Entenda a lei que quer punir filmagens de ações policiais e levou milhares a protestar na França

    Proposta pelo partido do presidente Emmanuel Macron, Lei de Segurança Global prevê prisão e multa para quem registrar imagens de policiais

    Foto: Reprodução / Twitter @s_assbague

    Apresentada em meados de outubro, uma proposta de lei dos deputados de La Republique en Marche (LREM), partido do presidente francês Emmanuel Macron, quer punir quem filmar policiais no exercício dos seus deveres. A proposta prevê um ano na prisão e multa de 45 mil euros (cerca de R$ 250 mil) para quem ousar desafiar essa regra, que está no artigo 24 do projeto Lei de Segurança Global.

    Há quem interprete que a medida afetaria o trabalho de jornalistas que estivessem atuando na cena de um crime. Mas, para o governo francês e para o partido do presidente, a proposta é uma forma de proteger a integridade física e psicológica dos policiais.

    Outro artigo polêmico do texto é o 22, que regulamenta o uso de drones pela polícia em via pública para filmar e monitorar os cidadãos. O único limite a esse monitoramento é o interior de residências.

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    Como é comum no país, os franceses, temerosos de que a brutalidade policial fosse acobertada e ficasse sem punição, saíram às ruas em protestos por todo o país em 17 de novembro. As manifestações contaram com a presença de sindicatos, partidos políticos, imprensa, estudantes e membros do movimento dos coletes amarelos, que foram recebidos com gás lacrimogêneo e canhões de água pela polícia. Houve ainda violência contra os jornalistas que cobriam o evento.

    “Mesmo apresentando minha carteira de imprensa, um policial mandou eu parar de trabalhar e sair do local sob pena de ser levado para a delegacia”, contou o jornalista freelancer Clément Lanot em sua conta Twitter, onde também publicou um vídeo em que os policiais o ameaçam e citam uma lei inexistente que teria sido aprovada há dois anos para justificar a atitude.

    Em entrevista à agência de notícias AFP, organizadores dos protestos afirmam que “a lei busca minar a liberdade de imprensa, a liberdade de informação e a liberdade de expressão”

    Em 21 de novembro, um dia após a aprovação do artigo 24 na Assembleia Nacional, os franceses foram às ruas novamente e, enquanto isso, Michel Zecler, produtor musical negro, era abordado por três policiais, sofrendo violência física e verbal, filmada na íntegra por câmeras de segurança.

    Enquanto Zecler ainda estava preso, a Assembléia Nacional francesa finalizou a aprovação da Lei de Segurança Global. Nesse mesmo dia uma manifestação em Paris acabou de forma violenta. Organizações de defesa dos direitos dos imigrantes haviam instalado centenas de barracas na Place de la République para protestar contra a evacuação violenta desses imigrantes de um campo improvisado, ocorrida no dia anterior.

    Dois dias depois, o site Loopsider publica o testemunho chocante de Zecler no qual  conta que, chegando ao seu estúdio, sem máscara, decidiu entrar para não levar uma multa. Nessa hora, três policiais o seguiram e invadiram o imóvel tentando trazê-lo de volta para fora. Ao resistir, foi espancado e ouviu insultos de “negro sujo”. Michel gritava por socorro, o que atraiu a atenção de um grupo de jovens que estava no estúdio e que vieram para ajudá-lo. Eles conseguiram fazer os policiais saírem, mas os agentes de segurança continuavam tentando entrar e jogaram uma bomba de gás lacrimogêneo dentro do imóvel, colocando em risco a vida de Michel e das outras pessoas que ali estavam.

    Reprodução / Twitter

    Outros policiais chegaram posteriormente ao local. Um deles quebrou a vitrine do estúdio com cassetete. Com o gás, Michel acabou saindo. Ele foi jogado no chão, arrastado e espancado pela policia na frente do imóvel. Quando eles perceberam que estavam sendo filmados por vizinhos, gritaram entre si “câmera! Câmera” e partiram, levando Michel e nove jovens que estavam no estúdio, incluindo um menor, para a delegacia.

    Cheio de hematomas e com fratura no crânio, Michel permaneceu em detenção provisória por 48 horas, acusado de tentar tirar a arma dos policiais. Em seu relatório os policiais contaram uma versão rocambolesca dos fatos: segundo eles, Michel teria sozinho arrastado os três para dentro do imóvel, agredido os oficiais e  tentado tirar a arma deles. O que eles não sabiam é que todo o episódio estava sendo filmado também no interior do imóvel, pelas câmeras de segurança do estúdio. “Sem essas imagens, eu estaria preso até hoje”, declarou Michel.

    O caso constrangeu o governo francês, que ainda tenta aprovar a lei. Segundo a BBC, o presidente Macron descreveu o ocorrido como “vergonhoso” e “inaceitável” e afirmou que o encontrará uma forma de restaurar a confiança pública na polícia. Por sua vez, Jean Castex, primeiro-ministro francês, anunciou na sexta-feira (27/11) que uma comissão independente vai avaliar e reescrever o artigo 24.

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    Segundo a agência EuroNews, o ministro do Interior francês, Gerald Darmanin, segue defendendo a lei ao afirmar que “proteger os policiais e proteger a liberdade de expressão não são ações que competem entre si, mas se complementam. Não há vitória de um contra o outro como também não há êxito de um sem o outro”.

    Os oficiais envolvidos na agressão foram suspensos de suas funções e colocados em detenção provisória no sábado (28/11). Nesse mesmo dia, em várias cidades francesas, centenas de milhares de pessoas participam da Marcha das Liberdades, contra a lei de segurança global e contra a violência policial. Em Paris, a manifestação novamente registra cenas de extrema violência. Novas manifestações estão previstas para este sábado, 5 de dezembro. O projeto ainda precisa passar por outras instâncias: o Senado e o Conselho Constitucional. A apreciação pelo Senado está prevista para 21 janeiro.

    (*) membro do Tamo Junto, programa de membros da Ponte, que vive na França

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