A Ponte analisou 3 alterações na Política Nacional de Drogas consideradas por especialistas como retrocesso para as lutas antimanicomial e pelo desencarceramento: ‘é a possibilidade de ampliação irrefreada do sequestro de pessoas’
As comunidades terapêuticas serão responsáveis pelo tratamento de dependentes químicos, que podem ser internados contra a sua vontade. E, mesmo sem distinção de quantidade de drogas para determinar quem é usuário e quem é traficante, a pena mínima para “traficante que comandar organização criminosa” vai aumentar de 5 para 8 anos de prisão.
Essas são algumas das mudanças que compõem a nova política de drogas aprovada pelo Senado na quarta-feira passada (15/5). O PLC (Projeto de Lei da Câmara) 37/2013 altera a Lei 11.434/2006, que agora segue para sanção do presidente Jair Bolsonaro (PSL).
Em entrevista à Rádio Gaúcha, o deputado federal Osmar Terra (MDB-RS), atual ministro da Cidadania, que também é autor da proposta, disse que a internação involuntária de dependentes químicos, um dos pontos mais polêmicos, vai ocorrer apenas em casos especiais.
“Tem muita confusão na interpretação da lei. Há, inclusive, jornais do centro do Brasil criticando pontos dela que não existem. Ninguém propõe internação involuntária em unidades terapêuticas, isso não existe. É só depois que a pessoa está desintoxicada. A internação involuntária é hospitalar, quando a pessoa tem consequências que exigem tratamento hospitalar”, defende Terra.
A decisão acontece dias antes de outra discussão sobre o tema: a votação no STF (Supremo Tribunal Federal) da descriminalização do uso de drogas no Brasil, medida que já tem apoio de três ministros. O debate está suspenso desde setembro de 2015, mas deve ser retomado no próximo 5 de junho.
Cerca de 80 organizações de direitos humanos, que integram os movimentos de mulheres, negro, LGBTs, juristas e instituições do sistema prisional assinam nota de repúdio ao PL37/2013, por considerarem que ele “promove retrocessos nas políticas de drogas”. O texto destaca sete itens, sendo que o último é dividido em quatro subitens que se relacionam: a superlotação, a enorme discrepância jurídica entre o que cada juiz considera tráfico de drogas, o encarceramento da população negra e periférica, e o impacto no orçamento dos estados com relação aos custos do sistema penitenciário.
“Ao fim e ao cabo, o PLC 37 é um pacote de medidas anacrônicas que, em sua maior parte, contraria as melhores práticas internacionais e nacionais sobre o tema”, assegura a nota.
As entidades listam também três sugestões: reiterar a necessidade de que sejam realizadas audiências públicas sobre o PLC 37/2013 nesta legislatura (até 2020); exigir que o projeto tenha a tramitação prevista na Comissão de Direitos Humanos do Senado, “garantindo um debate amplo, plural e profundo sobre a matéria”; e demandar que os graves problemas apontados no texto sejam sanados, “tomando como pontos de partida o parecer aprovado em 2014 pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado e o substitutivo proposto em 2017 pela relatora anterior do projeto na Comissão de Assuntos Econômicos”.
A Ponte conversou com especialistas para destrinchar três tópicos da nova política de drogas: fortalecimento de Comunidades Terapêuticas com a lógica da abstinência, internação involuntária e aumento da pena para tráfico.
Fortalecimento das Comunidades Terapêuticas
Com o projeto da nova política de drogas, as CTs (Comunidades Terapêuticas) serão as maiores beneficiárias dessa mudança, segundo especialistas. Atualmente, existem cerca de 2 mil comunidades terapêuticas espalhadas pelo país, de acordo com levantamento feito pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) em 2018: 46% delas na região sudeste, 26% na região sul e 17% no nordeste. As regiões norte e centro-oeste são aquelas em que a presença dessas entidades é menor. Do total delas, apenas 6% estão no norte e 9%, no centro-oeste.
A nova política faz com que as Comunidades Terapêuticas, que são clínicas antidrogas ligadas a grupos religiosos católicos (27%) ou evangélicos (47%) – conforme apontado pelo levantamento – , recebam mais verba e incentivo do governo federal, já que a lei permite que essas CTs se tornem protagonistas no atendimento aos usuários de drogas. Atualmente, mesmo com o título de organizações sem fins lucrativos, essas instituições já recebem financiamento governamental.
A lógica do tratamento nesses locais é a abstinência e não a redução de danos, que consiste em outra forma de cuidado, focada na autonomia do indivíduo para um uso controlado da droga, onde o foco é a pessoa, não a substância química.
Em 2018, o CFP (Conselho Federal de Psicologia) divulgou o relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas, uma parceria com o MNPCT (Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura) e a PFDC/MPF (Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal), feito a partir de visitas em 28 CTs. O resultado elenca graves violações aos direitos humanos cometidas pelas instituições.
O relatório provou que todos os locais visitados apresentavam privação de liberdade, uso de trabalhos forçados e sem remuneração, violação à liberdade religiosa e à diversidade sexual, internação irregular de adolescentes e uso de castigos. De acordo com o documento, tais violações podem ser caracterizadas como torturas.
Isso, garante o relatório, evidencia o uso que vem sendo feito de comunidades terapêuticas como locais em que se retoma o modelo de asilamento de pessoas com transtornos mentais, superado no Brasil pela Reforma Psiquiátrica Antimanicomial (Lei 10.216/2001).
Em entrevista à Ponte, Eduardo Ribeiro, coordenador da INNPD (Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas), alega que o projeto está longe de enfrentar as questões complexas envolvidas no uso de substâncias psicoativas e suas diversas interações na sociedade.
“Ele parte de uma proposta anticientífica, irrealizável, e comprovadamente ineficaz enquanto método: a abstinência. Mas não é isso que se busca no fundo. O que de fato importa é a possibilidade de ampliação irrefreada do sequestro de pessoas, sobretudo negras, por instituições que se alimentam do sofrimento das famílias para desviar recursos públicos, explorar trabalho escravo, fazer proselitismo religioso e incidir na política brasileira de forma antidemocrática”, explica Ribeiro.
Internação involuntária
Outra alteração preocupante na nova política de drogas, defendem especialistas, é a internação involuntária. O novo texto da lei de drogas determina que o tratamento de usuários ou dependentes químicos ocorra em ambulatórios, admitindo a internação quando for autorizada por médicos das unidades de saúde ou hospitais gerais.
A nova proposta permite a internação involuntária, quando é feita sem o consentimento da pessoa internada. Um familiar ou, na ausência dele, um servidor público da saúde, assistente social ou de órgãos integrantes do Sisnad (Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas) podem autorizar a internação, mesmo que seja feita contra a vontade da pessoa.
A internação terá o prazo máximo de 90 dias, tempo determinado para a desintoxicação, e será indicada depois da avaliação sobre o tipo de droga utilizada, o padrão de uso e se for comprovado que não é possível outras alternativas terapêuticas previstas na rede de atenção à saúde do dependente químico.
Para Fernanda Nunes, advogada e integrante do projeto “Gênero e Drogas” do ITTC (Instituto Terra Trabalho e Cidadania), a implementação da nova política de drogas em relação à internação involuntária traz grandes retrocessos para a luta antimanicomial.
“Ao fomentar esse modelo, a nova política de drogas também reforça a abstinência total e a internação involuntária como resposta de cuidado às pessoas que usam drogas. Esse tipo de tratamento é há muito tempo questionado no Brasil, tendo sido combatido pelo movimento antimanicomial, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial de saúde mental”, explica Nunes.
Aumento da pena para tráfico
O aumento da pena mínima para tráfico de drogas, de cinco para oito anos, é um dos pontos que mais preocupa instituições ligadas à defesa dos direitos humanos. Segundo o novo projeto, a pena serve para quem exerce o comando, individual ou coletivo, de organização criminosa.
De acordo com um levantamento divulgado pela Ponte em julho de 2018, o usuário é foco de 40% das ações policiais que deveriam combater tráfico de drogas. Os dados foram coletados em estudo do Instituto Sou da Paz e mostram que a política de segurança e combate ao tráfico em ação atualmente tem apresentado equívocos.
Em 2006, uma alteração na política de combate à droga endureceu as penas para tráfico de drogas. O porte para uso deixou de implicar prisão, mas não deixou de ser crime, aplicando uma despenalização, mas não uma descriminalização. O principal efeito visível foi o aumento de pessoas encarceradas pelo crime de tráfico, passando de 47 mil em 2006 para 176.691 em junho de 2016, segundo o Depen (Departamento Penitenciário Nacional).
Eduardo Ribeiro, da INNPD, explica que o avanço do PLC37 é um mecanismo que agrava ainda mais a precarização da vida do povo brasileiro, sobretudo da população negra. “A proposta alimenta o cárcere como forma de controle da pobreza. Não tem qualquer vontade de enfrentar a questão do chamado ‘crime organizado’ por estar alinhado com a produção dos crimes relacionados com o mercado de drogas no Brasil, a partir de sua lógica própria pautada na violência e na punição”, explica.
Segundo ele, um exemplo é quando trata do aumento de penas, que “não está relacionado com a diminuição de crimes nem nenhuma experiência no mundo, está relacionado com o aumento da corrupção do poder Judiciário, das forças de segurança e do lucro explorado do trabalho análogo à escravidão praticado dentro das prisões, bem como todo o mercado movimentado por cada unidade prisional criada”, defende o coordenador da Iniciativa Negra.
A advogada Fernanda Nunes, integrante do ITTC, defende uma reforma da política de drogas que paute a regulamentação do uso, produção e comércio de todas as drogas. “Ao aumentar a pena para o crime de tráfico, esse cenário é apenas aprofundado e a política de drogas continua inefetiva e punitiva, oferecendo o cárcere como resposta principal para a questão”, explica Nunes.
Fernanda ressalta os números do último INFOPEN (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias), que mostra que 28% das pessoas privadas de liberdade respondem por crimes ligados ao tráfico de drogas, sendo que 62% deste total são mulheres.
“Entendemos que qualquer reforma para ser efetiva deve ser sensível a questões de gênero para incluir mulheres em políticas de cuidado e não de criminalização. Nesse sentido, para além da não definição de uma quantidade que diferencie usuários e traficantes, entendemos como mais preocupante o respaldo e o incentivo a uma política encarceradora que prende um perfil já conhecido de pessoas negras e pobres, que fazem uso de drogas ou ocupam posições vulneráveis dentro da cadeia do tráfico”, analisa. “Assim, enquanto essa for a lógica de nossa política de drogas, o encarceramento em massa e as violações massivas de direitos dessas populações continuaram se intensificando”, argumenta Nunes.
[…] como o senhor avalia essa história da internação sem consentimento, autorizada na nova política nacional de drogas?Eduardo Valério – A lei municipal diz que não pode. A lei federal não muda a […]