nem Jacarezinho estão entre os bairros com os maiores indicadores de homicídios ou de letalidade policial. O governador, no momento do anúncio do programa, disse que a escolha pelo Jacarezinho seria uma resposta à chacina do dia 6 de maio do ano passado. E que a escolha da Muzema era para demonstrar um certo equilíbrio das ações do governo em áreas controladas pelo pelas facções do tráfico de drogas de áreas controladas por milícias.

Por enquanto, os resultados desse programa são pífios. Tanto do ponto de vista do impacto que tem essa ocupação para o conjunto da cidade e da região metropolitana do Rio de Janeiro, como também localmente, porque vão se avolumando denúncias, sobretudo no Jacarezinho, de violações de domicílio e de abuso de autoridade, de agressões. Sabe-se que essas políticas que se iniciam com uma ocupação territorial, vão acabar sendo propícias para a violação dos direitos e das garantias fundamentais nesses lugares. Há de se fazer notar que o tratamento que tem sido percebido na Muzema e no Jacarezinho também é bastante diferente. Na Muzema nós temos um tipo de ocupação que é muito menos ostensivo e traumático do que aquele que se observa no Jacarezinho. Ao passo que no Jacarezinho há um problema na relação das forças policiais com os moradores, e isso diz muito do tipo de relação que o Estado vem construindo com áreas cujo controle territorial é de milícias ou do tráfico.

Ponte – Essa diferença se daria por conta do envolvimento de agentes públicos dentro das milícias?

Daniel Hirata – É difícil fazer a afirmação. São questões que eu acho que deveriam ser investigadas pela própria polícia ou pelo Ministério Público. São as relações que vão se construir entre agentes públicos e grupos armados. É bastante complicado. Agora, claramente dá para perceber uma diferença de como é o uso do Cidade Integrada. Acabou sendo um bom programa para perceber as diferenciações de tratamento do poder público, a depender dos grupos que controlam os lugares nas relações.

Ponte – Há relação desse alto número de mortes pela polícia fluminense com as intenções eleitorais do governador Cláudio Castro?

Daniel Hirata – Há uma maneira de trabalhar nessa área de segurança pública que vários autores vêm chamando de populismo penal e que é bastante recorrente em diversos governos estaduais. No Brasil, o governo federal também, ou seja, mobiliza o símbolo do sofrimento, do ódio e da morte para obtenção de ganhos eleitorais. O sentimento que se produz neste tipo de ação claramente tem dividendos eleitorais para uma certa parcela da população. No caso do governador Cláudio Castro, ele vem se caracterizando como um governante que sempre se mostrou muito próximo desses símbolos de lei, ordem e sofrimento.

Temos uma série de ações que, para alguns, são consideradas ações de imposição de uma ordem e que de fato só produzem o caos, violações de direitos, interrupção das rotinas dos moradores, produzem uma série de efeitos deletérios e que não têm efeitos na prática, nem para o controle do crime comum e nem dos grupos armados. Isso é uma coisa que análises mais assentadas em dados já comprovaram há muito tempo. O aumento das operações policiais, da letalidade policial, não está relacionado à diminuição nem de crimes contra a vida, nem de crimes contra o patrimônio e nem da atuação dos grupos armados. 

Ponte – As milícias surgiram com um discurso de expulsar o tráfico das comunidades e dar algum tipo de proteção a área. Passados os anos, percebemos associações entre o tráfico e a milícia. Como você enxerga essa associação?

Daniel Hirata – As milícias têm uma origem que está relacionada ao descontrole do uso da força no Rio de Janeiro. Ou seja, na medida em que você não tem nenhuma limitação para o uso da força, há uma disposição ilimitada sobre as vidas dos moradores de favela. Isso, num segundo momento, pode ser objeto de uma negociação em que você oferece proteção de forma privada para ter ganhos pecuniários. Você diz: “eu não vou te matar se você aceitar a minha proteção”, e esse é o cerne da atuação das milícias. Portanto, enfrentar a letalidade policial é também enfrentar as milícias. Porque não é verdade que as milícias atuam pacificando territórios. Os lugares de controle territorial [das milícias] são lugares onde as taxas de homicídios são altas, de desaparecimentos são altas.

De modo que sim, em um primeiro momento, houve uma certa exaltação das milícias, inclusive por parte de autoridades públicas e policiais notórias. Hoje em dia nem essas autoridades mais sustentam essa posição, porque já é sabido que esses grupos atuam de forma muito violenta. Mas eles se expandiram, sobretudo, baseados no monopólio da venda de proteção e de extorsão. E isso foi sendo foi se alastrando para diversos setores da economia formal, informal e ilegal. Desde de toda a infraestrutura urbana relacionada à moradia e habitação, luz, água, internet, gás, mas também ao tráfico de armas, de drogas. As milícias atuam em vários setores dessas economias, basicamente atuando como guardiões do uso da força e da violência, que são prerrogativas estatais. Uma privatização de uma prerrogativa estatal é o que eles mobilizam para ter recursos econômicos. 

Ponte – Em que momento houve essa capacidade de expansão das milícias? 

Daniel Hirata – Isso se ampliou muito no momento em que a economia do Rio de Janeiro estava bastante aquecida, que a frente de expansão urbana apontava para a zona oeste da cidade. Foi o momento do Rio de Janeiro dos grandes eventos. Ali tinha toda uma área de expansão urbana que foi crescendo com a criação dos corredores de transporte que necessitavam dessa infraestrutura que foi fornecida, de forma direta ou indireta, pelas milícias. Do meu ponto de vista foi o que fortaleceu as milícias ao longo das últimas duas décadas. Uma parte das milícias é originária da zona oeste e uma parte, até mais antiga, da Baixada Fluminense. Essas duas frentes de grupos milicianos vão se encontrar na zona norte do Rio de Janeiro, porque vão sendo criados verdadeiros corredores logísticos, de negócios, corredores de influência do controle territorial das milícias que vai dar na zona norte.

Não por acaso, a zona norte é uma zona muito conflitiva, porque você tem as milícias vindo desses dois lados e você já tinha ali a presença de facções do tráfico de drogas. Esse é o cenário de disputas que vão não só gerar conflitos violentos entre os grupos armados, mas também com as forças policiais. Por isso que nosso relatório aponta que uma grande parte das chacinas acontece justamente na zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Não é casual. Isso é quando a polícia entra em ação no momento de disputas territoriais. Sim, ela entra de forma muito violenta. É um pouco aquela ideia de que, bom, como estamos entrando em lugares onde o que está em jogo aqui são disputas entre bandidos, não há nenhum tipo de cautela com vistas à preservação das vidas.

Ponte – Como se dá a relação das milícias e o tráfico de drogas?

Daniel Hirata – Já foi identificado em muitos lugares uma certa relação entre os grupos milicianos e, sobretudo, o Terceiro Comando Puro (TCP). Mas é importante destacar qual é a natureza dessa relação, porque não é exatamente uma relação entre iguais. Na maior parte, não em todas, o que a gente percebe é que o Terceiro Comando Puro paga um ágio para poder vender drogas em áreas de milícia. Há uma relação hierárquica aqui que está posta, mediada por esse controle territorial. Da mesma maneira que um comerciante em uma área de milícia paga uma extorsão, para que possa transacionar suas mercadorias, os traficantes também precisam fazer a mesma coisa. Não é uma relação de associação entre iguais, por isso que eu tenho muita reserva com relação ao termo “narco milícia”. Porque, na verdade, esse termo faz parecer que há uma relação entre esses grupos, que é basicamente cooperativa. Existe [relação] cooperativa, mass instruída por uma relação hierárquica.

Ponte – Essas ações do governo do RJ em áreas controladas pelo tráfico favorecem a expansão territorial das milícias?

Daniel Hirata – Certamente as operações policiais e, consequentemente, as chacinas ocorrem majoritariamente em áreas de controle territorial do Comando Vermelho ou áreas em disputa. Em ambos os casos isso acaba favorecendo a extensão do controle territorial armado das milícias. Não é possível afirmar categoricamente que exista uma intencionalidade e um projeto muito bem definido com relação a isso, mas o fato é que isso é uma resultante do direcionamento do uso da força muito mais para as facções do tráfico de droga, particularmente o Comando Vermelho, ou as áreas em que nós temos disputas em detrimento daquelas onde estão as milícias.

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Vejo que é muito importante ressaltar que eu não estou querendo dizer com isso que as operações policiais ou chacinas são eficientes para o enfrentamento dos grupos armados aqui no Rio de Janeiro, mas que elas causam prejuízos. O direcionamento do aparato repressivo prioritário para um grupo em detrimento do outro, produz como efeito o favorecimento de um deles. É inegável, o efeito acaba sendo esse.

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