Entidades cobram urgência na desmilitarização das escolas públicas no país

Fim do Pecim fortaleceu programas estaduais e municipais da modalidade e omissão do governo federal preocupa; estudo recente aponta mais de 800 escolas utilizando o modelo em todo o Brasil

Escolas cívico-militares implantadas por Pecim Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Governo federal não apresentou proposta para desmilitarizar as escolas no país | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Com mais de 800 escolas públicas militarizadas no Brasil, entidades da área da educação cobram urgência no processo reverso: desmilitarização das unidades. O fim do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim), em julho, criou um novo problema, apontam especialistas ouvidos pela Ponte. Em resposta ao encerramento, governadores anunciaram programas estaduais para continuidade do modelo, o que deixa mais distante a possibilidade de retirada dos militares do ambiente escolar.

Um mapeamento da militarização das escolas no país foi divulgado no “Relatório Paralelo sobre a situação de crescente militarização da Educação Básica, perseguição sistemática a educadores e educadoras e censura às temáticas de direitos humanos nas escolas do Brasil” que denuncia a situação da educação no país. 

Ele foi apresentado no 74º período de sessões do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas, que ocorreu entre os dias 25 de setembro e 13 de outubro. 

O texto foi construído por entes como a Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação, Rede Nacional de Pesquisa sobre Militarização da Educação (RePME), Ação Educativa, Assessoria, Pesquisa e Informação, Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Plataforma DHESCA Brasil, Professores contra o Escola Sem Partido e pela Clínica de Políticas Públicas e Direitos Humanos da Universidade Federal do ABC (UFABC). 

As entidades pedem que a ONU inclua nas observações ao governo brasileiro medidas que possibilitem o fim da militarização nas escolas e promovam uma gestão escolar democrática. 

“Poderíamos pensar um programa federal em substituição ao processo de desdemocratização que aconteceu impulsionado pelo governo federal nos últimos anos”, diz Salomão Ximenes, professor e coordenador na Clínica de Políticas Públicas e Direitos Humanos da UFABC. 

Ximenes avalia que o fim do Pecim não representou “um avanço em relação à desmilitarização e nem representou desaceleração do processo de implantação de novas escolas”. Para o professor, houve “omissão gravíssima” do governo federal. “Você não encerra um programa de disseminação de política pública somente cortando a participação federal”, diz.

Importante bandeira do governo de Jair Bolsonaro, o Pecim foi criado em 2019 pelo decreto nº 10.004. A iniciativa do Ministério da Educação, em parceria com o Ministério da Defesa, criou um modelo de gestão educacional com a participação de militares. 

Foram implantadas as escolas cívico-militares que destinavam verba federal e pessoal das Forças Armadas. No modelo, a parte pedagógica ficava com os professores e a disciplina era administrada pelos militares. O Pecim foi extinto pelo decreto 11.611, que se limitou a acabar com o programa e não propôs alternativas a ele.

“Se extinguiu o Pecim, mas não se encaminhou nenhuma decisão quanto à adequação ou não das escolas militarizadas, seja via Pecim, seja via programas locais, ou com um pronunciamento do governo federal”, critica Ximenes. 

Catarina de Almeida Santos, professora da faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB) e coordenadora da Rede Nacional de Pesquisa sobre Militarização da Educação, critica a demora do governo federal em tratar sobre o tema. “O Pecim deveria ter sido revogado nos decretos do primeiro dia de trabalho”, afirma. 

Contudo, Catarina argumenta que para desacelerar a militarização o governo precisa atuar em outras frentes que não só o Pecim. “Só revogar o Pecim nós sabíamos que não ia resolver nada. Os estados e municípios podem continuar com as escolas que foram militarizadas. O grande papel era entrar nessa agenda da desmilitarização, usando todos os caminhos legais e políticos para estabelecer limites e punições para os sistemas de ensino que não cumprem essa normativa. Há muitos argumentos legais para isso”, defende Catarina. 

A professora explica que a militarização “fere o que é a educação, a escola, sua organização e princípios” e que, especialmente no caso das instituições públicas, há uma destituição do caráter e dos princípios aos quais elas devem seguir, como a Lei de Diretrizes e Bases (LDB).  

“Quando estamos militarizando as escolas, elas deixam de funcionar a partir dos princípios da Constituição, das Leis de Diretrizes e Bases, e passam a funcionar a partir dos princípios, interesses, normas e regras de uma categoria profissional, no caso, os militares”, pontua. 

Catarina considera que a política da militarização não está restrita à direita. Ela dá como exemplo o avanço das escolas cívico-militares em estados como a Bahia e o Maranhão durante os governos dos atuais ministros Rui Costa (Casa Civil) e Flávio Dino (Ministério da Justiça e Segurança Pública), respectivamente. 

Em 2017, Flávio Dino, então no PCdoB (e hoje no PSB) transformou duas unidades públicas em escolas militares por meio da lei n.º 10.664. Já na Bahia, sob a tulela de Rui Costa (PT), houve parceria da Secretaria de Educação com a Polícia Militar para implantação da metodologia. 

“Se de um lado você tem governos de matrizes mais de direita ou extrema-direita militarizando as escolas, você também vai ter governos ditos mais progressistas, ou mais vinculados à centro-esquerda, militarizando as escolas. A militarização no Brasil não tem cor partidária”, diz Catarina. 

A Bahia é, inclusive, um dos estados com maior número de escolas militarizadas no país, segundo levantamento da RePME. O estado do Nordeste tem 105 unidades municipais e 16 estaduais militarizadas. Se destacam também Goiás (com 50 municipais e 73 estaduais) e o Paraná, com mais de 200 unidades.

Para Miriam Fábia, professora da Universidade Federal de Goiás (UFG) e pesquisadora da RePME, o número de escolas neste modelo pelo país deve superar 800, já que a coleta de dados é dificultosa. Ela diz ainda que pós-Pecim houve uma expansão nacional do modelo. 

“Esse processo [de militarização] antecede muito o Pecim, mas ele é ampliado com o programa. Só para entender, podemos citar o caso do Paraná. O estado não tinha militarização e, agora, é o com o maior número no nosso levantamento”, diz a professora.

No Paraná, o governo de Ratinho Júnior (PSD) criou em 2020 o programa estadual de escolas cívico-militares em uma cooperação entre a secretaria de Educação, Esporte e a Secretaria de Segurança Pública. Após a aprovação, ao menos 216 unidades foram militarizadas seguindo essa logística. 

“O Pecim expande nacionalmente o modelo. Ele se torna um projeto de governo, cria subsídios para que municípios e estados façam adesão e, consequentemente, fomenta a expansão da militarização em estados que até então não tinham essa experiência”, afirma Miriam.

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Enquanto a manifestação do governo federal é tímida, na Justiça uma decisão que acabe com a militarização parece distante. No Supremo Tribunal Federal (STF) a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n° 6.791, protocolada em 2021 pelo próprio PT, Psol e o PCdoB, aguarda julgamento. O texto pede que a lei nº 20.338/2020 do Paraná seja considerada inconstitucional. 

Relatada pelo ministro Dias Toffoli, a ADI não tem previsão para ser votada pelos ministros. 

Outro lado

A Ponte procurou o Ministério da Educação sobre a denúncia feita pelas entidades e questionou se há planos ou projetos em andamento para incentivar a desmilitarização das escolas. Não houve retorno. 

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