‘Queremos o Lucas’: favela exige saber o que PM fez com menino desaparecido

    Madrasta de Lucas, 14 anos, ouviu menino falar com policiais militares antes de desaparecer; governo afasta dois PMs suspeitos

    Lucas desapareceu no começo da madrugada de quarta-feira (13/11) |Foto: Paulo Eduardo Dias/Ponte Jornalismo

    “Favela unida jamais serĂĄ vencida”. “Eu sĂł quero Ă© ser feliz, andar tranquilamente na favela em que eu nasci”. Foi com frases como essas que cerca de 200 moradores da Favela do Amor, na Vila Luzita, bairro pobre da cidade de Santo AndrĂ© (Grande SP), protestaram contra o desaparecimento de Lucas Eduardo Martins dos Santos, 14 anos, morador da comunidade. A famĂ­lia e vizinhos culpam policiais militares pelo sumiço. A cĂșpula da PM afastou dois PMs do trabalho nas ruas, sem redução de salĂĄrio, por suspeita de envolvimento no caso.

    O menino sumiu durante as primeiras horas da madrugada de quarta-feira (13/11). Ele tinha deixado a casa em que mora com a madrasta, um irmĂŁo e a cunhada para comprar um refrigerante em uma quitanda que fica dentro da prĂłpria comunidade. A madrasta conta que, de dentro de casa, ouviu a voz de Lucas dizer “eu moro aqui” para alguĂ©m. Ao sair, viu uma viatura da PM deixando o local. Ela acredita que o enteado estivesse dentro do carro. Depois disso, Lucas nĂŁo foi visto mais.

    A viatura avistada pela madrasta de Lucas trazia as cores vermelha, preto, cinza e branco, anteriores Ă  nova adesivagem, em que predomina o branco, “a cor da paz”, segundo o governador JoĂŁo Doria (PSDB), que começou a mudar as cores dos carros de polĂ­cia a partir de agosto deste ano.

    Rua onde o jovem mora na periferia de Santo André, ABC Paulista, e onde desapareceu |Foto: Paulo Eduardo Dias/Ponte Jornalismo

    O que passou a intrigar os familiares e vizinhos de Lucas Ă© que, por volta da 1h de quarta, policiais militares em duas viaturas, uma de nĂșmero 41.222, da 1ÂȘ Companhia do 41Âș BPM/M (BatalhĂŁo de PolĂ­cia Militar Metropolitano), de Santo AndrĂ©, e uma outra de prefixo nĂŁo anotado pelos moradores, bateram Ă  porta da casa da famĂ­lia. Eles perguntaram sobre os moradores do local e citaram o nome de Lucas e de um outro irmĂŁo, que nem sequer mora com ele, mas que havia sofrido agressĂ”es de PMs recentemente.

    No dia da agressĂŁo ao irmĂŁo de Lucas, contam os familiares, a avĂł do menino foi ameaça por um PM por intervir, segundo conta CĂ­cera, outra tia do garoto, que preferiu nĂŁo fornecer seu nome completo. “NĂŁo se preocupa nĂŁo, vovĂł, que vocĂȘ vai chorar no caixĂŁo do seu netinho”, teria dito um dos policiais, referindo-se ao irmĂŁo de Lucas.

    O enredo do sumiço de Lucas ainda coloca um morador em situação de rua como testemunha. Por volta das 3h daquela madrugada, enquanto as buscas jå eram realizadas, o sem-teto entrou na favela vestindo a blusa que o menino usava ao desaparecer.

    Questionado, informou ao irmão de Lucas que estava fumando em uma årea de mata atrås da Escola Estadual Adib Chamas, a poucos metros da casa da família, na rua Professor Felisberto Carvalho, quando PMs foram até o local e exigiram que ele saísse. Logo depois, encontrou a blusa ao retornar ao mesmo local, a vestiu e desceu para a favela. Ao amanhecer o irmão de Lucas foi até a mesma årea e encontrou o boné do menino jogado em meio ao mato.

    Amigos e familiares protestaram e cobram explicação pelo sumiço do garoto |Foto: Paulo Eduardo Dias/Ponte Jornalismo

    A reportagem da Ponte permaneceu por volta de sete horas na comunidade ao longo desta quinta-feira (14/11), ao lado da Rede de Proteção e ResistĂȘncia contra GenocĂ­dio, mas nĂŁo conseguiu contato com a madrasta e nem com o irmĂŁo mais velho. Eles passaram o dia prestando depoimentos em delegacias diferentes.

    Enquanto a reportagem esteve nas estreitas ruas da favela diversos amigos e amigas do menino desaparecimento deram seu depoimento. “Ele nĂŁo tem briga com ninguĂ©m, sĂł brinca e vai para a escola. NĂŁo arruma briga, gosta de celular”, conta a estudante Amanda, 15, que conhece o garoto desde pequeno. Segundo moradores, Lucas Ă© um menino muito prestativo, que por diversas vezes vai atĂ© a padaria comprar pĂŁo para os vizinhos sempre que, por algum motivo, estĂŁo impossibilitados de saĂ­rem.

    Moradores mostravam cartazes com fotos de Lucas |Foto: Paulo Eduardo Dias/Ponte Jornalismo

    Segundo a tia de Lucas, a dona de casa Isabel Daniela dos Santos, 34 anos, que tambĂ©m mora na comunidade e a poucos metros da famĂ­lia do estudante, o menino Ă© “muito bonzinho e tranquilo”. No dia do ocorrido, ela lembra que ele passou a tarde e a noite em sua casa utilizando o wi-fi, jĂĄ que recentemente ganhou um celular de um vizinho, e sua maior diversĂŁo Ă© acessar Ă  internet. “Era por volta das 23h30 de terça feira quando falei para o Lucas ir para casa dele que jĂĄ estava tarde. Ele deu tchau e se foi”, lembra.

    Daniela conta que o sobrinho, ao chegar em casa, pediu dinheiro para a madrasta para comprar refrigerante, saindo logo em seguida. A partir daí, seu paradeiro se tornou um mistério.

    AntÎnio da Paz, que também esteve no enterro das vítimas de massacre em escola de Suzano |Foto: Paulo Eduardo Dias/Ponte Jornalismo

    A histĂłria de Lucas possui traços comuns como tantas outras de quem mora nas periferias e convive com abusos e violĂȘncia policial. Os familiares contam que ele nĂŁo possui contato com a mĂŁe biolĂłgica que, assim como o pai, sĂŁo dependentes quĂ­micos. Isso fez com que a madrasta fosse responsĂĄvel por ele e o irmĂŁo mais velho, de 22 anos. O irmĂŁo trabalha em uma pizzaria para sustentar a casa.

    “A dor da gente Ă© que ele nĂŁo faz nada de errado. Ele nĂŁo tem tatuagem, nĂŁo bebe, nĂŁo fuma. Ele tem 14 anos, mas Ă© bobo, inocente. A polĂ­cia precisa ser respeitada e nĂŁo temida. Quando a polĂ­cia chega aqui todo mundo jĂĄ teme porque sabe como eles agem”, disse, com lĂĄgrimas nos olhos, a operadora de cobrança Lindi Martins, 25, outra tia do garoto. Ela saiu da favela do Real Parque, no Morumbi, onde mora na zona oeste da capital paulista, para acompanhar as buscas.

    Ato teve momentos de tensão com a presença da PM |Foto: Paulo Eduardo Dias/Ponte Jornalismo

    A mulher conta que, sem dinheiro, teve que pedir diversas caronas em ĂŽnibus de SĂŁo Paulo e Santo AndrĂ© para ir de encontro aos familiares. “Desde ontem (13/11) ninguĂ©m come nada, ninguĂ©m dorme, ninguĂ©m trabalha. Minha filha de 7 anos sĂł chora, ela convive muito com ele”, conta Daniela, que ao lado de seus familiares diz que todos vieram de Pernambuco e da Bahia para tentar uma vida melhor em SĂŁo Paulo.

    “Pedi dispensa do trabalho, ainda bem que minha encarregada compreendeu. Sou novo no trabalho, mas nĂŁo ia render. Vou ajudar nas buscas”, afirmou o auxiliar de higienização em hospital Noel Henrique, 30, tio do jovem.

    Protesto

    Diferente do protesto no dia anterior em que foi reprimido a bombas pela PolĂ­cia Militar, o ato desta quinta-feira foi pacĂ­fico, ainda que marcado por muita tensĂŁo e revolta. Os manifestantes segurando cartazes, faixas e fotos de Lucas, xingavam os PMs que passavam a todo instante em viaturas da patrulha de ĂĄrea e da Força TĂĄtica do 41Âș BPM/M (BatalhĂŁo de PolĂ­cia Militar Metropolitano), pela Avenida SĂŁo Bernardo, na altura do nĂșmero 500, uma das entradas da Favela do Amor.

    Casa onde o garoto mora com a madrasta, um irmĂŁo e a cunhada |Foto: Paulo Eduardo Dias/Ponte Jornalismo

    Os gritos de “nĂŁo acabou, tem que acabar, eu quero o fim da PolĂ­cia Militar” e os pedidos de “justiça” mexiam com o semblante dos PMs, que olham fixamente para os moradores. “Toda madrugada some um Lucas em Osasco, SĂŁo Bernardo, Santo AndrĂ© e Diadema. Eu nĂŁo tenho notĂ­cia de um moleque que tenha sumido no bairro Jardim (ĂĄrea nobre de Santo AndrĂ©). Desde o começo ser preto Ă© ilegal. É ilegal como ganhamos nosso dinheiro. Como vivemos. A OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) vai cobrar. A OAB quer saber onde estĂĄ Lucas?”, gritou, em meio aos manifestantes, o diretor executivo da OAB de Santo AndrĂ©, Helton Fesan.

    TambĂ©m presente, Ediane Maria, 36, representante do Coletivo Negro do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) fez um discurso emocionado, que terminou em palmas e gritos. “NĂłs nĂŁo vamos mais nos calar. NĂłs nĂŁo temos o que temer. NĂłs somos a maioria, nĂŁo somos a minoria”, declarou. A promessa dos moradores Ă© de realizarem ato diariamente atĂ© que Lucas reapareça.

    Manifestação interditou avenida de Santo André |Foto: Paulo Eduardo Dias/Ponte Jornalismo

    Por volta das 16h, o ato passou a percorrer ruas do bairro, chegando a fechar por cerca de 10 minutos a Avenida CapitĂŁo Mario de Toledo, uma das principais de Santo AndrĂ©. Ali, sentindo que os Ăąnimos dos cerca de 15 PMs  Ì¶ alguns deles armados com escopetas municiadas de bala de borracha  Ì¶ podiam descambar para a repressĂŁo, uma comissĂŁo de moradores foi atĂ© os PMs para combinar o trajeto atĂ© o 6Âș DP de Santo AndrĂ©, unidade em que foi elaborado o boletim de ocorrĂȘncia de desaparecimento.

    No local, o delegado MĂĄrcio Macedo conversou com a Ponte. Segundo ele, sua parte foi elaborar o boletim de ocorrĂȘncia de desaparecimento, alĂ©m de diligĂȘncias na ĂĄrea de mata em que foram encontradas roupas de Lucas. No entanto, como nĂŁo houve mais vestĂ­gios, o andamento das investigaçÔes passou para o Setor de HomicĂ­dios de Santo AndrĂ©.

    Parte da comunidade de mobilizou para o protesto e contou histĂłrias que viveu com o garoto |Foto: Paulo Eduardo Dias/Ponte Jornalismo

    Durante todo o trajeto entre a delegacia e a volta a favela os participantes da caminhada entoaram vĂĄrias homenagens ao menino, que fez com que diversas pessoas se emocionassem. Entre elas, “olĂȘ, olĂȘ, olĂĄ, Lucas, Lucas”. “Lucas, Presente!”, “Queremos Lucas, vivo”.

    Questionada pela Ponte, a SSP (Secretaria da Segurança PĂșblica) do Estado de SĂŁo Paulo, liderada pelo general JoĂŁo Camilo Pires de Campos neste governo de JoĂŁo Doria (PSDB), informou que “todas as circunstĂąncias relativas ao fato sĂŁo apuradas por meio de inquĂ©rito instaurado pelo Setor de Desaparecimento do SHPP da PolĂ­cia Civil de Santo AndrĂ©”.

    Momento de fala durante a caminhada até a delegacia |Foto: Paulo Eduardo Dias/Ponte Jornalismo

    “As equipes da unidade policial realizam diligĂȘncias para localizar o jovem. A PolĂ­cia Militar tambĂ©m instaurou um procedimento para apurar o caso e, preventivamente, afastou do serviço operacional dois agentes que foram apontados por testemunhas como supostos participantes da abordagem no Jardim Santa Catarina”, finaliza o documento.

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